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Como leitores me pedissem que escrevesse mais sobre o assunto do artigo passado, qual seja a relação entre os especialistas midiáticos do Ocidente e o Islã, decidi abordar um outro aspecto do problema, que me parece ilustrativo das inconsistências inerentes ao discurso politicamente correto, que não tardam a se revelar quando levamos esse discurso aos seus limites.

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Além do argumento de que, por desconhecerem o Islã em teoria, os europeus não podem emitir sobre ele qualquer juízo, ainda que o conheçam na prática, há outra tese espantosa que tende a surgir no dia seguinte a atentados terroristas cometidos por islâmicos. Trata-se da afirmação de que não se pode atribuir ao islamismo a responsabilidade pelo terror porque os muçulmanos que vivem na Europa são, antes de tudo, europeus. O problema, mais uma vez, não seria o Islã, mas a Europa. Ouvi o argumento formulado de maneira prototípica por um sociólogo de entrevista após o atentado ao jornal Charlie Hebdo. “Antes de serem muçulmanos, os terroristas são franceses” – sentenciou, acrescendo ainda que “eles são antes uma responsabilidade da França que do Islã, pois este não é uma entidade estatal, como a França, que possa influenciar essas pessoas”.

Há tantos problemas nessa fala que é difícil saber por onde começar. A frágil integração dos muçulmanos às sociedades europeias (menos por culpa dos países acolhedores, ressalte-se, do que pelos hábitos e costumes impostos pela sharia) é um fenômeno que salta aos olhos. Os muçulmanos formam uma comunidade bastante segregada (em larga medida, autossegregada), e não cansam de deixar clara sua lealdade: primeiro, ao Islã, que, mais do que simples “religião” (no sentido ocidental e secularista do termo), é um modo total de vida; segundo, à Umma, a comunidade islâmica; terceiro, às suas nações de origem, onde têm familiares e para as quais viajam regularmente. Nesse contexto, a lealdade do francês muçulmano para com a França é praticamente nula. Tirando o apreço pelo Estado de bem-estar social europeu (que tem contribuído para o sustento de muitos indivíduos islâmicos, inclusive de suas atividades religiosas, uma vez que as mesquitas recebem dinheiro público), e pelas oportunidades e comodidades que o capitalismo ocidental oferece, o muçulmano europeu tem, em geral, pouco interesse e apreço pelo país hospedeiro. Beneficiando-se de sua cultura material, todavia despreza sua sociedade e valores. Trata-se, em larga medida, de uma relação superficial e parasitária.

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Com efeito, há líderes religiosos muçulmanos para os quais a lei islâmica concede aos devotos o direito de abusar ao máximo do sistema socioeconômico dos “infiéis”. O devoto é estimulado a encarar os benefícios sociais que recebe como jizia – o tributo que não-islâmicos residentes em países islâmicos precisam pagar por suas vidas. Não são poucos os muçulmanos que usam e abusam da manobra, inclusive terroristas. Em 2005, depois dos atentados em Londres, descobriu-se que os quatro suspeitos haviam amealhado mais de meio milhão de libras em benefícios sociais do governo britânico. Segundo matéria do The Telegraph, o líder extremista Omar Bakri Muhammad – fundador do Hizb ut-Tahrir (“Partido da Libertação”), e cujo sonho era promover “um 11 de setembro a cada dia no Ocidente” – recebia do governo britânico quase 2 mil libras por mês em benefícios sociais.

Outro fator que dificulta a integração é a língua. Sabe-se que, para os franceses, a língua é um dos traços mais fortes de identidade nacional. Ocorre que, para muçulmanos de qualquer nacionalidade, o árabe será sempre a língua predominante, por ter sido aquela em que o Corão foi ditado a Maomé pelo anjo Gabriel. Trata-se, pois, de uma língua sagrada, o que traz consequências importantes para a interação cultural. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com os cristãos, que se adaptam a qualquer cultura e falam qualquer idioma, a expansão do Islã implica a difusão complementar da língua (e, pois, de algum modo, da cultura) árabe. Na França, boa parte dos muçulmanos, que habitam as periferias de Paris e outras cidades, convivendo majoritariamente com outros muçulmanos, pouco falam o francês no dia a dia.

Dizer que o Islã não é uma “entidade estatal” é acaciano. Concluir daí que não influencie as pessoas como um Estado o faria é absurdo, quando não seja porque, no mundo globalizado do século 21, o Estado-nação já não desperta as paixões de outrora. Se, contudo, o Islã não é um Estado, decerto ele é uma “religião política”, como bem apontam David Horowitz e Robert Spencer. E, mais do que política, é uma religião imperialista. Ignorando totalmente a clássica separação ocidental (essencialmente cristã) entre religião e política, as lideranças religiosas islâmicas são também autoridades políticas e militares, buscando estabelecer um Estado islâmico global em que a sharia será imposta a todos os cidadãos do mundo, e no qual os pensamentos heréticos serão criminalizados. Como não distingue entre as esferas pública e privada, entre a vida individual do espírito e a vida coletiva da política, a sharia é totalitária por natureza, perpassando todas as esferas da vida, até mesmo as mais íntimas, referentes a higiene pessoal, necessidades fisiológicas e práticas sexuais. Onde o Islã torna-se religião oficial, toda violação à sua doutrina e preceitos é encarada não apenas como pecado, mas como um crime contra o Estado, este integralmente submetido à lei corânica.

Portanto, sugerir que o terrorismo islâmico na Europa é um problema que os europeus não-muçulmanos devem resolver unilateralmente é algo estapafúrdio. Resolver como, se qualquer manifestação de apego às culturas europeias tradicionais (em especial à sua herança cristã), e todo apelo a que os muçulmanos se integrem a elas, são tachados de xenofobia pelos mesmos especialistas? Em suma, quando se trata de isentar o Islã e lançar sobre a Europa toda a culpa pelo terrorismo, é legítimo a um bem pensante dizer que os muçulmanos da França são, antes de tudo, franceses. Mas, caso um nacionalista francês dissesse o mesmo, seria no ato considerado xenófobo, ultranacionalista e avesso ao multiculturalismo. Trata-se de um duplo padrão de julgamento. Quando tudo vai bem, celebra-se o multiculturalismo e deslegitima-se o orgulho cultural europeu. Quando a coisa fica feia e o terror irrompe, abandona-se o pacto multiculturalista e lança-se o fardo nas costas dos europeus “puros”. A Europa só tem direito a existência própria quando serve de saco de pancadas…

“A questão não é o Islã, é a Europa” – foi o que afirmou precisamente o sociólogo francês Raphaël Liogier. “O desafio real não são os muçulmanos. É o fato de estarmos numa sociedade em que existe um orgulho narcisista de quem era o centro do mundo e perdeu a influência. Isso levou a debates sobre identidades”. Não é curioso que o nobre intelectual se apresse em apontar o orgulho narcisista europeu como parte do “desafio real” que se nos apresenta, mas não diga uma palavra sequer sobre a suscetibilidade cultural doentia de muitos muçulmanos europeus em face de valores que contradigam as prescrições do Corão e da Sunna? Será mesmo possível que a questão nunca seja o Islã? Será intelectualmente decente que, a cada novo atentado, as próprias vítimas sejam incluídas entre as causas do problema? O que temos aí é a combinação entre uma mal disfarçada islamofilia (“deixem o Islã fora disso”) e uma inclemente crítica aos europeus não-islâmicos. “Essas pessoas se dizem os ‘franceses reais’, os ‘alemães reais’, os ‘italianos reais’ e se sentem ameaçadas pelo Islã” – continua Liogier. “Multicultural virou uma palavra ruim”.

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Como vimos no artigo da semana passada, posto que os especialistas as tomem por doentes mentais, aquelas pessoas “que se dizem os ‘franceses reais’” etc. têm razões bastante palpáveis para temer o Islã. Mas talvez não seja para elas que multicultural virou uma palavra ruim. Ao afirmar solenemente que “a questão não é o Islã, é a Europa”, os bem pensantes islamófilos estão sendo tudo menos multiculturalistas. Ao contrário, o que fazem aí é operar uma cisão conceitual essencialista entre o Islã e a Europa “real”. É questão de lógica elementar: para dizer que a questão não é o Islã, mas a Europa, é preciso supor que o Islã não faz parte da Europa original, e que, portanto, os problemas europeus de identidade não dizem respeito aos muçulmanos. Não poderia haver nada menos multiculturalista do que isso. Condena-se o pretenso essencialismo de europeus que se imaginam puros no exato instante em que se depura conceitualmente a Europa, pois, quando se trata de fazer dela um bode expiatório para os males do mundo, toda coerência será castigada. Os problemas europeus pertencem aos europeus, sugerem os especialistas. Mais um pouco e sairiam bradando em alto e bom som: “A Europa é dos europeus” – o que talvez lhes angariasse aplausos imprevistos dos simpatizantes de Jean-Marie Le Pen.

E o que pensam de tudo isso intelectuais e autoridades islâmicas? Em 1.º de janeiro de 2015, uma semana antes do ataque ao Charlie Hebdo, o presidente egípcio Abdel Fatah al-Sisi proferiu um discurso que ia na exata contramão da opinião média da intelligentsia ocidental. Nele, o então líder da maior nação islâmica do Oriente Médio afirmava que o Islã é, sim, parte do problema, e que, ao contrário do que sugere a lógica condescendente dos especialistas, os muçulmanos não podem se excluir do debate. Seguem alguns trechos: “É inconcebível que o pensamento que consideramos mais sagrado faça com que toda a Umma seja uma fonte de angústia, perigo, morte e destruição para o resto do mundo. Impossível. Aquele pensamento – não estou dizendo ‘religião’, mas ‘pensamento’ –, aquele corpus de textos e ideias por nós sacralizados ao longo dos séculos, a ponto de ser quase impossível nos afastarmos deles, está antagonizando o mundo inteiro. É possível que 1,6 bilhões de pessoas [muçulmanos] devam desejar eliminar o restante da população mundial (ou seja, 7 bilhões de pessoas) para que elas mesmas possam viver? Impossível. Tudo isso que estou lhes dizendo, vocês não perceberão se continuarem presos a esse jeito de pensar. Vocês precisam dar um passo para fora de si mesmos a fim de observá-lo e refletir sobre isso de uma perspectiva mais esclarecedora. Eu digo e repito mais uma vez que precisamos de uma revolução religiosa. Vocês, imãs, são responsáveis diante de Alá. O mundo todo, repito, o mundo todo aguarda o seu próximo movimento… Porque a Umma está sendo destroçada, destruída, perdida – e tudo isso por nossas próprias mãos”.

Al-Sisi não foi o único muçulmano a se manifestar sobre o tema. Ahmed Aboutaleb, prefeito de origem marroquina da cidade holandesa de Roterdã, dirigiu-se de maneira dura aos muçulmanos antiocidentais: “É incompreensível que vocês se voltem contra a liberdade. Mas se vocês não gostam de liberdade, pelo amor de Deus, façam as malas e vão embora. Isso é estúpido, incompreensível. Se vocês não conseguem achar o seu lugar aqui, sumam da Holanda”. Já o deputado dinamarquês Naser Khader, de origem síria, foi muito claro ao afirmar a responsabilidade primordial dos muçulmanos honrados no combate ao terror e ao extremismo. Numa crítica frontal à condescendência do Ocidente, e mais diretamente à posição de Barack Obama e François Hollande, disse: “Não estou de acordo com a opinião de que os terroristas nada têm a ver com o Islã. É também o Islã. Ao recusar reconhecê-lo, os ocidentais nos prestam um desserviço, a nós, muçulmanos democratas. Pois como lutar sem identificar claramente o inimigo?”.

O que esse contraste significa? Por que, enquanto muçulmanos honestos chamam a responsabilidade para si e convocam os fiéis a uma reflexão sobre o estado presente de sua religião, intelectuais progressistas no Ocidente adotam aquele tom arrogante e condescendente? A resposta é simples. Os primeiros lidam com a realidade, preocupados que estão em solucionar o problema do fundamentalismo e do terror. Já os segundos falam de outro assunto. Para estes, a realidade presente não passa de um meio para avançar a velha agenda ideológica de crítica ao Ocidente, ao sistema capitalista, à direita etc. Quando um intelectual progressista emite uma opinião tais como as descritas anteriormente, está falando, em última instância, de si mesmo – de sua culpa colonialista, de seus problemas familiares, de seus ressentimentos profissionais, de sua ânsia por uma religião política para chamar de sua, de suas utopias, de sua imagem entre os pares etc. Sendo, portanto, um problema de psicanálise, e não de análise social, não deveria jamais transcender as fronteiras do consultório…