Recorte d’As crônicas de Nuremberg.| Foto: Wikimedia Commons

“A ignorância [agnoia] é um escravo. O conhecimento é liberdade. Se conhecemos a verdade, devemos colher os seus frutos dentro de nós mesmos. Se nos juntamos a ela, conquistaremos a plenitude” (Evangelho de Felipe, códice 2 da Biblioteca de Nag Hammadi)

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Depois dos meus textos sobre o neo-ateísmo, e porque eu abordasse o movimento segundo uma tradição intelectual que relaciona fenômenos políticos modernos com o antigo gnosticismo dos primeiros séculos da Era Cristã, leitores pediram-me mais informações sobre este último. O que foi, afinal, o gnosticismo, e por que ele nos ajuda a compreender o espírito revolucionário contemporâneo, calcado naquilo que, em obra por mim citada anteriormente, Albert Camus definiu como uma “revolta metafísica”? Eis o que pretendo responder a partir do artigo de hoje.

Uma das mais antigas fontes existentes sobre o gnosticismo é o primeiro volume de Sobre a Detecção e Derrota da Assim Chamada Gnosis, de Santo Irineu, bispo de Lyon. Redigida originalmente em grego por volta do ano 185 d.C., a obra é mais conhecida como Contra Heresias, e nela Irineu utiliza a expressão “falsamente chamadas de conhecimento” em referência à passagem bíblica na qual São Paulo adverte seu discípulo Timóteo para que evitasse “conversas vãs e profanas” dos adeptos de um “falso conhecimento” que os teria “desviado da fé” (Timóteo, 6: 20-21). Adotando a terminologia paulina, Irineu dedica esse primeiro volume à exposição metódica das principais doutrinas heréticas de sua época, enquanto os quatro volumes subsequentes tratam de refutá-las.

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Convém notar que a palavra “gnosticismo” não aparece na obra de Irineu. O termo só viria a ser cunhado no século 17 pelo filósofo da religião Henry More (1614–87), que o aplicara especificamente a uma heresia da região de Tiatira, atual Akhisar (Turquia). Formava-se o neologismo a partir do adjetivo grego gnōstikos (“conhecedor” ou “aquele que conhece”) acrescido do sufixo substantivador -ismo. Em sua obra, Irineu empregara apenas a forma adjetiva: “heresias gnósticas”.

Embora, é claro, fosse um defensor apaixonado da doutrina cristã, Irineu agiu de modo puramente descritivo e objetivo ao adotar o termo “heresia gnóstica” (gnōstikē haerēsis), uma vez que a palavra grega haerēsis significa tão somente “escola de pensamento”. Irineu referia-se a uma escola de pensamento específica, formada por pessoas autodenominada “gnósticas”, que, em comum, tinham a crença na posse de um tipo determinado de conhecimento (gnose). Como afirma Hans Jonas em The Gnostic Religion: “A ênfase no conhecimento como meio de salvação (ou ainda como a própria salvação), e o argumento da posse desse conhecimento sob a forma de uma doutrina articulada, é uma característica comum das várias seitas em que o movimento gnóstico se manifestou historicamente”.

Na esteira de Irineu, outros Pais da Igreja como Hipólito de Roma (170 d.C.-236 d.C.), Tertuliano (160 d.C.-220 d.C.), Clemente (150 d.C.-215 d.C.) e Orígenes de Alexandria (185 d.C.-254 d.C.), Eusébio de Cesareia (265 d.C.-339 d.C.), o próprio Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.), entre outros, escreveram obras polêmicas contra os heréticos em geral, e contra os gnósticos em particular. Embora muito úteis para a compreensão do gnosticismo, todavia, essas primeiras fontes apresentam o inconveniente da parcialidade de seus autores, que, na condição de críticos, talvez tenham distorcido o sentido original dessa ou daquela doutrina gnóstica. A dificuldade permaneceu por muito tempo sem solução, e, até meados do século 20, só conhecíamos o gnosticismo de maneira indireta, via os textos de seus primeiros opositores, os chamados Pais da Igreja.

Pode-se compreender o gnosticismo como um movimento espiritual parasitário, que introduziu sutis reinterpretações e graves distorções

Tudo começou a mudar quando, em 1945, num deserto próximo à aldeia de Nag Hammadi, no Egito, camponeses desenterraram uma jarra de aparência arcaica, dentro da qual encontraram um conjunto de treze códices de papiro embrulhados em couro. Considerada uma das mais importantes descobertas arqueológicas do século 20, os manuscritos – que passaram a ser conhecidos como Biblioteca de Nag Hammadi – totalizavam 52 escritos originais, incluindo textos do Corpus Hermeticum, uma tradução de A República de Platão e, o que nos interessa, vários textos gnósticos datados aproximadamente do século 4. Atualmente guardados no Museu Copta da cidade do Cairo, em 1977 os manuscritos ganharam uma tradução para o inglês.

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Escritos em copta – língua egípcia que utiliza formas alteradas do alfabeto grego e incorpora em seu vocabulário grande número de palavras gregas –, acredita-se que os manuscritos sejam traduções de versões originais em grego, mas para sempre perdidas. A hipótese histórica corrente para a origem dos manuscritos sugere que, quando, em 367, Santo Atanásio de Alexandria redigiu uma carta condenando livros apócrifos e heréticos, um grupo de monges de um monastério situado próximo ao local da descoberta teria escondido os textos dentro de uma jarra, para que não fossem queimados ou atirados no Nilo.

Várias correntes do gnosticismo estão representadas nos manuscritos de Nag Hammadi e, de forma geral, o seu conteúdo confirma o testemunho de Irineu e demais heresiólogos. Alguns escritos gnósticos referidos por Irineu, por exemplo, correspondem quase que exatamente a partes de um dos textos cópticos chamado Apócrifo de João (códice 2 da Biblioteca de Nag Hammadi). Mas o estatuto de “gnósticos” pode ser aplicado perfeitamente a outros textos cópticos, cujo conteúdo mítico e doutrinal é muito semelhante ao Apócrifo de João. Tomados em conjunto, os textos integram aquilo que os estudiosos costumam chamar de “gnosticismo clássico” ou “gnosticismo sethiano” (em referência a Seth, terceiro filho de Adão, que em alguns textos gnósticos assume o papel de progenitor de uma “raça” de pessoas destinadas à salvação mediante o conhecimento de sua mensagem).

O “gnosticismo clássico” refere-se à inclinação cristã tomada pelo gnosticismo, correspondendo à versão dos Padres da Igreja segundo a qual ele era essencialmente uma heresia cristã. Esses primeiros heresiólogos restringiram suas investigações e refutações aos sistemas gnósticos que: ou tivessem brotado diretamente do solo do cristianismo (como o gnosticismo do místico Valentim, chamado de gnosticismo valentino); ou incorporado a figura de Jesus Cristo em suas doutrinas (como os Ofitas ou Naassenos, segundo os denominava Hipólito); ou ainda que, graças a um fundamento judaico comum, estivessem próximos o bastante para serem percebidos como rivais e deturpadores da mensagem cristã (como a doutrina de Simão Mago de Samaria, a quem Irineu considerava o pai do gnosticismo clássico). Atualmente, a literatura especializada vem ampliando esse escopo, ao sugerir a existência de um gnosticismo judeu pré-cristão e de um gnosticismo pagão (helenista), dando conhecimento também de fontes sobre os mandeanos (o mais notável exemplo de gnosticismo oriental fora da órbita helenista) e os maniqueístas, discípulos do profeta persa Mani.

Há muita especulação e controvérsia sobre as origens históricas do gnosticismo. Na literatura especializada, duas grandes hipóteses têm se confrontado. Os primeiros Pais da Igreja – e, de forma independente, o filósofo neoplatônico Plotino (205 d.C.-270 d.C.) – enfatizaram a influência, sobre um pensamento cristão ainda não plenamente consolidado, de interpretações supostamente distorcidas da filosofia de Platão. Já a hipótese alternativa, mais recente, sugere origens helênicas, babilônicas, egípcias e iranianas, que teriam se combinado, tanto entre si quanto com elementos judaicos e cristãos, para compor a multiplicidade do gnosticismo.

Estudiosos como Birger A. Pearson,  por exemplo, apontam para um solo cultural judaico de onde teriam brotado o cristianismo e o gnosticismo. Segundo o autor, estudos comparativos sobre o mito básico contido no manuscrito Apócrifo de João indicam que ele foi composto a partir de uma interpretação inovadora de tradições bíblicas e judaicas. Escreve Pearson: “É mais provável que o gnosticismo tenha surgido de um meio judaico, e só depois entrado em contato com o cristianismo, do que de dentro do cristianismo primitivo. Se se quiser usar o termo heresia nesse contexto, pode-se dizer que tanto o cristianismo quanto o gnosticismo surgiram como heresias judaicas”.

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Por sua vez, Hans Jonas afirma que as descobertas dos textos cópticos em Nag Hammadi sugerem influências de um ocultismo judaico heterodoxo, sendo possível, inclusive, observar certas conexões entre o gnosticismo e os primórdios da Cabala. A hipótese histórica avançada por Jonas abrange um longo escopo temporal, remontando aos tempos do império de Alexandre Magno (356 a.C.-323 a.C.), que expandiu a cultura helênica – no sentido universalista e civilizatório expresso no conceito de Paideia – aos reinos conquistados do Oriente.

Entre os anos 334 a.C. e 323 a. C., a conquista de Alexandre provocou uma profunda reviravolta na história do mundo antigo, resultando numa unidade cultural até então inédita por suas proporções, unidade que durou cerca de mil anos, até ser destruída pela expansão islâmica, e que vinculou culturalmente o Ocidente (o mundo grego, centralizado em torno do mar Egeu) ao Oriente (a região das antigas civilizações orientais, do Egito até as fronteiras da Índia). Nas palavras de Jonas: “A colonização de Alexandre pretendeu desde o início, e como parte de seu próprio programa político, uma simbiose de um tipo inteiramente novo, que, embora fosse obviamente uma helenização do Oriente, exigia para o seu sucesso uma certa reciprocidade”.

Portanto, o grande significado da expansão de Alexandre consiste no sentido mesmo da “cultura” difundida. A universalização da Paideia implicava a percepção de que era possível tornar-se helênico via educação, e não necessariamente via nascimento. Essa fórmula foi imediatamente assimilada por homens do Oriente conquistado. Na geração imediatamente seguinte à de Aristóteles, encontramos já a atuação desses homens no coração mesmo do saber grego. A partir de então, e ao longo de muitos séculos, o Oriente helênico produziu um contínuo fluxo de homens de origem semítica, que, com nomes gregos, além de linguagem e espírito gregos, contribuíram para a civilização dominante. E, embora os antigos centros em torno do mar Egeu continuassem a existir, o eixo de gravidade da cultura grega universalizada deslocara-se para novas regiões.

Foi do interior dessa metade oriental do mundo helênico que, tempos depois, começaram a surgir diversos movimentos religiosos cuja característica fundamental era um imenso sincretismo, constituído sobre um fundo cultural grego bastante homogêneo. De certa forma, esses movimentos eram uma reação de contracultura tomando corpo no interior de antigas nações conquistadas. Dessa “onda oriental” fariam parte os diversos sistemas gnósticos vindouros, que representavam a versão mais radical do sincretismo helenista. Como explica Jonas: “Os sistemas gnósticos incluíam de tudo: mitologias orientais, doutrinas astrológicas, teologia iraniana, elementos de tradição judaica (fosse bíblica, rabínica ou ocultista), uma escatologia cristã da salvação, termos e conceitos platônicos”.

Pode-se, pois, compreender o gnosticismo como um movimento espiritual parasitário, que introduziu sutis reinterpretações e graves distorções – “exegeses de protesto”, como sugere Kurt Rudolph – em sistemas religiosos ou filosóficos preexistentes. Os três principais sistemas metafísicos parasitados foram a filosofia platônica, o judaísmo e o cristianismo. A partir de uma combinação sincrética entre elementos provenientes dos três, acrescidos de influências iranianas e egípcias, e ultrapassando fronteiras étnicas e doutrinais, o gnosticismo introduziu um novo princípio espiritual, discernível por baixo da variedade de suas escolas. Trata-se de um princípio baseado numa concepção específica do conhecimento como meio de salvação, e sobre ele falaremos mais no artigo da semana que vem.

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