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“Sou um socialista na ideologia e um capitalista no método” (Maurice Strong, primeiro chefe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e secretário-geral das conferências da ONU para o clima, em Estocolmo [1972], e no Rio de Janeiro [1992])

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As informações a seguir estão no livro EUSSR: The Soviet Roots of European Integration (2004), do escritor e dissidente soviético Vladimir Bukovsky, quem o The New York Times qualificou certa vez como “herói de proporções lendárias no movimento dissidente soviético”. Junto com o advogado Pavel Stroilov, coautor do livro, Bukovsky teve acesso aos arquivos do Politburo soviético em Moscou, de onde extraiu os dados, até então confidenciais, que serviram de base para a obra.

Era o dia 26 de outubro de 1990, e fazia frio no outono madrilenho. Num dos confortáveis salões do Palácio de Moncloa – adornado, a pedido do ilustre residente, com bonsais, pedras talhadas da Estremadura e quadros de Miró –, Felipe González Márquez, secretário-geral do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e terceiro presidente do Governo do Reino da Espanha desde a redemocratização, explicava ao amigo Mikhail Gorbachev a sua complexa teoria do socialismo moderno.

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No ano anterior, mais especificamente em 3 de maio de 1989, o ministro espanhol de Relações Exteriores, Francisco Fernández Ordóñez, já havia se encontrado com Gorbachev em Moscou, a quem dissera o seguinte: “O sucesso da perestroika significa uma única coisa – o sucesso da revolução socialista nas condições contemporâneas”. E reforçou: “O sucesso das ideias do socialismo na comunidade mundial contemporânea depende do sucesso da perestroika”.

No encontro em Madrid no ano seguinte, Gorbachev ouviria o seguinte de Felipe Gonzáles: “Hoje, a essência da revolução mundial é a comunidade internacional unificada. Devo dizer que, ao longo dos anos, análises políticas e ideológicas confusas – pelas quais, em alguma medida, somos todos responsáveis – fetichizaram a oposição entre capitalismo e socialismo... Hoje, chego a uma conclusão assaz estranha. Desde que chegamos ao poder, tenho lutado com os meus camaradas de partido para fazê-los entender que a economia de mercado é o melhor instrumento para alcançarmos os nossos principais objetivos”.

Os encontros com os socialistas espanhóis haviam se dado no contexto da nova política soviética de aproximação com a Europa Ocidental, decidida pelo Politburo em reunião de 26 de março de 1987, e sintetizada por Gorbachev no lema “abraçar para sufocar”. Nos altos escalões da Nomenklatura, o projeto já havia recebido o nome de propaganda que, dali a dois anos, o último líder soviético apresentaria ao mundo em discurso famoso na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa: a “Casa Comum Europeia”.

Na reunião no Politburo, dissera Gorbachev aos camaradas: “Não devemos tomar decisões sobre quaisquer temas sem levar a Europa em conta. Precisamos disso mesmo em nossos assuntos domésticos, para a perestroika. Mas na política externa a Europa é insubstituível. É a burguesia mais forte do mundo, não apenas economicamente, mas também politicamente. Vejam, o Japão parecia ter disparado na frente, mas de repente a Alemanha Ocidental deu um salto em matéria de ciência e tecnologia”.

A avaliação da casta dirigente soviética era a de que o regime havia entrado em crise estrutural, sobretudo na seara da economia e do desenvolvimento tecnocientífico. Por um lado, o modelo econômico de planejamento central, improdutivo e dispendioso por definição, havia levado a Rússia à bancarrota. Por outro lado, o próprio sucesso em exportar esse modelo para outros países começava a se tornar um peso.

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Em outras palavras, a Nomenklatura parecia ter chegado à conclusão de que a “base” econômica e tecnológica da URSS se tornara demasiado estreita para as suas ambições globais, e a única saída era usar o potencial do “inimigo de classe” nesse terreno. “Uma tarefa importante é usar o potencial científico e tecnológico da Europa Ocidental a nosso favor, sobretudo porque nossos parceiros do Leste empacaram aí. A nossa reaproximação com o Ocidente facilitará o seu trabalho” – explicou Gorbachev aos camaradas.

Numa série de delicadas e controversas negociações – haja vista as velhas rivalidades entre socialistas e comunistas –, as lideranças soviéticas e as da esquerda europeia chegaram à conclusão de que, se o processo de integração da Europa (e quiçá do mundo) era inevitável, deveria ser criada uma frente ampla de esquerda – incluindo comunistas, socialistas, anarquistas e socialdemocratas – para exercer controle sobre o processo.

Em 1986, em visita a Moscou, o secretário-geral do Partido Comunista Italiano, Alessandro Natta, resumiu o espírito da coisa: “Partimos do pressuposto de que a comunidade europeia é uma realidade, ou seja, uma espécie de campo de batalha no qual as forças políticas de esquerda devem se mover”.

A aliança da esquerda europeia, é claro, seria pró-soviética. Portanto, a perestroika também era vista pelos socialistas e socialdemocratas europeus como um meio de revigorar a imagem do sistema político da Cortina de Ferro. Para o próprio Gorbachev, por outro lado, o movimento de “liberalização” do comunismo sempre foi muito mais voltado para fora, visando à esquerda e centro-esquerda europeia, do que para dentro.

Em 6 de julho de 1988, no discurso secreto para seus camaradas do Pacto de Varsóvia (o mesmo no qual detalhou o plano da “Casa Comum Europeia”), Gorbachev elaborou o famigerado conceito de “imagem do inimigo” – que, como vimos no artigo da semana passada, começou a ser repetido pelos principais formuladores da perestroika, a exemplo de Georgy Arbatov e Eduard Shevardnadze: “Em primeiro lugar, a nova imagem do socialismo enfraquece os argumentos tradicionais dos círculos direitistas no Ocidente, usualmente baseados na imagem do inimigo – o ‘monstro totalitário’ socialista. Abertamente hostil ao socialismo, o front conservador, fortalecido no Ocidente no início dos anos 1980, começa a decair”.

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A julgar pelo discurso, a perestroika destinava-se muito mais a transformar a situação política no Ocidente do que na URSS. Seu objetivo precípuo era o de “permitir que o socialismo possa moldar a política mundial mais ativa e amplamente, influenciá-la de maneira mais efetiva e estimular mudanças positivas no ambiente global”. A ideia de “Casa Comum Europeia” – na qual Gorbachev insiste até hoje – inseria-se nesse projeto de moldar a política mundial, e se aproximava muito da utopia pan-europeia dos entusiastas da União Europeia (UE). Como afirmou Pascal Lamy, ex-diretor-geral da OMC e ex-presidente da Comissão Europeia: “Dentre tantas tentativas de integração regional, a UE permanece sendo o laboratório da governança internacional – o lugar onde a nova fronteira tecnológica da governança internacional está sendo testada”. Noção similar já havia sido expressa por Jean Monnet, o grande mentor intelectual do projeto europeu: “As nações soberanas do passado já não podem fornecer um quadro de referência para a resolução de nossos problemas presentes. E a comunidade europeia, ela mesma, não é mais que um passo rumo às formas organizacionais do mundo de amanhã”.

No dia 26 de novembro de 1988, em reunião a portas fechadas com Gorbachev em Moscou, o presidente francês François Mitterrand expôs a sua visão sobre aquela convergência entre as perspectivas ocidental e soviética sobre a integração europeia: “A construção de uma ‘Casa Comum Europeia’ é uma grande ideia. Qualquer um com imaginação e coragem intelectual há de vislumbrar facilmente o continente europeu, com todos os seus países, como uma nova entidade, conectada por relações de um novo tipo, num cenário onde cada um permaneça fiel a si próprio, mas todos cooperem em vista de objetivos comuns. Pessoalmente, considero a realização dessa ideia minha prioridade máxima”.

Tudo muito bonito, é claro. O problema é que alguns aspectos decisivos dessa utopia kantiana de integração e “paz perpétua” foram omitidos dos discursos públicos de homens como Gorbachev, Mitterrand e González. À época, quase ninguém foi informado, por exemplo, de que as estruturas europeias em comum seriam baseadas não apenas na Comunidade Econômica Europeia (CEE), mas também na organização econômica do Pacto de Varsóvia: o Conselho de Assistência Econômica Mútua (CAEM). E, dado que a URSS era o membro mais forte do CAEM, claro está que se tornaria o grande chefe da “Casa Comum Europeia” – a qual, portanto, estava destinada fatalmente a ser uma casa socialista.

Mas isso não parecia incomodar socialistas europeus como Mitterrand – quem, aliás, foi um dos principais entusiastas do estreitamente de laços entre a CEE e o CAEM. Para o presidente francês, se a URSS prometia acrescer um “rosto humano” ao seu socialismo (na famosa expressão do líder tcheco Alexander Dubcek), por que a Europa não poderia adicionar um pouco de socialismo ao seu velho humanismo?

Disse Mitterrand a Gorbachev: “Parece-me que, em se tratando de direitos individuais, a prática nos países ocidentais parece mais perfeita do que na URSS. Por outro lado, quando falamos em direitos coletivos, especialmente nos países desenvolvidos, o Ocidente como um todo terá de se esforçar muito nessa direção”.

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Tinha início aí, entre a Nomenklatura soviética e as elites política e financeira do Ocidente (e não apenas as de inclinação socialista), uma complexa convergência destinada a construir, sempre de cima para baixo, o mundo pós-Guerra Fria. Pois, se nos altos círculos do Politburo, a avaliação era a de que o comunismo precisava do know-how tecnocientífico e econômico do Ocidente, a elite globalista ocidental estava fascinada, por assim dizer, com a “tecnologia” de controle político e social, bem como de homogeneização das consciências, desenvolvida com maestria pelas castas dirigentes comunistas.

O grande problema é que, enquanto as nações ocidentais rumavam para transformações drásticas e irreversíveis em sua cultura política, o comunismo soviético adaptava-se para continuar o mesmo. Se, como veremos no próximo artigo, a “imagem do inimigo” projetada internacionalmente por Gorbachev e camaradas era novinha em folha, o inimigo em si, vetusto, seguia fiel às suas mais caras tradições.