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O naturalista britânico Charles Darwin em foto de 1884.
O naturalista britânico Charles Darwin em foto de 1884.| Foto: Leonard Darwin/Domínio público

“Não entendo como alguém pode desejar que o cristianismo seja verdadeiro; porque, se assim o for, a simples linguagem do texto parece reservar aos homens que não creem – e isso incluiria o meu pai, o meu irmão e quase todos os meus melhores amigos – o castigo eterno. E essa é uma doutrina abominável.” (Charles Darwin)

Refletindo sobre o antievolucionismo de William Jennings Bryan, e após recapitular a sua atuação durante o Julgamento do Macaco, o paleontólogo evolucionista Stephen Jay Gould, um tanto quanto consternado, observa em seu livro Rock of Ages: Science and Religion in the Fullness of Life:

“Eu gostaria de poder parar por aqui, com um comentário sarcástico sobre a rusticidade de Bryan e uma defesa da interpretação científica adequada do darwinismo. Mas esse juízo desdenhoso seria injusto, porque Bryan não pode ser condenado quanto a um aspecto crucial. Só Deus sabe o quão pouco ele entendia de ciência, e a sua lógica argumentativa não era lá grande coisa. Mas, quando dizia que o darwinismo vinha sendo usado para a defesa da guerra, da dominação e da exploração, ele estava certo.”

Gould também está certo quanto a isso. No decorrer da obra supracitada, é incessante o esforço do autor para dissociar a legítima teoria darwinista dos maus usos que dela fizeram os ideólogos do darwinismo social e da eugenia. Se Bryan tinha razão quanto às consequências nefastas do fenômeno, errava ao responsabilizar a teoria em si. “O criador de uma ideia não pode ser responsabilizado pelos usos odiosos de sua teoria”, Gould conclui.

As primeiras derivações culturais do paradigma da seleção natural – a exemplo do racismo científico – não surgiram de discípulos infiéis ou intérpretes leigos, mas de alguns dos colaboradores mais próximos a Darwin

De modo genérico, a tese está correta. Mas, no caso em tela, a oposição absoluta entre a teoria biológica “pura” e a ideologia que suscitou não é tão fácil de sustentar. Primeiro, porque o darwinismo social é anterior à teoria de Darwin, mesmo que, por óbvio, ainda não tivesse esse nome. A expressão “sobrevivência do mais apto”, por exemplo, foi cunhada por Herbert Spencer em 1884. Mas já em 1850, portanto quase dez anos antes da publicação de A Origem das Espécies, o mesmo autor sintetizara no livro Estática Social os fundamentos da ideologia evolucionista, que formava o pano de fundo pré-científico (ou “pré-analítico”, como diria o economista J. A. Schumpeter) da teoria da evolução das espécies.

Segundo, porque a rapidez com que a hipótese da seleção natural foi convertida numa série de planos de engenharia social deveria bastar para, ao menos, levantar a suspeita de haver um algo de potencialmente ideológico já na própria estrutura interna da teoria. Ainda mais se lembrarmos que as primeiras derivações culturais do paradigma da seleção natural – a exemplo do racismo científico – não surgiram de discípulos infiéis ou intérpretes leigos, mas de alguns dos colaboradores mais próximos a Darwin, como, por exemplo, o próprio Francis Galton (de quem falamos no artigo anterior), ou Ernest Haeckel, ou ainda Thomas Huxley. Deste último, aliás, eram frequentes opiniões como a seguinte: “Nenhum homem racional, conhecendo os fatos, pode crer que o negro médio seja igual, e muito menos superior, ao homem branco”.

O próprio Charles Darwin parecia ter plena consciência das relações entre a sua hipótese científica e os seus possíveis usos político-sociais. Em A Descendência do Homem, obra publicada depois de A Origem das Espécies, lemos que:

“Algumas observações devem ser feitas sobre a ação da seleção natural sobre as nações civilizadas. Esse tema foi adequadamente discutido pelo Sr. W. R. Greg, e antes pelos Srs. Wallace e Galton. A maior parte dos meus comentários deriva desses três autores. Com os selvagens, os fracos de corpo e de alma são logo eliminados; os que sobrevivem costumam exibir um estado vigoroso de saúde. Nós, civilizados, por outro lado, fazemos o máximo para conter o processo de eliminação; construímos asilos para os loucos, os mutilados e os doentes; instituímos políticas para os mais pobres; e nossos médicos exercem toda a sua habilidade para salvar a vida de todos até o último momento. Há razão para crer que a vacinação preservou milhares de pessoas, que de outro modo teriam sucumbido à varíola graças à sua débil constituição. Assim, os elementos mais fracos das sociedades civilizadas podem ainda propagar a sua espécie. Ninguém que conheça o processo de criação de animais terá dúvidas do quão pernicioso isso será para a raça humana. É surpreendente a rapidez com que a falta de atenção, ou a atenção mal dirigida, pode levar à degeneração de uma raça doméstica; mas, excetuando o caso do próprio homem, ninguém seria tão ignorante a ponto de permitir que os piores animais procriassem.”

Em linhas gerais, o naturalista concordava com a tese de seu primo Francis, como resta claro noutra passagem do mesmo livro:

“Sabemos hoje, graças aos admiráveis esforços do Sr. Galton, que o gênio, que implica uma combinação espantosamente complexa de altas faculdades, tende a ser herdado; e que, por outro lado, também é certo que a insanidade e a deterioração mental também se transmitem nas mesmas famílias.”

E, fiel ao Zeitgeist, também referendava o racismo científico, considerando mais próximos da animalidade os povos não caucasianos:

“Em algum momento futuro, não tão distante para ser medido em séculos, as raças humanas civilizadas irão certamente exterminar e substituir as raças selvagens por todo o mundo. Ao mesmo tempo, os macacos antropomorfos (…) serão sem dúvida exterminados. O hiato se tornará maior, pois se dará entre o homem em um estado mais civilizado (espera-se) que o caucasiano e algum símio inferior como o babuíno, em vez do que se dá agora, entre o negro ou o australiano e o gorila.”

A teoria da evolução das espécies é, possivelmente, um híbrido de ciência e política desde a origem. A pureza que lhe atribuíram Stephen Jay Gould e outros evolucionistas é uma abstração posterior

Chama a atenção a naturalidade com que, nos meios cultos europeus da virada do século 19 para o 20, sobretudo entre progressistas, evolucionistas e anticristãos, evocava-se o tempo todo o problema das “raças inferiores”. Dez anos antes da publicação de A Origem das Espécies, por exemplo, ninguém menos que Karl Marx e Friedrich Engels propunham o “extermínio total” de povos tidos por historicamente atrasados (e politicamente reacionários), a quem os pais do comunismo atribuíam o rótulo de “lixo racial” (Völkerabfälle). A expressão original em alemão que aqui traduzo por “extermínio total” é gänzlichen Vertilgung, sendo que o último termo, um substantivo feminino, denota especificamente o extermínio de pragas e insetos.

A teoria da evolução das espécies é, possivelmente, um híbrido de ciência e política desde a origem. A pureza que lhe atribuíram Stephen Jay Gould e outros evolucionistas é uma abstração posterior, uma criação ideológica ex post facto. Apesar dos méritos científicos inegáveis, a consagração da teoria deu-se menos por esse motivo do que pela atração exercida por sua metafísica implícita, a qual, negando o sentido transcendente da vida humana, opunha-se essencialmente à cosmovisão judaico-cristã. Em 1838, 21 anos antes de publicar sua teoria, Darwin já a manifestara, ao apontar a suposta húbris da concepção mosaica do homem: “Em sua arrogância, o homem vê-se como uma grande obra, digna da intervenção de uma divindade. Mais humilde, creio mais verdadeiro considerá-lo como tendo surgido dos animais” (citado por James Rachels em Created from Animals: The Moral Implications of Darwinism).

A metafísica darwinista, por sua vez, suscitou gatilhos psicológicos entre os bem-pensantes da época, gerando um desejo de ampla reforma moral. E disso quase não se fala. Ao contrário, o que sempre ouvimos por aí é uma velha e repetitiva arenga sobre as razões psicológicas da crença religiosa. Desde a explicação marxista da religião como “ópio do povo”, passando pela concepção freudiana da religião como “ilusão reconfortante” – a tentativa humana de reconstituir simbolicamente os laços com a natureza, necessariamente rompidos para a instituição traumática da cultura –, foram propostas diversas interpretações equivalentes, cuja tônica pode ser resumida na afirmação do ateísta francês Michel Onfray: “Os religiosos preferem os confortáveis contos de fada da infância do que a dura e cruel realidade dos adultos”.

Se essas análises são abundantes, as que buscam compreender as motivações psicológicas da descrença são, por sua vez, extremamente raras. E não se pode alegar ausência de dados para justificar a lacuna. Quem quer que se dedique a escarafunchar os escritos de pensadores céticos, ateus ou agnósticos não tardará em achar pistas. Sobre a possibilidade de vida após a morte, por exemplo, manifestou-se certa vez o já citado H. L. Mencken: “A minha inclinação privada é torcer para que não haja” (citado por S. T. Joshi em H. L. Mencken on Religion). Já o filósofo Thomas Nagel reconheceu padecer do que chamou de medo da religião: “Anseio que o ateísmo seja verdadeiro (…) Não é simplesmente que eu não acredite em Deus (…) Eu não quero que haja um Deus. Não quero que o universo seja desse jeito”.

Com efeito, muitos intelectuais se interessaram pelo darwinismo por verem nele o pretenso carrasco da noção cristã de uma natureza humana superior. Como se sabe, Freud costumava dizer que, após a revolução copernicana, a publicação de A Origem das Espécies tinha sido o segundo grande abalo na autoimagem narcísica da espécie humana. Nesse sentido, o evolucionismo vinha ao encontro de um sentimento generalizado na intelligentsia europeia da época, um desejo de dessacralização e emancipação da vida humana em face da autoridade divina. Julien Huxley, neto de Thomas Huxley, confessou: “É enorme a sensação de alívio espiritual advindo da rejeição da ideia de Deus”. Assim como seu irmão Aldous, o grande romancista, que formulou a coisa em termos abertamente hedonistas:

“Eu tinha motivos para não querer que o mundo tivesse sentido; consequentemente, presumi que não o tinha, e pude sem dificuldade achar motivos satisfatórios para essa presunção (…) Para mim, e sem dúvida para a maioria de meus contemporâneos, a filosofia do não sentido era essencialmente um instrumento de libertação. Queríamos nos livrar de um certo sistema de moralidade. Contrapunhamo-nos à moralidade porque ela interferia em nossa liberdade sexual.”

O evolucionismo vinha ao encontro de um sentimento generalizado na intelligentsia europeia da época, um desejo de dessacralização e emancipação da vida humana em face da autoridade divina

Compreende-se, assim, o significado do darwinismo para pessoas com esse tipo de expectativas, desejos e temores. Como nota o matemático David Berlinski, crítico mordaz do ateísmo de inspiração darwinista, o prognóstico dostoievskiano “se Deus não existe, tudo é permitido” adquiriu força por haver se tornado parte de um silogismo muito presente na visão de mundo cientificista-materialista: se Deus não existe, tudo é permitido; se a ciência (darwinista) é verdadeira, logo, Deus não existe; se a ciência é verdadeira, logo, tudo é permitido.

No artigo da semana que vem, o último dessa série sobre as consequências morais da descristianização da cultura, recuaremos até as raízes filosóficas remotas da moralidade materialista-cientificista. E, quando em filosofia falamos em recuo às raízes, estamos obviamente nos referindo à Grécia, que, portanto, será o destino final da nossa viagem.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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