No último sábado, 11 de junho, o jornalista Allan dos Santos, exilado nos EUA desde 2020, esteve presente na motociata organizada em Orlando por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, então em viagem ao país para participar da Cúpula das Américas. Em sua 12.ª conta no Instagram – pois as anteriores foram censuradas por ordem judicial –, Allan publicou um vídeo desafiando o ministro Alexandre de Moraes, que, ávido por vingança, move contra o jornalista uma implacável perseguição de natureza não apenas política como pessoal. “O Xandão não queria que eu participasse de motociata no Brasil. E aí o que Deus faz? Traz a motociata pra cá”, ironizou o fundador do portal Terça Livre.
Agindo sempre como lavanderia do STF, e firmemente imbuída da missão de prejudicar Bolsonaro “fingindo fazer jornalismo” (como admitiu em 2018 Fernando de Barros e Silva, então diretor de redação da revista Piauí), a autoproclamada imprensa “profissional” – do tipo que trata pejorativamente por “blogueiros” os novos concorrentes surgidos com a internet – pareceu mais furibunda que o próprio Moraes. Diante do ocorrido, dedicou-se à prática de seu esporte preferido, numa jogada ensaiada que tem se repetido à exaustão: a estigmatização estratégica dos alvos políticos da corte antibolsonarista, de modo a legitimar toda e qualquer ação perpetrada contra eles pela militância togada.
Foi então que Allan dos Santos passou a ser invariavelmente descrito como “foragido” da Justiça, uma pessoa cuja presença na motociata comprometeria o presidente da República. Ilustrativo dessa postura foram, por exemplo, os textos que Josias de Souza publicou em sua coluna no UOL. Num deles, intitulado “Allan dos Santos une Biden e Bolsonaro na cruzada de desmoralização do STF”, o blogueiro antibolsonarista (viu como é bom, Josias?) repreende o presidente americano por permitir que Allan permaneça “na vizinhança do Mickey Mouse sem ser incomodado”. Em seguida, confronta-o com a alternativa entre conceder asilo político ao jornalista brasileiro ou enviar o “fugitivo” para uma cadeia no Brasil. Se Biden nada fizer, diz o blogueiro do UOL, isso só pode significar uma adesão sua “à cruzada de Bolsonaro para desmoralizar o Supremo, o TSE e Moraes”. Como se vê, a gravidade da síndrome do antibolsonarismo psicótico não deve ser subestimada.
O esporte preferido da autoproclamada imprensa “profissional” tem sido a estigmatização estratégica dos alvos políticos da corte antibolsonarista, de modo a legitimar toda e qualquer ação perpetrada contra eles pela militância togada
Mas Josias de Souza não se limitou a pressionar o presidente americano a juntar-se à causa antibolsonarista. Noutro artigo, resolveu também dar um ultimato aos militares brasileiros, impondo-lhes um prazo de quatro meses para “optar entre a Constituição e Bolsonaro”. A tese do articulista é que, ao pôr em dúvida o sistema eleitoral brasileiro, o presidente Jair Bolsonaro prepara um golpe de Estado, e que, ao ecoar “as críticas infundadas do presidente às urnas”, as Forças Armadas estariam embarcando na aventura golpista.
A exemplo de Josias de Souza – que, antes de ser pautado pela psicose antibolsonarista, chegava até a manifestar razoável preocupação com o crescente autoritarismo do STF –, também Vera Magalhães exasperou-se diante das imagens de Allan dos Santos na motociata. “Evento do presidente da República no exterior com um foragido da Justiça posando para selfies. Chegamos a mais este ponto” – tuitou a ferrenha antibolsonarista. E, de modo geral, foi assim que o grosso da imprensa tratou o colega de profissão politicamente não alinhado: como um criminoso de alta periculosidade, um “foragido da Justiça”. Simples assim.
Mas essa é mais uma das tantas mentiras repetidas pela blogosfera antibolsonarista, ambiente que inclui a maioria dos veículos da imprensa autoproclamada “profissional”. Em primeiro lugar, a fim de estigmatizá-lo como “foragido”, essa imprensa precisou inverter a ordem temporal dos fatos, como se Allan tivesse viajado aos EUA depois de decretada a prisão preventiva, com o objetivo calculado de fugir da cadeia. Na verdade, Allan já estava nos EUA quando Alexandre de Moraes determinou a prisão, tanto que a ordem foi acompanhada de um risível pedido de extradição para o Brasil, obviamente ignorado pelas autoridades americanas, já que nada do que fez o jornalista exilado consta como crime no tratado de extradição assinado entre os dois países (e, de resto, tampouco na legislação brasileira, hoje substituída pela vontade dos ministros supremos).
Pior ainda, os blogueiros antibolsonaristas jamais mencionam o fato de que o decreto de prisão – bem como todas as demais medidas de força tomadas contra o jornalista e a sua empresa – tem um vício insanável de origem, pois decorre de um inquérito ilegal: o de número 4.781, conhecido como “inquérito das fake news” e, graças justamente às suas ilegalidades, apelidado pelo ex-ministro Marco Aurélio Mello de “inquérito do fim do mundo”. Que o inquérito é ilegal não é difícil de constatar. Se mesmo um leigo (como eu) consegue notar a aberração de um inquérito aberto pela autoproclamada vítima, que assume também as funções da promotor e juiz, o que dizer dos juristas honestos, obviamente horrorizados com tamanha teratologia jurídica? (Sobre o assunto, aliás, recomendo o livro O Inquérito do Fim do Mundo, em especial os capítulos 2 e 3, nos quais a juíza Ludmila Lins Grilo e o procurador de Justiça Marcelo Rocha Monteiro, respectivamente, expõem didaticamente as muitas ilegalidades do inquérito).
Cabe lembrar que, um mês após a sua abertura por Dias Toffoli, a então procuradora-geral Raquel Dodge determinou o arquivamento do inquérito, alegando que o procedimento violava o devido processo legal e o sistema penal acusatório consagrado na Constituição de 1988, segundo o qual o Ministério Público é titular exclusivo da ação penal. Sendo assim, o inquérito jamais poderia ter sido aberto de ofício (sem provocação) pelo STF. “O sistema penal acusatório é uma conquista antiga das principais nações civilizadas, foi adotado no Brasil há apenas 30 anos, em outros países de nossa região há menos tempo e muitos países almejam esta melhoria jurídica. Desta conquista histórica não podemos abrir mão, porque ela fortalece a justiça penal” – observava Dodge em sua manifestação pelo arquivamento, uma prerrogativa exclusiva do Ministério Público. Contudo, como se sabe, a ordem de arquivamento foi ignorada por Alexandre de Moraes, relator do inquérito.
Recorde-se também que, na qualidade de titular da ação penal, a PGR manifestou-se contrariamente à prisão do fundador do Terça Livre. E, mais uma vez, a manifestação foi ignorada por Alexandre de Moraes. Tendo, pois, começado ilegalmente, o inquérito assim prossegue até hoje, estendendo-se de modo indefinido, a fim de servir de instrumento de intimidação e perseguição política, tal como a que sofre Allan dos Santos.
Os militantes de redação estão sendo forçados a contorcionismos cada vez mais dramáticos para sustentar a mentira e manter a pose de bastiões de uma “democracia” marcada por censura, presos políticos e exilados
Ademais de reiteradamente estendido em termos de prazo, o inquérito do fim do mundo – e outros que lhe são correlatos, como o “inquérito das milícias digitais” (outrora “inquérito dos atos antidemocráticos”) – baseia-se em acusações estrategicamente genéricas e subjetivas, a maioria das quais referentes a crimes nem sequer tipificados em lei, e instituídos a golpes de retórica chinfrim. Foi nesse terreno, aliás, que a imprensa autoproclamada “profissional” desempenhou um papel crucial, agindo quase que em parceria com o STF, ao criar e repetir incessantemente os estigmas (“blogueiro bolsonarista”, “miliciano digital”, “disseminador de fake news”, “antidemocrático” etc.) com que, na ausência de qualquer materialidade delituosa, os inquéritos têm sido bizarramente fundamentados.
STF e imprensa “profissional” têm sabido explorar bem essa mutualidade de matriz antibolsonarista mútuo, cada qual visando aos seus interesses próprios. Por um lado, os supremos inquisidores (agentes de um sistema inquisitório, e não mais acusatório) apoiam-se na narrativa midiática para dar ares de legalidade e legitimidade à perseguição política contra os estigmatizados, confiantes de que, aos olhos da opinião pública formatada pelo establishment midiático, os “bolsonaristas” são cidadão de segunda classe, párias sociais contra os quais passa a valer tudo. Por outro, ao colar o rótulo de “bolsonarista” em quem bem entenda (e, para ser bolsonarista, basta não ser antibolsonarista), essa imprensa consegue indicar aos inquisidores os alvos a serem incluídos nos inquéritos.
Ao caracterizar Allan dos Santos como “blogueiro bolsonarista”, por exemplo, o objetivo é privar-lhe das garantias legais – entre elas a do sigilo de fonte – reservadas aos jornalistas, um procedimento que até mesmo o esquerdista Glenn Greenwald, desafeto de Allan, julgou temerário. A imprensa “profissional” faz isso por razões tanto de ordem político-ideológica, por ser majoritariamente formada por militantes de esquerda, quanto de ordem mercantil-monopolista, para esmagar a concorrência, livrando-se de novos veículos como o Terça Livre, que, até ser fechado por obra de Alexandre de Moraes, tinha mais audiência que boa parte dos meios de comunicação tradicionais.
É claro que, conquanto circunstancialmente interessante, a parceria com o poder absoluto acaba legando a essa mesma imprensa um fardo difícil de carregar no longo prazo, sobretudo na medida em que os abusos de autoridade vão se tornando mais escandalosos e menos legitimáveis, forçando os militantes de redação a contorcionismos cada vez mais dramáticos para sustentar a mentira e manter a pose de bastiões de uma “democracia” marcada por censura, presos políticos e exilados. A percepção incipiente desse fardo talvez explique, por exemplo, o ambíguo editorial que O Globo publicou hoje, 15 de junho.
Com o título “Ativismo do STF representa risco preocupante”, o texto principia por negar qualquer fundamento às críticas de Bolsonaro à corte, apenas para, em seguida, apontar a politização do STF – ou o jogo “fora das quatro linhas da Constituição”, como costuma dizer o presidente – como um risco à democracia. “A Corte, que deveria manter-se equidistante e alheia às paixões, parece a cada dia mais contaminada pelo noticiário, como se devesse prestar contas à opinião pública, não à lei ou à Constituição” – escreve o editorialista.
Terá sido um surto de má consciência de O Globo? Não sei. Sei que, apesar de tardia, a preocupação da imprensa “profissional” com a contaminação do STF pelo noticiário seria deveras salutar caso viesse acompanhada do interesse complementar pela contaminação do noticiário pelo antibolsonarismo da corte. Como não vem, resta a impressão de que o inusitado editorial de O Globo, antes que expressão de um zelo sincero pelo bom funcionamento das instituições republicanas, revela um desejo de apagar as pistas da participação do jornal na criação do monstro, no exato instante em que, com apetite cada vez mais incontrolável, a criatura ameaça estender seus tentáculos para além do bolsonarismo, até então o solitário boi de piranha da juristocracia que se agiganta sobre a nação.
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