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Vista de um prédio de apartamentos em Berlim, Alemanha, 27 de setembro
Vista de um prédio de apartamentos em Berlim, Alemanha, 27 de setembro| Foto: EFE/EPA/MARTIN DIVISEK

Além da eleição para o parlamento federal, outra votação ocorreu na Alemanha no último domingo, dia 26 de setembro. Um voto curioso, que pode ter profundos efeitos e que, mesmo assim, não gerou tanta repercussão. A população de Berlim aprovou, em plebiscito, que algumas das maiores empresas imobiliárias da capital tenham parte de seus apartamentos expropriados. O voto não é vinculante, mas já despertou alguns debates interessantes pelo seu ineditismo.

Primeiro, o contexto. A cidade de Berlim é a mais populosa da Europa e sua zona metropolitana contígua é lar para seis milhões e meio de pessoas. Com seu crescimento espacial limitado pela geografia, a cidade tem um problema de habitação, com aluguéis caros. Um cenário obviamente afetado pela pandemia. Por um ano, entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021, os aluguéis na capital foram congelados, medida que foi derrubada como inconstitucional pela suprema corte.

"Oras, construa-se mais casas". Novamente, a resposta óbvia é atrapalhada pela situação geográfica da cidade. Ainda assim, o congelamento de aluguéis, que deveria durar cinco anos, não se aplicava aos imóveis construídos após 2014, justamente para não retirar um incentivo às construtoras. Além disso, o problema não é apenas berlinense. Segundo o Instituto Pestel, a Alemanha tem um déficit de 670 mil moradias. Obviamente os mais afetados são os de classe média urbana.

Os mais abastados, inclusive, possuem diversas opções, já que as construtoras priorizam casas e apartamentos mais caros, dado o crescimento econômico alemão. Mais contraditório ainda: diversas empresas possuem, somadas, centenas de milhares de apartamentos vagos na capital alemã. A maior delas é a Deutsche Wohnen, com 111.500, seguida pela Vonovia, com 44 mil, que está em vias de adquirir a primeira. Daí surgiu o movimento "Expropriar a Deutsche Wohnen", cujo objetivo fica claro em seu nome.

Plebiscito

O argumento jurídico do grupo é que essas grandes empresas operam um oligopólio, adotando, em conjunto, práticas para inflacionar os valores dos imóveis e os preços dos aluguéis. Isso contraria a Constituição Federal alemã, que consagra o princípio de Função Social da Propriedade em seus artigos 14 e 15. O mesmo princípio, diga-se, também é consagrado na constituição brasileira, nos Leasehold Reform Act de 1967 e Housing Act de 2004, ambos do parlamento britânico, dentre outros.

Pela coleta de trezentas mil assinaturas, o grupo conseguiu provocar um plebiscito, marcado junto com as eleições nacionais e regionais. Ao menos 25% do eleitorado precisava comparecer para validar o resultado. O número foi o triplo, com 75% de comparecimento e, desses, 56,4% apoiando a decisão. O voto, entretanto, não é vinculante, não vira lei automaticamente, ele provoca o Senado berlinense a legislar sobre o tema, amparado pela constituição.

Especificamente, provoca em legislar sobre a expropriação de cerca de 243.000 apartamentos de doze grandes empresas pelo governo, que pagará o valor venal dos imóveis como compensação. Não se trata de confisco, e as palavras não são sinônimas. Os imóveis a serem expropriados precisam estar desocupados, não ocorrerão cenas de "pessoas expulsas de suas casas". Após a expropriação, os imóveis serão repassados para a população a preços populares.

Primeiro, poderão comprar indivíduos e famílias que não tenham casa própria, mas questões como valores e meios de financiamento pela população também precisam passar pela legislação. E, realisticamente, não é possível dizer como será essa legislação, sequer se ela será de fato elaborada. Dos partidos presentes no parlamento federal, apenas dois, A Esquerda e os Verdes, apoiaram a medida. Mesmo os Verdes ficaram divididos. Os outros quatro principais partidos rejeitam, embora por diferentes motivos. Ainda assim, rejeitam.

Tanto os social-democratas do SPD quanto os conservadores apontam para talvez o principal problema da iniciativa: a incerteza sobre seus custos. O governo de Berlim poderia ter que desembolsar entre sete e 36 bilhões de euros. Convenhamos, uma "margem de erro" de 29 bilhões de euros não é razoável. Mesmo que o dinheiro depois seja recuperado com a venda dos apartamentos, poderia causar um rombo imediato nas contas públicas. Para desagrado dos apoiadores, a prefeita de Berlim será Franziska Giffey, do SPD.

Ainda assim, Franziska precisará fazer uma coalizão para governar, e muito provavelmente precisará dos Verdes. A candidata verde, Bettina Jarasch, disse que o voto popular mostra, pelo menos, que a população de Berlim deseja um mercado imobiliário voltado para o "bem comum", e não para os lucros das grandes imobiliárias, e que o resultado deve servir, ao menos, como uma "moeda de barganha" com as grandes empresas. Ou seja, sem uma grande expropriação, mas alguma mudança ou incentivo deve estar na mesa.

Adam Smith

Se esse plebiscito ocorresse em uma grande cidade brasileira, cada leitor teria um voto diferente, por suas razões. Como sempre é dito em nosso espaço, uma das coisas que torna interessante acompanhar o noticiário internacional é trazer os debates para a nossa realidade. E a realidade brasileira é obviamente diferente, um país muito maior que a Alemanha, com uma densidade populacional menor. Ainda assim, algumas zonas urbanas sofrem com a especulação imobiliária, que, por vezes, se beneficia do imóvel desocupado.

Nas redes sociais, algumas pessoas reagiram a essa notícia como um suposto fim da propriedade privada, ou intervenção desnecessária do Estado na economia ou até mesmo como uma vitória de um "comunismo" em Berlim. O que é curioso e serve como espécie de termômetro de uma quase "fobia" em parte da sociedade brasileira, contra qualquer medida que se proponha comunitária ou tenha "social" no nome. É ainda mais curioso quando se olha o histórico do princípio da Função Social da Propriedade.

Por exemplo, Adam Smith, um dos formuladores do Liberalismo. Pilar do pensamento econômico clássico e filósofo basilar do Renascimento Escocês. E também um profundo crítico do monopólio, da concentração de imóveis improdutivos e defensor de maiores taxações para imóveis valorizados ou de luxo. A origem da Função Social da Propriedade não está em algum grupo estudantil de qualidade duvidosa dos anos 1980, mas também em um dos mais importantes autores da História.

É claro que Adam Smith escreveu em um mundo muito diferente do atual. Ainda assim, muito de seu pensamento continua válido, seja para defendê-lo, seja para criticá-lo. Ele está no seletíssimo grupo de autores que devem ser lidos, goste-se ou não. Vai discordar e criticar? Ok, mas leia e o faça com propriedade. Nada de "nunca li e não gostei", um pensamento que, embora não seja exatamente defensável, é por vezes justificável, já que, infelizmente, não podemos ler todos os livros que queremos na vida.

Peguemos a edição em português de Riqueza das Nações, traduzida por Luiz João Baraúna para o selo Nova Cultural, publicada em 1996. Na obra, Smith diferencia o terreno das benfeitorias nele presentes, como plantações e edificações. Para ele, tais benfeitorias podem até ser excluídas dos impostos, tributando o terreno pelo seu valor, o que viria a ser conhecido como "imposto sobre o valor da terra", em inglês o land value tax, ou LVT. Mais, Smith justifica essa taxação pelo fato de que o proprietário desfruta desse valor, muitas vezes, sem realizar alguma atividade.

Imposto sobre o valor da terra

Página 299 do segundo volume da citada tradução:

"Tanto as rendas de terreno como a renda normal da terra são uma espécie de rendimento de que o proprietário desfruta, em muitos casos, sem nenhum cuidado ou preocupação de sua parte. Ainda que se lhe tirasse uma parte desse rendimento para pagar as despesas do Estado, não se estaria desestimulando com isso nenhum tipo de iniciativa. Com ou sem esse imposto, poderia ser idêntica a produção anual da terra e do trabalho do país, a riqueza e o rendimento real do conjunto da população. Por conseguinte, as rendas de terreno e a renda normal da terra são talvez os tipos de rendimento que melhor suportam a incidência de um imposto".

Antes disso, o mesmo Adam Smith também alega que uma residência não gera renda, portanto, não pode ter função de capital, o que é congruente com o que ele expõe em Teoria dos sentimentos morais. Página 289 do primeiro volume: "Embora, portanto, uma casa possa proporcionar renda a seu proprietário, e consequentemente tenha para ele a função de capital, não gera renda alguma para o público, nem pode ter a função de capital para este, sendo que uma casa jamais poderá aumentar, no mínimo que seja, a renda da sociedade como tal.".

Para ficar mais claro: uma casa, ou seja, uma construção com função residencial, não pode ter função de capital, não pode ser tema de especulação. No caso de um grande conglomerado, como no plebiscito alemão, por qual motivo a empresa vai construir mais moradias se, ao ter dez apartamentos e quinze famílias interessadas, ela pode ver esses quinze se estapearem para ver quem paga mais? Não é o caso de uma pessoa alugar o seu imóvel, mas uma empresa que detém mais de cem mil apartamentos, praticamente 10% de todo o mercado berlinense, operando em conjunto com outras.

Adam Smith já avisou que "os monopolistas, por manterem o mercado sempre em falta, por nunca suprirem plenamente a demanda efetiva, vendem suas mercadorias muito acima do preço natural delas, auferindo ganhos — quer consistam em salários ou em lucros — muito acima de sua taxa natural.". Página 114 do primeiro volume da tradução utilizada, para o leitor que desejar conferir.

Para Smith, seria, então, razoável cobrar impostos apenas de grandes valores de aluguéis, de casas luxuosas ou grandes. Página 297 do segundo volume: "Por isso, um imposto sobre aluguéis de casa geralmente recairia com maior peso sobre os ricos, não havendo, talvez, nesse tipo de desigualdade nada de particularmente absurdo.". Na mesma página, ele afirma que casas desabitadas não devem pagar impostos, já que, novamente, para ele, o que faz sentido é o imposto sobre o valor do terreno, não sobre o que está nele.

Churchill

E o que faz os terrenos se valorizarem? O mesmo Adam Smith lembra que as propriedades em Londres são as mais valorizadas de sua época, por diversos motivos. E isso, mais de duzentos anos depois, dialoga diretamente com o caso de Berlim. Quantidade considerável dos apartamentos da Deutsche Wohnen são localizados na antiga Berlim oriental, e a empresa busca maior valorização desses imóveis. Por investimentos da própria empresa? Não, pelos investimentos públicos e privados ao redor, valorizando os bairros orientais.

Como a própria coluna deixou claro, Adam Smith escreveu mais de duzentos anos atrás. Uma fonte menos antiga, entretanto, já disse que "o enriquecimento que chega ao proprietário que por acaso possui um terreno na periferia ou no centro de uma de nossas grandes cidades, que observa a população atarefada ao seu redor tornando a cidade maior, mais rica, mais conveniente, mais famoso a cada dia, e o tempo todo fica parado e não faz nada!".

Continua:

"As estradas são feitas, as ruas são feitas, os serviços ferroviários são melhorados, a luz elétrica transforma a noite em dia, os bondes elétricos deslizam rapidamente de um lado para outro, a água é trazida de reservatórios a centenas de quilômetros de distância nas montanhas - e o tempo todo o proprietário fica quieto. Cada uma dessas melhorias é efetuada pelo trabalho e às custas de outras pessoas. Muitas das mais importantes são efetuadas às custas do município e dos contribuintes. Para nenhuma dessas melhorias o monopolista da terra, como um monopolista da terra, contribuiu, e ainda assim, por cada uma delas o valor de sua terra é sensivelmente aumentado."

Quem fez essa vigorosa defesa do imposto sobre o valor da terra e crítica de ações especulativas dos imóveis não foi Guilherme Boulos, mas Winston Churchill, em 1909, em um discurso chamado de "Propriedade de terreno, a mãe de todos os monopólios", compilado na obra Churchill, Liberalismo e o Problema Social. Todas as traduções são da própria coluna. "A melhor maneira de tornar a propriedade privada segura e respeitada é harmonizar os processos pelos quais ela é obtida com os interesses gerais do público.".

É muito improvável que Adam Smith ou Winston Churchill apoiassem uma grande expropriação de imóveis pelo Estado, embora o primeiro justificasse o confisco de mercadorias de navios não-britânicos que violassem o protecionismo das ilhas, e o segundo tenha apoiado tais medidas em tempos de guerra. Não é isso que a coluna está dizendo ao fazer tais citações, embora Churchill chegue a insinuar essa possibilidade em seu texto. A intenção é demonstrar que tais autores clássicos já discutiam esse problema.

Mais que discutir, propunham ações contra a especulação imobiliária, contra o oligopólio, contra a dificuldade de se encontrar moradias acessíveis para os trabalhadores. Smith defendeu explicitamente o imposto sobre moradias de luxo, que terrenos deveriam ser taxados de acordo com seu valor e que domicílios não deveriam ser tema de especulação pois não geram renda. Churchill também defendeu maiores impostos sobre valores de terrenos, especulados por proprietários que não contribuem para essa mesma valorização.

Espero contar com a compreensão do leitor para tantas citações, que acredito serem interessantes e pertinentes ao debate público e ao crescimento de ideias. Resgatar autores clássicos deve ir além de slogans ou citações batidas, e ambos os textos citados estão integralmente na internet. Os pontos dessa coluna foram dois. Atualizar sobre o plebiscito berlinense que discute um problema cada vez maior e também buscar ir além de rótulos. Não teve vitória alguma do comunismo em Berlim, na verdade, Adam Smith acharia o debate bastante pertinente, para dizer o mínimo.

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