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Emmanuel Macron (ao centro) na Cúpula de Paris, onde está sendo discutido um “novo pacto financeiro global”
Emmanuel Macron (ao centro) na Cúpula de Paris, onde está sendo discutido um “novo pacto financeiro global”| Foto: EFE/EPA/Lewis Joly

Todas as lideranças mundiais concordam que a governança global precisa de uma reforma, mas nenhuma das principais lideranças está disposta a fazer muito sobre isso. As principais instituições da comunidade internacional são fruto do pós-Segunda Guerra Mundial. Nesse momento, ocorre a Cúpula do Novo Pacto Financeiro, sediada pela França, por ideia do presidente Emmanuel Macron, cuja proposta é discutir a reforma do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, mas tais reformas dificilmente sairão do papel.

A cúpula reúne chefes de governo e de Estado, instituições financeiras privadas, bancos de desenvolvimento e representantes da sociedade civil. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, é um dos presentes. O evento é ambicioso e de escala gigantesca, com grupos de trabalho e mesas de debate, além de servir como fórum de encontro que proporciona uma miríade de reuniões bilaterais entre lideranças de governos, um dos propósitos desse tipo de evento.

Macron está organizando essa cúpula por uma série de motivos. Primeiro, a constante busca de projetar a França como uma líder internacional. Segundo, suas conhecidas tendências de se engajar com pautas como meio-ambiente e comunidade internacional. Finalmente, o fato de que ele não pode buscar mais uma reeleição e seus problemas de popularidade internos fazem com que pautas externas sejam muito atrativas para Macron, problema agravado depois da polêmica aprovação da reforma da previdência.

Meio-ambiente

O presidente francês certamente conseguirá vitórias nessa cúpula, como o anúncio de aporte internacional de cerca de US$ 100 bilhões para países em desenvolvimento realizarem investimentos para transição energética verde e adaptações para as mudanças climáticas. Também é previsto um acordo internacional para a suspensão de cobranças de dívidas de países que enfrentam catástrofes climáticas, casos atualmente de Paquistão e de Moçambique.

Outra questão é a maior taxação de emissões de carbono, especialmente por setores que não estejam no arcabouço do Acordo de Paris, como o frete marítimo. Esse tema já é mais delicado, devido ao enorme peso da indústria, de seu lobby e sua importância para a economia mundial. Destacamos as propostas que envolvem temas climáticos como possíveis vitórias pelo fato de que a conferência do clima deste ano será realizada nos Emirados Árabes Unidos e provavelmente será muito pouco ambiciosa.

Macron, então, aproveita a desconfiança em relação à COP 29 e tenta avançar algumas agendas climáticas. O foco principal, entretanto, como o próprio nome diz, é um “novo pacto financeiro”. Uma das pessoas mais aplaudidas até agora em Paris foi a primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley, recentemente uma república, que cobrou uma “transformação absoluta” do sistema financeiro mundial, incluindo maiores taxações de grandes empresas e impostos globais cobrados de empresas igualmente globais.

Esse é um tema muito debatido em relação às chamadas “big techs”, que fazem fortunas com operações mundiais mas pagam impostos apenas em poucos países onde possuem suas sedes. A líder barbadiana citou as grandes empresas de petróleo e de gás como exemplos de empresas globais. As propostas principais da cúpula, entretanto, não são tão radicais, passam por reformas. Principalmente, Macron afirmou que a atual governança global “é fruto de um consenso passado e precisa ser repensado”.

Governança global

O Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Conselho de Segurança da ONU, todas essas instituições foram criadas na década de 1940, no consenso pós-Segunda Guerra Mundial. Qualquer pessoa sabe, e vai concordar, que o mundo de 2023 é extremamente diferente do mundo que existia em 1945, quando a ONU foi criada. Cinquenta países assinaram a Carta da ONU em São Francisco naquele ano. Hoje, a organização conta com 193 países-membros.

Naquele ano, o império britânico dominava um quarto da massa seca da Terra, a União Soviética era um dos maiores entidades contínuas que já existiram, apenas os EUA possuíam a bomba nuclear e algumas regiões do globo estavam totalmente devastadas. Desde então, países conquistaram sua independência, potências como Índia e China ascenderam, a URSS se desintegrou e as potências europeias, como Reino Unido e França, viram a decadência de seus impérios e de seu poder global.

Todos os líderes mundiais vão concordar que a governança global precisa de reforma, como Macron. Na maioria dos casos, entretanto, isso é mera demonstração de virtude para o público, com pouco de concreto sendo feito. Uma análise da escola realista das relações internacionais explica facilmente o motivo disso. Primeiro, os Estados não querem perder o poder que possuem, e qualquer reforma das instituições globais representaria a perda de poder para alguém.

Usemos de exemplo a instituição mais visível, o Conselho de Segurança da ONU. O Reino Unido de 2023 não é, nem de longe, o Reino Unido de 1945, no tamanho de seus domínios, de sua economia ou de seu poderio militar. O Reino Unido ainda é uma potência nuclear, claro, e possui grande base industrial, mas, em 2023, seria justo que, no mínimo, por exemplo, Índia e Reino Unido estivessem no mesmo patamar de representação. Hoje, o governo britânico é super representado internacionalmente.

Quem vai convencer os britânicos a aceitar voluntariamente a diminuir sua presença nas organizações internacionais, espelhando sua perda de poder no último meio século? Mesmo que não ocorresse essa concessão, mas adições, o Reino Unido ainda resistiria, pois isso também significaria a diminuição de seu poder. Colocar a Índia como membro permanente no CSNU, por exemplo, significaria a “diluição” do popularmente chamado “poder de veto”, partilhado hoje apenas entre cinco potências.

O FMI e o Banco Mundial contam com uma super representação dos EUA. Quando essas instituições foram formadas, a Europa estava devastada e a economia dos EUA estava disparada no papel de maior economia do mundo. Principalmente, caberia, via essas mesmas instituições, aos governos de Washington o financiamento da reconstrução mundial. Hoje, com a ascensão chinesa e a integração europeia, a economia dos EUA não deveria contar mais com a primazia que conta nessas instituições.

Rivalidade e sonambulismo

Alguém acredita, entretanto, que o governo dos EUA vai aceitar de bom grado um maior papel chinês nessas instituições? Não, ao ponto que a China está criando sua governança global “paralela”, com o Pacto de Xangai, os Brics e o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura. Ninguém vai ceder um poder que já possui, mesmo que esse poder não seja mais coerente com a realidade. O segundo ponto é que Estados não querem que outros Estados obtenham novos poderes.

Ainda tomando o CSNU como exemplo, o Brasil faz parte do G4, os principais proponentes de reforma do Conselho: Brasil, Índia, Japão e Alemanha. Os quatro países se apoiam mutuamente nas discussões sobre o tema. Ao mesmo tempo, existem cem países que não querem uma reforma do CSNU, pois significaria vizinhos ou rivais com maiores poderes. Argentina e Colômbia são contra o pleito brasileiro, Turquia e Itália contra o pleito alemão, Coreia do Sul e China contra o pleito japonês e China e Paquistão contra o pleito indiano.

Isso para ficarmos nos países principais, claro. Ou seja, da boca pra fora, todos dirão que a reforma do CSNU é importante e necessária. Às portas fechadas, entretanto, pouco ou nada avança, inclusive pelas ações dos que dizem serem favoráveis às tais reformas. Isso é um perigo. As duas décadas antes da Primeira Guerra Mundial foram cheias de declarações sobre a necessidade de concertação internacional para evitar uma grande guerra na Europa, existia uma clara noção do caminho para onde se rumava.

Como sonâmbulos, entretanto, a Europa caminhou para o conflito. O termo é utilizado pelo historiador Christopher Clark em sua análise da Crise de Julho de 1914, estopim da guerra. O mundo está repetindo o mesmo erro. As lideranças internacionais, como Macron, estão cientes do problema da governança global e da necessidade de mudanças profundas para adequação ao mundo de 2023. Ninguém está disposto a fazer sua parte ou se mexer para mudar isso.

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