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O presidente americano Donald Trump trabalha em sua sala de conferências no hospital militar Walter Reed, 3 de outubro, onde está recebendo tratamento para Covid-19
O presidente americano Donald Trump trabalha em sua sala de conferências no hospital militar Walter Reed, onde esteve internado para se tratar após contrair Covid-19.| Foto: Joyce N. Boghosian/The White House/AFP

“Vives de crenças mortas e te nutres,/ Empenhada na sanha dos abutres,/ Num desespero rábido, assassino./ E hás de tombar um dia em mágoas lentas,/ Negrejada das asas lutulentas/ Que te emprestar o corvo do Destino!” (Augusto dos Anjos, Ave Dolorosa, 1902)

Como mostra o Google Trends, antes de 2018, “necropolítica” era um tema quase inexistente na internet brasileira. A partir daquele ano, no entanto, a palavra começou a aparecer com maior frequência, tendo um aumento significativo de menções em 2019, e atingindo o pico de incidência em maio deste ano, no auge da pandemia.

Embora o conceito de “necropolítica” fosse conhecido desde 2003, quando o intelectual camaronês Achille Mbembe o cunhou em ensaio homônimo, foi só em 2018 que a editora N-1 publicou em livro a versão brasileira do ensaio, o que talvez explique a sua maior ocorrência a partir de então. Ostentada, de início, nos círculos acadêmicos de extrema-esquerda, a palavra logo virou tendência entre jornalistas – uma gente que, frequentando as cercanias da academia, como aquelas bonecas namoradeiras na janela, está sempre de orelhas espichadas para o que ali dentro se fala.

O problema é que, se a ideia original já não era lá grande coisa – não passando de uma recauchutagem do anticolonialismo de Frantz Fanon e da biopolítica de Michel Foucault –, nas mãos da intelligentsia ultraprogressista converteu-se em mera peça de retórica política, um jeito pretensamente sofisticado de estigmatizar indivíduos e opiniões não alinhados à visão de mundo revolucionária. Daí que os alvos do estigma sejam representados como genocidas cruéis, exterminadores de negros e pobres.

Tudo se passa como se, para aqueles jornalistas-militantes já um tanto quanto enfadados (ou constrangidos) de recorrer a pechas desgastadas como “fascista”, “nazista” ou “racista”, necropolítica surgisse como utensílio verbal mais chique, com o qual se podia, ao mesmo tempo, continuar difamando os adversários ideológicos e ainda por cima se distinguir da militância arraia-miúda – dois coelhos com uma só cajadada! E assim foi.

Reportagens e textos de opinião sobre Bolsonaro e Trump são um misto de torcida macabra e covardia, cruzando os limites entre o jornalismo e o vodu

Em 2019, por exemplo, a ultraesquerdista Flávia Oliveira, jornalista da Globo e da Globonews, começou a usar o termo para adjetivar a política de segurança pública do governador Wilson Witzel. Inspirando-se nas opiniões de alguns acadêmicos ideologicamente afins, ela publicou no jornal O Globo o artigo “É necropolítica que chama”, no qual denunciava “a escalada da violência de Estado nas favelas” do Rio de Janeiro. Além disso, nas redes sociais, chegou a compartilhar por diversas vezes a hashtag “#necropolítica”, que virou moeda corrente nas postagens da militância virtual de extrema-esquerda.

Em 2020, seguindo um método pavlov-goebbelsiano, a blogosfera antibolsonarista passou a associar invariavelmente a palavra “necropolítica” às opiniões e ações de Jair Bolsonaro em face da Covid-19. Começaram, então, a pipocar manchetes tais como “Necropolítica de Bolsonaro aponta para um futuro distópico” (com o subtítulo “Menosprezo à vida de negros e pobres avança sobre o dever do Estado proteger a população”), ou “O que necropolítica tem a ver com pandemia e com falas de Bolsonaro”, ou ainda “Necropolítica de Bolsonaro menospreza coronavírus e celebra Golpe de 1964”.

Ora, é especialmente curioso notar a recorrência dessa sorte de retórica – que reflete uma pretensa rejeição filosófica ao macabro – justo em matérias e artigos de opinião do grupo Folha/UOL. É preciso nunca esquecer que foi de um colunista do grupo, Hélio Schwartsman, a manifestação expressa do desejo de que o presidente Jair Bolsonaro morresse de Covid-19. Um artigo de sua autoria, “Por que torço para que Bolsonaro morra”, inicia-se com estas singelas palavras: “Jair Bolsonaro está com Covid-19. Torço para que o quadro se agrave e ele morra. Nada pessoal”. E conclui com estas outras: “Bolsonaro prestaria na morte o serviço que foi incapaz de ofertar em vida”.

Não satisfeito (e, possivelmente, chancelado pela direção de redação do – digamos – jornal paulistano), menos de três meses depois o sujeito voltou à carga, dessa vez tendo por alvo o presidente dos EUA, infectado pelo coronavírus. Sim, no dia 2 de outubro, o impenitente colunista – a quem, pour cause, apelidei de serial wishful killer (ou “torcedor em série pela morte alheia”) – cometeu o artigo “Por que torço para que Trump não se recupere”.

Dessa vez, pelo fato de seu artigo anterior haver lhe trazido problemas com a Justiça, o agourento jornalista optava por dissimular suas fantasias mórbidas: “Já que abundam bajuladores do governo brasileiro e a lei considera agravado ofender a honra de chefes de Estado estrangeiros, não vou dizer que torço para que Donald morra por causa da Covid-19. Vou apenas dizer que não torço por seu pronto restabelecimento”.

O hábito dessa turma, de praticar feitiçaria em forma de notícia ou opinião, merece ser chamado de “necrojornalismo”

Não foi à toa que, acima, sugeri a possibilidade de que o jornalismo de quebranto praticado pelo colunista fosse chancelado pela redação do – digamos – jornal paulistano. Isso porque a prática não se restringe às colunas de opinião. Prova-o, por exemplo, a matéria “Saiba o que acontece se Trump não puder concorrer”, reprodução de reportagem do The New York Times, e cujo subtítulo (ausente na versão original) é um misto de torcida macabra e covardia, cruzando os limites entre o jornalismo e o vodu: “Diagnóstico de Covid-19 do presidente levanta possibilidade de que ele fique incapacitado ou morra no cargo”. (Quem levanta essa possibilidade, escusado dizer, não é “o diagnóstico de Covid-19”, mas o sujeito oculto da oração, a própria redação do – digamos – jornal paulistano, que se esconde por detrás daquele sujeito-fachada ou sujeito-laranja).

E, se foi por obra dos ultrarradicais das extremas-redações que o conceito de necropolítica ingressou artificialmente no debate público contemporâneo, talvez seja interessante criar um neologismo para descrever o hábito dessa turma, de praticar feitiçaria em forma de notícia ou opinião. Proponho, para tanto, o termo necrojornalismo. Sim, necrojornalismo. Afinal, de que outro modo qualificar os exemplos de mau-olhado jornalístico acima citados? Parodiando Flávia Oliveira, digo que não há outro. É necrojornalismo que chama!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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