Em foto tirada em 1.º de março de 2015, o então presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, acena durante sua cerimônia de posse na Praça da Independência, em Montevidéu.| Foto: Pablo PORCIUNCULA / AFP
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Infelizmente, pela segunda coluna seguida, esse espaço de política internacional será quase como um obituário. Faleceu no último dia seis de dezembro o ex-presidente do Uruguai, Tabaré Ramón Vázquez Rosas, aos oitenta anos de idade. Ele presidiu seu país por duas vezes. Primeiro, de 2005 a 2010, quando passou a faixa para seu sucessor partidário e amigo José Mujica. Em 2015, Mujica devolveu a faixa para Vázquez, que governou até 2020, sucedido pelo opositor Luis Lacalle Pou. Principalmente, Vázquez entrou para a História como o símbolo da superação de um ciclo vicioso que durava quase dois séculos, desde a independência do país.

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O Uruguai tornou-se independente em 1830, após a Guerra da Cisplatina, entre o império do Brasil e as Províncias Unidas do Prata, atual Argentina. Com mediação britânica, a independência uruguaia teve também o caráter de criar um “Estado tampão” entre as duas potências regionais, impedindo novos conflitos pelo controle do território. Ambas as reivindicações eram herdeiras de desenhos fronteiriços do período colonial, quando Portugal buscava alegar o rio da Prata como a divisa natural entre os territórios portugueses e os espanhóis no sul do continente americano. No mesmo ano, curiosamente, a Bélgica tornou-se independente, também com mediação britânica e também para servir como um “Estado tampão” entre potências vizinhas; no caso, a França e os Países Baixos.

Com a independência e a constituição, o primeiro presidente uruguaio foi Fructuoso Rivera, fundador do Partido Colorado em 1836. O partido, no século XIX, se aproximava das ideias liberais do período, fundado por lideranças do processo de independência, muitos deles intelectuais e mercadores do porto de Montevidéu. Posteriormente, o partido tornou-se, numa analogia ao cenário partidário brasileiro, o “centrão” uruguaio, dominando a política do país por quase um século, com todos os mandatos presidenciais de 1865 a 1959. Seus rivais foram o Partido Nacional, também fundado em 1836 e conhecido como Blanco.

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De orientação conservadora, o partido ocupou a presidência algumas vezes nas primeiras décadas do país e alternou-se com os colorados no governo na segunda metade do século XX. Inclusive, os blancos ocuparam o governo sob tutela da ditadura militar que controlou o Uruguai de 1973 a 1985. O partido Nacional é o partido do atual presidente e, antes dele, o último presidente uruguaio do partido foi Luis Alberto Lacalle, pai do atual mandatário, que governou de 1990 a 1995. E, até 2005, todos os presidentes uruguaios eleitos pelo voto foram ou colorados ou blancos, sem meio termo. Nesse histórico estão desde colorados mais próximos da social-democracia, como José Batlle y Ordóñez, no início do século XX, até blancos conservadores.

Um novo ator político

Em 1971 foi criada a Frente Ampla, então uma coalizão de quinze partidos e movimentos da sociedade civil, todos de esquerda. Dois anos depois, o coletivo foi declarado ilegal pela ditadura, reinstaurado apenas com a redemocratização, em 1985. Na década de 1990, outros movimentos de esquerda se juntaram a Frente Ampla, que tornou-se uma força política e partidária de relevância no Uruguai. Em 1990, o próprio Tabaré Vázquez tornou-se o primeiro prefeito de Montevidéu eleito pela coalizão. Anos depois, ele seria o terceiro colocado na disputa presidencial em sua primeira tentativa de eleição.

Em 1999, em sua segunda tentativa para o principal cargo executivo uruguaio, Vázquez foi para o segundo turno, quando foi derrotado por Jorge Batlle, do partido Colorado. Foi a primeira vez na História que um candidato estranho aos dois grandes partidos chegou perto da vitória. O objetivo foi finalmente alcançado na eleição seguinte, quando Tabaré Vázquez foi eleito ainda no primeiro turno, com mais da metade dos votos. Com apenas 10% do eleitorado, foi o pior resultado eleitoral da História do partido Colorado, e a primeira vez que um presidente de um partido, ou uma coalizão de partidos, de esquerda foi eleito no Uruguai. O bipartidarismo que durou 175 anos havia chegado ao fim e, como mencionado no início desse texto, o domínio da Frente Ampla durou quinze anos.

A ascensão de uma nova força partidária no Uruguai não foi despercebida, com uma reação no campo político oposto. No caso, na direita, com a fundação, em 2019, do partido Cabildo Abierto, conservador e nacionalista, com um núcleo militar na sua fundação. O legado da ditadura uruguaia é uma das pautas do partido, inclusive. Embora não tenha disputado a presidência em 2019, o novo partido teve 11% dos votos para o legislativo e hoje faz parte da coalizão de governo em ambas as casas do congresso uruguaio, além de chefiar dois ministérios no governo Lacalle Pou.

Além de estar marcado na História do Uruguai pelo seu pioneirismo, é importante deixar de lado quaisquer ideias monolíticas sobre Tabaré Vázquez, tratá-lo como uma caricatura. Estabeleceu boas relações com George W. Bush, usando o churrasco uruguaio como ferramenta de aproximação com o texano. Algo similar ao que o ex-presidente Lula fez no Brasil, com uma “competição” entre os churrascos gaúcho e texanos. Se afastou de seus correligionários por se opor à maior flexibilização do aborto de gestação, argumentando que sua formação médica, de oncologista, o proibia de apoiar a medida.

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Inclusive, sua atuação como oncologista é essencial para explicar um de seus principais legados. A rígida legislação uruguaia em relação ao tabagismo, de 2006, uma das primeiras do mundo, comprando briga com as grandes multinacionais do tabaco. Segundo o governo, na época, até seis uruguaios morriam todo dia em decorrência de efeitos do tabagismo, como câncer de pulmão. Outro legado, sem dúvida, é o respeito que tinha, inclusive de seus opositores. A notícia de sua morte veio com uma respeitosa e elogiosa mensagem do atual presidente, dizendo que “ele era o presidente dos uruguaios. O país está de luto". Um mês antes de passar a faixa, Tabaré Vázquez foi ovacionado no bairro em que nasceu, La Teja, em Montevidéu. Consciente disso ou não, o ex-presidente teve uma despedida calorosa.