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A direita brasileira e as Forças Armadas
| Foto: Edvaldo Belitardo

Em 15 de abril de 1964, o general Humberto de Alencar Castello Branco comparecia ao Congresso Nacional para tomar posse como o 26.º presidente da República. A cerimônia ocorria duas semanas após os eventos que culminaram na queda de João Goulart, eventos que os militares da época decidiram batizar de “revolução”; a esquerda, de “golpe”; e parte da nova direita contemporânea – a meu ver, com mais razão –, de “contragolpe”. No discurso inaugural, Castello Branco exaltou o movimento cívico que se levantou em defesa da democracia, movimento por ele descrito como “uma Revolução nascida nos lares, ampliada na opinião pública e nas instituições e, decisivamente, apoiada nas Forças Armadas (...) uma Revolução a assegurar o progresso, sem renegar o passado”.

Em certo trecho do pronunciamento, o então chefe do Estado-Maior do Exército deu vazão à mentalidade tipicamente positivista da instituição militar brasileira. “Caminharemos para a frente, com a segurança de que o remédio para os malefícios da extrema-esquerda não será o nascimento de uma direita reacionária, mas o das reformas que se fizerem necessárias”. E, com efeito, a promessa foi mantida ao longo das duas décadas de regime militar brasileiro, que, embora seja retratado por nossa historiografia politicamente enviesada como uma “ditadura de direita”, tudo fez para impedir a consolidação de uma direita civil no país, previamente rechaçada por estigmas tais como “reacionária”, “extremista” e “radical”. Que boa parte da direita brasileira contemporânea se mostre decepcionada pela indiferença demonstrada pelos comandantes em relação aos manifestantes em frente aos quartéis-generais – bem como pela inação em face da tomada revolucionária do poder pelo socialismo do Foro de São Paulo – revela, talvez, uma má interpretação dos eventos dos anos 1960.

Embora seja retratado por nossa historiografia politicamente enviesada como uma “ditadura de direita”, o regime militar tudo fez para impedir a consolidação de uma direita civil no país, previamente rechaçada por estigmas tais como “reacionária”, “extremista” e “radical”

Antes de tudo, é preciso avaliar corretamente o sentido do positivismo no seio das nossas Forças Armadas. Em primeiro lugar, deve-se compreender o positivismo como uma espécie de movimento cujo gênero poderíamos chamar, grosso modo, de progressismo. Sim, primo próximo de movimentos intelectuais de massa como o marxismo e o liberalismo, o positivismo compartilha com esses outros rebentos do Iluminismo a crença utópica de que, graças ao progresso tecnocientífico, a humanidade atingiria um estágio de desenvolvimento em que a política se tornaria supérflua. De acordo com essa utopia, a mentalidade irracional e ultrapassada que havia caracterizado a humanidade ao longo dos séculos, e sobre a qual se haviam fundado todas as disputas político-ideológicas vigentes, tenderia mais cedo ou mais tarde a ser extinta pelo avanço do conhecimento e pela universalização da razão.

Assim entendido, o progressismo caracteriza-se principalmente por uma concepção teleológica e unilinear da história, que seria dotada de um fim predeterminado para o qual toda a humanidade, independentemente dos respectivos estágios evolutivos dos variados grupos humanos, caminharia necessariamente. Decorre dessa crença uma série de filosofias tripartites da história, começando por iluministas como Condorcet e Turgot, passando por Comte e sua lei dos três estados (teológico, metafísico e positivo), e chegando aos modelos da antropologia evolucionista, a exemplo da divisão entre as fases de selvageria, barbárie e civilização proposta pelo antropólogo americano Henry Lewis Morgan, que tanta influência exerceu sobre Marx e Engels.

Nesse esquema tripartite, concebe-se o último estágio como um “fim da história”, uma época de plenitude, de império da racionalidade e da ciência, na qual o pensamento irracional, supersticioso e mágico terá sido extirpado da mente humana. Em Comte, esse último estágio é chamado de “positivo” ou “científico”. Daí advêm as recorrentes propostas – incluindo as contemporâneas, referentes à gestão de pandemias – de uma sociedade inteiramente administrada pela ciência, na qual a política (a ação de uma vontade subjetiva contra outra) será substituída pela técnica (a ação de um sujeito sobre um objeto).

Nessa etapa da evolução histórica, creem os positivistas e demais progressistas, a política se tornará dispensável, porque todos os homens passarão a compreender a realidade da mesma maneira, ou seja, racional e objetivamente. O corolário é que quem assim não a compreender será tido por algo menos que um homem, no pleno sentido da palavra. Algo como um louco, um criminoso, uma fera, um “negacionista”... Curiosamente, vem do marxismo, e não do positivismo, uma das formulações mais emblemáticas dessa crença. Ela está no Anti-Dühring, no trecho em que Friedrich Engels anuncia a utopia do fim do Estado, que se seguiria à tomada do poder pelos proletários: “Em todos os domínios, a interferência estatal nas relações sociais torna-se supérflua, e acaba por morrer de inanição; o governo das pessoas é substituído pela administração das coisas”.

Os generais brasileiros de 1964 eram positivistas e, portanto, progressistas nesse sentido. Daí que, embora fossem difusamente anticomunistas, sobretudo no enfrentamento à luta armada, mostravam-se, no âmbito da história das ideias, bem mais hostis a conservadores do que a marxistas, com quem partilhavam uma série de premissas filosóficas. Eis por que o regime militar tenha investido muito mais energia contra o conservadorismo que contra o marxismo cultural. Se o primeiro foi simplesmente extirpado do debate público, o segundo floresceu justamente nesse período, sob a proteção e a benevolência do regime.

Embora fossem difusamente anticomunistas, os generais de 1964 mostravam-se, no âmbito da história das ideias, bem mais hostis a conservadores do que a marxistas, com quem partilhavam uma série de premissas filosóficas

Num antigo texto sobre o destino da filosofia brasileira, o intelectual colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, ex-ministro de Bolsonaro, dá pistas sobre o desaparecimento geral de uma intelligentsia de direita no país:

“Os artífices dessa façanha (ocorrida nas três últimas décadas do século passado) foram os burocratas da Capes no setor da filosofia, comandados pelo padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz. Os fatos são simples: no período em que o general Ruben Ludwig foi ministro da Educação, ainda no ciclo militar, os antigos ativistas da Ação Popular Marxista-Leninista receberam, à sombra do padre Vaz, a diretoria dos conselhos da Capes e do CNPq, na área mencionada. Especula-se que o motivo da concessão fosse uma negociação política: eles prometiam abandonar a luta armada. A preocupação dos militares residia no fato de que foi esse o único agrupamento da extrema-esquerda que não se organizou explicitamente em partido político. Os grupos da denominada ‘direita’ (conservadores, ultraconservadores, liberais, liberais-sociais etc.), toda essa imensa gama, ficou do lado de fora dos favores oficiais, no período militar e após.”

Portanto, justamente ao contrário do que afirmaram alguns intelectuais de esquerda do período – e penso, por exemplo, em Roberto Schwarz e no seu conhecido ensaio Cultura e Política, 1964-1969 –, a hegemonia cultural da esquerda não surgiu apesar da ditadura de direita, mas justamente por causa dela. Essa hegemonia é um efeito da concepção particularmente autoritária e arrogante da elite fardada sobre a relação entre Estado e sociedade, concepção fundada no fetiche positivista da técnica e da ciência. Num estilo de governo que muitos chamam de “bonapartismo”, o regime militar caracterizou-se pela hipertrofia do Poder Executivo, que, pretendendo pairar tecnocraticamente acima das disputas ideológicas, restringiu a participação política e se afirmou como representante direto e verdadeiro da “nação”. Nesse processo, a direita civil desapareceu do país, e todo o espaço do debate público foi ocupado pelos símbolos, valores e referências da esquerda não armada, para a qual, nesse sentido específico, o regime militar acabou sendo uma mãe. Seguiremos daí no próximo artigo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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