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“O perigo não está nas máquinas, senão no número sempre maior de homens habituados, desde a infância, a desejar apenas aquilo que as máquinas podem fornecer.” (Georges Bernanos, A França contra os Robôs, 1947)
A tecnocracia, como já alertara Bernanos em A França contra os Robôs, é a forma moderna da velha tentação totalitária: substituir o homem – ser moral, livre e imprevisível – pela máquina, previsível, administrável, “otimizada”. Nesse imaginário mecanicista, a política é apenas uma sujeira na engrenagem, um ruído para o qual se prescreve o silenciamento. Os políticos devem ser substituídos por aqueles que acreditam possuir o método científico capaz de dissolver, como num tubo de laboratório, os dramas reais da vida em sociedade: os tecnocratas.
Também em sua Meditação sobre a Técnica, Ortega y Gasset advertiu para o risco de a técnica deixar de ser instrumento e se converter em fim. A modernidade – dizia ele – emancipava a técnica de sua condição de ferramenta, transformando-a em princípio organizador da própria vida. Deixamos de perguntar o que se deve fazer, passando a indagar apenas o que é mais “eficiente”. Não discutimos o que é justo, mas o que é “otimizado”. Os fins já não são objeto de deliberação política: chegam prontos, impostos como parâmetros de um software moral universal. Ao cidadão resta obedecer ao cálculo. Essa deserção da política prepara o terreno – fértil e úmido – onde germina o tecnocrata.
Foi exatamente essa mentalidade que o cientista político Robert Putnam identificou nos burocratas de alto escalão da Europa industrial dos anos 1970: traços psicológicos e intelectuais que definem com assustadora precisão a tecnocracia contemporânea – avessa à política, hostil ao debate democrático, convencida de sua própria infalibilidade, apaixonada por soluções “científicas” e “pragmáticas”, e persuadida de que a política deve obedecer aos especialistas.
Setores da direita acreditaram que o grande problema nacional era a “polarização ideológica”, como se fosse possível fazer política sem ideologia e sem visão de mundo, e com isso ajudaram a tecnocracia a se fortalecer
O tecnocrata clássico, diz Putnam, é alguém que tem horror ao conflito, aversão à democracia aberta e desprezo pelos políticos – incapaz de enxergar a política como deliberação moral entre cidadãos livres, mas apenas como ruído inconveniente. Acredita que problemas humanos são solucionáveis por equações, indicadores e comitês de especialistas. Como todo sacerdote secular desde o Iluminismo, convence-se de que qualquer discordância deriva de ignorância ou má-fé.
Não surpreende que esse tipo humano, uma vez dotado de poder institucional, tenda ao absolutismo: o absolutismo do laboratório, da “norma técnica”, do parecer irrefutável, do decreto de associação de classe. A política – com sua incerteza e disputa – parece-lhe um vício pré-moderno. Para bem gerir, precisa que sua vontade seja obedecida de imediato.
Foi precisamente isso que aconteceu no Brasil na última década: a instalação de uma variante tecnocrática de tipo judicial. A juristocracia é a forma brasileira da tecnocracia. Sua dramaturgia é togada, seus atores vestem preto, seu dialeto é o jargão jurídico, sua liturgia são decisões monocráticas que se pretendem definitivas, irrevogáveis, hipertécnicas. Sob a máscara científica da “ciência do direito”, esconde-se a velha tentação totalitária: governar sem povo – e sobretudo contra o povo –, como bem observou um recente editorial desta Gazeta do Povo.
A aliança entre o lulopetismo e essa elite tecnoburocrática de toga não é acidental. A esquerda percebeu que, numa sociedade conservadora e politicamente mais participativa, sua utopia não poderia ser implantada pela persuasão democrática. Restava-lhe o ativismo judicial: o poder de impor normativamente, sob o disfarce da neutralidade técnica, aquilo que não poderia conquistar pelas urnas. Faltava-lhe apenas a ocasião – e ela veio.
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A pandemia de 2020 ofereceu à esquerda e aos seus camaradas de toga a oportunidade perfeita para converter a disputa político-ideológica em cruzada sanitária. “Ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus”, disse à época o hoje descondenado-em-chefe. O relativismo pós-moderno que durante décadas celebrara os “saberes populares” e os “conhecimentos não ocidentais” foi subitamente substituído por uma devoção extemporânea à “técnica” e à “ciência”, definidas ad hoc como tudo aquilo que atrapalhasse ou constrangesse o primeiro governo de direita da Nova República. A retórica sanitária virou arma política, e o estado de exceção científico-jurídico – vendido como prudência iluminista – serviu para interditar o debate público, suprimir liberdades e ensaiar uma tutela ilustrada sobre a cidadania. Nunca a tecnocracia brilhou tanto. Nunca a juristocracia teve campo tão vasto para transformar preferências políticas em imperativos científicos.
Mas a verdade incômoda é que a tecnocracia não triunfou apenas graças à esquerda. Parte da própria direita brasileira, adepta do centrismo como filosofia e técnica de governo, contribuiu para esse processo – voluntária ou involuntariamente. É preciso coragem para reconhecer. Não foram poucos os setores da direita que adotaram, por formação ou temperamento, um discurso gerencial, positivista e antipolítico. Acreditaram que o grande problema nacional era a “polarização ideológica”, como se fosse possível fazer política sem ideologia e sem visão de mundo.
O caso emblemático foi a declaração de Tarcísio de Freitas após ser eleito governador de São Paulo: “Não sou bolsonarista raiz” e “não vou entrar em guerra ideológica”. Muitos interpretaram como moderação. Na verdade, é sintoma de vício tecnocrático: a fantasia de que política pode ser administrada como planilha de Excel; de que conflito moral é opcional; de que governar é apenas gerenciar variáveis. Não é. Nunca foi. E nunca será. O Estado não é empresa, e vontades políticas não são dados estáveis.
Ao abdicar da política, essa direita administrativa deixou livre o campo cultural e institucional para a tecnocracia togada, que – pela força de um Estado policial – garantiu a hegemonia da visão de mundo da esquerda. Em política, o vácuo não dura. É sempre preenchido pelo agente mais organizado. No Brasil, há muito tempo, esse agente é o poder judicial. A tecnocracia triunfa quando seus adversários se envergonham da política. E, nesse sentido, a direita tecnocrática, apoiada pelo Centrão e pelos operadores do mercado financeiro, foi cúmplice da juristocracia crescente.
Que o sobrenome Bolsonaro volte ao pleito – ainda que por intermédio do filho Flávio – é o mínimo que uma oposição ao regime PT-STF pode oferecer
É nesse cenário que a escolha de Flávio Bolsonaro como nome da próxima disputa presidencial ganha força simbólica. Não se trata apenas de uma candidatura, mas de uma tentativa de restaurar aquilo que a tecnocracia se empenha em destruir: a própria política. Num país em que a vontade popular foi gradualmente substituída pela vontade dos “técnicos”, dos “especialistas”, dos “garantidores da ordem democrática” autoinvestidos de autoridade sagrada, uma campanha explicitamente política – que assume o conflito, disputa valores e reivindica o direito do povo de decidir – é um gesto de reparação histórica.
Jair Bolsonaro foi arrancado das urnas por um ato político travestido de técnico, uma negação da política legítima, feita pelos canais representativos. Que seu sobrenome volte ao pleito – ainda que por intermédio do filho – é o mínimo que uma oposição ao regime PT-STF pode oferecer. Não por cálculo eleitoral (a eleição de 2026, como a de 2022, já nasce sob o véu da ilegitimidade), mas por afirmação política.
O Brasil está diante de uma encruzilhada que poucos percebem. Ou devolvemos à política o seu lugar – e à vontade popular sua soberania – ou continuaremos a deslizar, serenos e anestesiados, rumo a um regime de especialistas sem rosto, sem voto e sem limite. A muitos, a tecnocracia parece inofensiva porque não grita, não bate na mesa, não usa botas. Mas é justamente essa sua força: impõe-se não pelo terror ostensivo, mas pela retórica da inevitabilidade – “não há alternativa”, “é o método científico”, “é a interpretação correta”, “é a técnica”.
Contra essa fatalidade tecnocrática, a política é a única força realmente viva. Em breve, o Brasil decidirá se quer ser governado por homens ou mecanismos; por representantes sujeitos ao erro e à crítica, ou por especialistas que se declaram infalíveis. A candidatura de Flávio Bolsonaro, goste-se ou não, recoloca essa escolha no centro do debate nacional. E, num país já farto da submissão a uma juristocracia cada vez mais despudorada, não há gesto mais profundamente democrático do que este.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




