Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Religião

O que o conceito de “catolicismo popular” nos omite sobre o cristianismo

nossa senhora aparecida catolicismo popular
Missa e procissão de Nossa Senhora Aparecida, em 2023, conduzida pelo cardeal dom Raymundo Damasceno: oposição entre "catolicismo popular" e Igreja hierárquica só existe na cabeça de sociólogos. (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Ouça este conteúdo

As ciências sociais e o cristianismo

Numa conferência sobre as relações entre ciência e religião, o antropólogo francês Bruno Latour fez uma observação curiosa: “Religião, na minha tradição, no canto do mundo de onde eu venho, tornou-se algo impossível de enunciar”. O sentido do comentário só ficaria claro cinco anos depois, quando o autor escreveu: “Enunciar algo religiosamente é extremamente difícil, dada a facilidade com que o fenômeno pode ser explicado ou interpretado por outros tipos de explicação, especialmente as explicações de ordem social”.

Considerando que, por “canto do mundo de onde eu venho”, Latour provavelmente se referisse às ciências sociais francesas, eu diria que, no canto do mundo de onde eu venho (ou seja, nas ciências sociais brasileiras), todas as religiões são perfeitamente enunciáveis, exceto uma: o cristianismo.

O espiritismo, o candomblé, a umbanda, a quimbanda, as religiões de tipo Nova Era, o budismo, o hinduísmo, as religiões ameríndias e até a bruxaria suscitam encanto acadêmico, quando não simpatia, traduzida epistemologicamente na busca por compreender a perspectiva interna dos fiéis e/ou adeptos. No caso do cristianismo, ao contrário, o que se vê normalmente é suspeição, traduzida epistemologicamente no desprezo pela perspectiva interna, substituída por análises e descrições completamente extrínsecas. Portanto, se o que diz Latour sobre as tentativas de explicação puramente sociológica (e extrarreligiosa) do fenômeno religioso talvez não se aplique a todas as religiões, certamente se aplica ao cristianismo, sobretudo ao catolicismo.

Essa dificuldade epistemológica tem sido observada por alguns cientistas sociais contemporâneos. Fenella Cannell, por exemplo, pioneira na antropologia do cristianismo, escreveu:

“Eu sugeriria que o cristianismo tem funcionado, de certo modo, como ‘o reprimido’ da antropologia ao longo do período de formação dessa disciplina (...) Muitos antropólogos que passaram a se interessar pelo cristianismo, portanto, o fizeram quase contra a própria vontade, vendo-o inicialmente como uma espécie de fenômeno secundário ou revestimento superficial aplicado por forças externas às culturas que estudavam.”

Nas ciências sociais brasileiras, todas as religiões são perfeitamente enunciáveis, exceto uma: o cristianismo

Mas é possível que o problema tenha razões mais profundas, na medida em que as ciências sociais se constituíram como domínio autônomo a partir de uma secularização da teologia cristã e, em seguida, de uma crítica à religião que serviu de matriz civilizacional da qual surgiram os seus primeiros estudiosos laicos. Como escreveu o teólogo John Milbank em Theology & Social Theory: Beyond Secular Reason, livro que o antropólogo americano Joel Robbins considerou a mais desafiadora obra teológica contemporânea: “As teorias sociais científicas são, elas próprias, teologias ou antiteologias disfarçadas”.

O desconforto epistemológico das ciências sociais no estudo do cristianismo tem, provavelmente, origem em Ludwig Feuerbach. Em A Essência do Cristianismo, de 1841, esse notório aluno de Hegel forneceu o modelo para as subsequentes teorias sociológicas da religião. Para Feuerbach, a religião surge como projeção hipostasiada das potências humanas. Deus é, na realidade, a imagem espelhada do homem. A sua hipótese projecionista pode ser sintetizada numa fórmula que, desde então, se tornou referência para todo ateu humanista: “O segredo da teologia está na antropologia”.

Ocorre que, de todas as religiões existentes, o cristianismo é a que menos cabe dentro do modelo feuerbachiano que serve de base às ciências sociais da religião. Isso porque o cristianismo põe em confronto dois princípios constitutivos fundamentais (ou quase mandamentos) dessas ciências: de um lado, o relativismo axiológico, segundo o qual não há religiões melhores ou piores, verdadeiras ou falsas; de outro, a necessidade de “captar o ponto de vista do nativo” (to grasp the native’s point of view), na conhecida formulação do antropólogo Bronislaw Malinowski.

Resta que, do ponto de vista nativo cristão, as crenças não se equivalem. O cristianismo seria, ademais de sui generis, também a única religião verdadeira. Para o cientista social, surge, então, o seguinte dilema: deve-se, também nesse caso, honrar o segundo mandamento e levar a sério o ponto de vista nativo, mesmo que à custa do relativismo axiológico? Ou, ao contrário, deve-se preservar esse primeiro mandamento e mandar às favas o ponto de vista nativo?

VEJA TAMBÉM:

Em relação ao cristianismo – e única e exclusivamente a ele –, a opção das ciências sociais tem sido invariavelmente a segunda. Na escolha de Sofia entre o ponto de vista nativo e o relativismo axiológico, o sociólogo e o antropólogo não hesitam em sacrificar o primeiro.

A noção de “catolicismo popular”

Foi a partir dessa escolha que, entre os anos de 1930 e 1960, consolidou-se nas ciências sociais brasileiras a noção de “catolicismo popular”, uma ideia importada da tradição francesa de sociologia religiosa, especialmente a da escola de Gabriel Le Bras e Henri Desroche, cujo objeto de estudo era o assim chamado “catholicisme populaire” na França rural. O termo servia para descrever formas não institucionalizadas de religiosidade católica, praticadas fora do controle direto da hierarquia: devoções, procissões, promessas, benzimentos, festas, milagres locais etc.

No Brasil, o conceito encontrou terreno fértil. Apesar de majoritariamente católica, a sociedade brasileira da época era marcada por grande autonomia das práticas leigas em relação ao clero, sobretudo nas zonas rurais. A Igreja oficial, ainda centralizada e clerical, tinha pouca presença efetiva fora das cidades. Assim, da perspectiva da teoria social, o “catolicismo popular” tornou-se um rótulo para se referir ao catolicismo supostamente vivido pelo povo, sem mediação do padre, em contraste com o “catolicismo oficial” (litúrgico, canônico, romano).

Os pioneiros no uso e consagração do termo no Brasil foram, em sua maioria, sociólogos e antropólogos católicos ou influenciados pela sociologia religiosa europeia. Em Casa-Grande & Senzala (1933) e textos posteriores, Gilberto Freyre já falava em um “catolicismo doméstico e patriarcal”, misturado a elementos africanos e indígenas. Apesar de não ter usado a expressão “catolicismo popular” no sentido técnico posterior, o mestre de Apipucos lançou a ideia de um catolicismo mestiço, informal, sensual e tolerante, mais um elemento constitutivo de sua visão do Brasil como uma terra de “antagonismos em equilíbrio”.

A ideia de “catolicismo popular” no Brasil não nasceu do povo, mas dos gabinetes da academia e da sociologia religiosa, como forma de diferenciar o catolicismo vivido do catolicismo ensinado

Em seus estudos sobre as religiões de matriz africana no Brasil, também Roger Bastide apontou o “catolicismo popular” como parte do sistema sincrético brasileiro: uma religiosidade maleável, aberta a fusões com o espiritismo e os cultos afro. O seu uso do termo ajudou a legitimar o sincretismo como característica “positiva” e “democrática” da religiosidade popular.

Poderíamos mencionar também autores como Edison Carneiro, Arthur Ramos e Cândido Procópio Ferreira de Camargo, os quais também relacionaram o que viam como “catolicismo popular” às religiões afro-brasileiras, entendendo-os como uma forma de resistência cultural. Em obras como Igreja e desenvolvimento (1971) e Católicos, protestantes, espíritas (1973), pode-se dizer que Ferreira de Camargo foi o primeiro a usar sistematicamente o conceito de “catolicismo popular”, um dos pés de seu esquema tripartite, que distinguia entre o “catolicismo oficial” (hierárquico, clerical e romano), o “catolicismo popular” (religião das massas, marcada por devoções e sincretismo) e o “catolicismo de elite” (intelectualizado e voltado à teologia e à política).

Com a ascensão das ciências sociais marxistas e da Teologia da Libertação – para as quais Carneiro e Ferreira de Camargo contribuíram –, o conceito ganhou nova função ideológica, incorporando-se ao modelo universal da “luta de classes” e consagrando-se como símbolo da religião do povo oprimido. Cientistas sociais como Maria Isaura Pereira de Queiroz, Pierre Sanchis, Luiz Alberto Gomes de Souza e Rubem César Fernandes argumentaram que, em oposição ao catolicismo institucional, o “catolicismo popular” era vivido de modo espontâneo, emocional e sincrético. Resistindo a um catolicismo “burguês”, por assim dizer, o catolicismo “proletário” seria mais autêntico e democrático, expressando a resistência criativa das camadas populares contra a “opressão” clerical.

Em tudo isso, nota-se, todavia, um saboroso paradoxo: a ideia de “catolicismo popular” no Brasil não nasceu do povo, mas dos gabinetes da academia e da sociologia religiosa, como forma de diferenciar o catolicismo vivido do catolicismo ensinado. A partir dos anos 1960, sobretudo, a ênfase sociológica no pretenso sincretismo do objeto – a mistura do catolicismo com o espiritismo kardecista e com as religiões afro-brasileiras –  serviu para obliterar o verdadeiro sincretismo, o do sujeito: a mistura (que a Igreja condenou ao terreno da heresia) entre catolicismo e marxismo. Foi essa filosofia mutante a grande responsável por romantizar o sincretismo, politizar a fé e, finalmente, separar o “povo” da “Igreja” – o objetivo principal.

VEJA TAMBÉM:

Incapaz de compreender a unidade viva do Corpo de Cristo, o cientista social brasileiro partiu-o em dois pedaços: de um lado, o “catolicismo oficial”, frio e hierárquico; de outro, o “catolicismo popular”, quente e espontâneo. Trata-se de uma dissecação feita com o bisturi na mesa de autópsia –  onde o cadáver, por mais bem descrito, encontra-se necessariamente morto.

O fato é que, nas ciências sociais pátrias, mesmo os analistas católicos abordaram o cristianismo não como fiéis, mas como sociólogos e antropólogos – o que talvez tenha beneficiado a teoria social brasileira, mas prejudicou a compreensão interna (o “ponto de vista nativo”) do fenômeno religioso em questão. De modo que, para uma renovada sociologia ou antropologia do cristianismo, talvez seja o momento de depurar a noção algo condescendente de “catolicismo popular”, recuperando o valor autêntico da piedade popular, a qual, longe de representar uma resistência à Igreja, é, pelo contrário, o seu coração vivo.

Afastada a ideologização e recuperado o ponto de vista nativo, é provável que venhamos a concluir que nunca houve um “catolicismo popular”, pois nenhum devoto – que proclama o Credo e recebe os sacramentos devidamente – se vê como católico popular, antipopular, transpopular ou coisa que o valha.

Enquanto os porta-vozes intelectuais do “catolicismo popular” comovem-se às lágrimas com o pobre devoto que, em suposta resistência ao papa, roga a um santo local, o pobre devoto mesmo comove-se às lágrimas com o papa. De fato, adjetivos como “popular” e “elitista” simplesmente não fazem sentido no catolicismo. Aplicá-los a essa religião é cometer aquilo que o filósofo Gilbert Ryle chamou de “erro categorial”, e faria tanto sentido quanto dizer que a fórmula de Báskara é doce ou salgada. Ilustrarei o ponto com uma anedota.

Enquanto os porta-vozes intelectuais do “catolicismo popular” comovem-se às lágrimas com o pobre devoto que, em suposta resistência ao papa, roga a um santo local, o pobre devoto mesmo comove-se às lágrimas com o papa

Francisco e Inocêncio: um encontro católico

Por volta do ano de 1210, São Francisco de Assis e o papa Inocêncio III protagonizaram um dos episódios mais emblemáticos da história da Igreja Católica. O jovem pregador de Assis, vestido de pano grosseiro e descalço, apresentou-se diante do pontífice mais poderoso da Idade Média, que recém convocara o IV Concílio de Latrão, reafirmado o primado papal e definido o ideal da “Cristandade” como uma sociedade ordenada sob a autoridade espiritual de Roma. A contradição aparente – entre a pompa pontifícia e a pobreza radical de Francisco – contém em si uma das tensões mais fecundas da vida cristã, que sempre reuniu, desde a fundação da Igreja por Jesus Cristo, as dimensões do espírito e da instituição, do carisma e da lei, da liberdade evangélica e da hierarquia eclesial.

Os cronistas franciscanos reconheceram desde cedo a importância desse encontro. Tomás de Celano, primeiro biógrafo do santo, relata que Inocêncio III, de início desconfiado do novo movimento e de seu líder, teve naquela noite uma visão onírica: viu toda a imponente basílica de São João de Latrão, em cujos altos terraços caminhava com tanta segurança, inclinando-se e contorcendo-se horrivelmente contra o sol, como se suas cúpulas e pequenas torres fossem abaladas por um terremoto. Ao olhar de novo, notou que uma figura humana sustentava a igreja como uma coluna esculpida viva; e a figura era justamente a do pastor esfarrapado que ele acabara de despachar no terraço da igreja.

Quer seja fato ou ficção, o episódio tornou-se uma metáfora da complementaridade entre a autoridade hierárquica e o impulso carismático, sem a qual a Igreja não se mantém em equilíbrio. Importa é que o hierático papa realmente se convenceu de que aquele homem simples era instrumento de renovação espiritual, e a fundação da Ordem dos Frades Menores acabou sendo por ele autorizada.

Retomado por São Boaventura na Legenda Maior (1263), o episódio tem uma dimensão simbólica profunda. Francisco não é o inimigo da Igreja institucional, mas o seu sustentáculo espiritual. Por sua vez, Inocêncio não é o opressor do carisma, mas o discernidor prudente que o reconhece e o integra. A história de ambos é, portanto, a história de uma síntese providencial entre autoridade e santidade, cuja harmonia é sempre frágil e renovada. A Igreja é o lugar onde os aparentes paradoxos se integram, onde o “carisma” se une à “instituição”, o “popular” ao “solene”, a “compaixão” à “autoridade” – todos trabalhando conjuntamente para a glória de Deus.

VEJA TAMBÉM:

O impacto do gesto de Francisco não pode ser subestimado. Para bem compreendê-lo, é preciso situá-lo no contexto do pontificado de Inocêncio III (1198–1216), um dos mais enérgicos e ambiciosos da história papal. Formado em Teologia e Direito Canônico em Paris e Bolonha, Lotário de Segni (nome de batismo de Inocêncio) encarnava o ideal do papa como soberano universal. Afirmava que o pontífice, “menor que Deus, mas maior que o homem”, exercia o sol e a luz sobre o mundo cristão. Sob seu governo, o papado atingiu um grau de centralização e de autoridade sem precedentes, intervindo nas disputas entre reis, organizando cruzadas, reformando o clero e combatendo heresias.

Inocêncio via a Igreja como corpo jurídico e político, cuja pureza dependia da disciplina e da obediência. Sua concepção de poder espiritual era teologicamente coerente com o pensamento agostiniano e com a escolástica nascente: o papa é o vigário de Cristo, e a hierarquia é o instrumento da graça.

Contudo, o mesmo século testemunhava o surgimento de movimentos leigos, penitenciais e milenaristas (dentre eles o dos valdenses e o dos cátaros), os quais, sob a bandeira da pobreza evangélica, questionavam o luxo e a corrupção do clero. Sob o pontificado de Inocêncio, muitos desses movimentos foram condenados como heréticos.

Francisco de Assis surge nesse ambiente de efervescência mística e questionamento institucional. Mas, ao contrário de outras lideranças monásticas e milenaristas do período, ele jamais se colocou contra a Igreja. Sua originalidade reside, justamente, numa fidelidade aparentemente paradoxal. O seu voto de pobreza não era uma revolta, mas uma forma extrema de comunhão. O Evangelho era seu único estatuto, e o amor ao Cristo pobre levou-o a ver na obediência ao papa uma extensão da obediência ao próprio Cristo. Eis o que escreveu em seu testamento aquele que se poderia considerar como o mais “popular” dos santos: “O Senhor me revelou que disséssemos: ‘Somos menores e súditos de todos’”.

Inocêncio III e São Francisco tinham plena consciência de que a santidade e a autoridade não são inimigas, mas pulmões de um mesmo organismo respirando o mesmo Espírito

A humildade evangélica, que para muitos de sua época soava como provocação, em Francisco era uma dócil reverência pela autoridade magisterial da Igreja. Ao contrário dos parteiros do “catolicismo popular”, il Poverello sabia que o catolicismo não é um campo de batalha, mas um organismo – do qual o papa e o romeiro, o teólogo e a beata, são os órgãos, necessariamente complementares.

Inocêncio também o sabia, daí seu esforço institucional para impedir toda separação entre os membros do Corpo místico e institucional de Cristo. O papa e o frade tinham plena consciência de que a santidade e a autoridade não são inimigas, mas pulmões de um mesmo organismo respirando o mesmo Espírito. Portanto, o catolicismo não precisa ser “popular” nem “democrático”, pois o Evangelho não é obra de assembleia. A verdade revelada não depende de maioria, porque nasceu do sangue de um só.

O catolicismo “popular e democrático” é, na verdade, uma caricatura secular do cristianismo, promovida por uma intelligentsia que confunde humildade com permissividade, compaixão com indiferença e comunhão com sincretismo. Ao proclamarem que “Deus está em tudo”, seus representantes logo concluem que “tudo é Deus” – quer seja o Crucificado, quer uma entidade qualquer de esquina.

O fato é que nunca houve uma reinvenção do catolicismo por parte do povo brasileiro, o qual, reza a lenda acadêmica, o teria fundido, sem o ônus de sua desnaturação, ao espiritismo, ao candomblé e à umbanda. Uma tal mistura – que alguns populares talvez pratiquem por ignorância, e a academia decerto exalta por ideologia – poderia até resultar em algo “popular”, mas jamais esse algo poderia ser caracterizado como catolicismo, que sempre condenou o culto a falsos ídolos (dentre eles “espíritos” e “orixás”). Portanto, o tão decantado sincretismo não é catolicismo popular, mas catolicismo desidratado. É o ouro misturado ao barro sob aplausos de um ourives cego. É um ecumenismo sem Cristo, o filho do Deus vivo.

O catolicismo “popular e democrático” é, na verdade, uma caricatura secular do cristianismo, promovida por uma intelligentsia que confunde humildade com permissividade, compaixão com indiferença e comunhão com sincretismo

Em suma, o catolicismo não se mede por cores, tambores ou sotaques, mas pela confissão do Credo. O Espírito Santo não se manifesta no pluralismo das crenças, mas na unidade do amor a Deus. Confundir a fé no Deus que se fez criatura com a crença em criaturas divinizadas não é propriamente ecumenismo, mas adultério espiritual. Daí que o “catolicismo popular” das ciências sociais não passe de um sentimentalismo religioso, uma estrutura espiritual sem coluna vertebral, que vende ao público uma soteriologia alegadamente mais democrática: promete salvar a todos – só não se sabe exatamente de quê.

A dita democracia do “catolicismo popular” é horizontal: todos teriam direito a criar o seu próprio trono. Já a democracia da Igreja é vertical: todos são iguais diante do mesmo trono. Esta devoção nasce da fé. Aquela, do orgulho – esse mesmo, o de sempre, o do pecado original. A hierarquia da Igreja existe precisamente para proteger o povo dessa confusão piedosa. A autoridade eclesial é a mãe que impede o filho de beber veneno pensando que é vinho. O bispo e o papa não são senhores, mas guardiões da chama sagrada do Círio Pascal, no qual os devotos acendem e reacendem as suas velas. Tão desprezado pelos acadêmicos, o assim chamado catolicismo “oficial” é a cerca que protege o jardim da fé.

Não houve ecumenismo maior que o de São Francisco, que em tudo e em todos enxergava o rosto de Cristo – no irmão Sol, na irmã Lua, no irmão lobo. Tampouco o houve maior que o de Inocêncio, capaz de entrever a face de Cristo naquele homem com roupas esfarrapadas de camponês, a quem inicialmente havia atribuído a identidade de um reles pastor de ovelhas.

O catolicismo “do povo” só é católico enquanto permanece unido ao catolicismo “de Roma”. Separado, vira pastiche

Conclui-se que a história da Igreja é feita de contrastes que se amam – como se amaram Francisco e Inocêncio. Entre o brilho das coroas e o pó dos caminhos, entre a bula papal e a oração, entre o altar e a gruta, move-se o mesmo sopro que, desde Pentecostes, alterna poder e humildade como se fossem as duas asas da mesma pomba.

Não há, pois, dois catolicismos. Ou três, ou quatro. Há apenas um, vivo, que se expressa de mil modos, mas que permanece sempre fiel ao mesmo Credo, à mesma Eucaristia e à mesma Cruz. O catolicismo “do povo” só é católico enquanto permanece unido ao catolicismo “de Roma”. Separado, vira pastiche – um cemitério de símbolos onde o Espírito já não sopra.

O verdadeiro povo de Deus segue rezando o terço, confessando-se, comungando e acendendo velas – não para qualquer divindade, mas para o Cristo vivo. É esse povo humilde, obediente e livre que, de braços dados com o clero, sustenta a Igreja, assim como o Francisco onírico de Inocêncio sustentou a basílica de Latrão.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.