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Briga entre torcedores de Athletico Paranaense e Vasco da Gama, na Arena Joinville, em 2013.
Briga entre torcedores de Athletico Paranaense e Vasco da Gama, na Arena Joinville, em 2013.| Foto: Albari Rosa/Arquivo Gazeta do Povo

“Estabelece-se um ritmo que faz suceder, sem risco, estados de espírito contrários. A contenção da vida cotidiana busca vingança, e o faz mediante a indecência e a grosseria” (Marcel Mauss, As Relações Jocosas de Parentesco).

Terminamos o artigo da semana passada sugerindo que, com o seu ataque à jocosidade e à espontaneidade no futebol, os moralistas politicamente corretos vêm criando um ambiente sufocante, sem válvula de escape, propício para o aumento da violência física entre torcedores de times rivais. Isso porque uma das funções sociais da jocosidade, no esporte e alhures, é a de ritualizar e diluir a violência potencial entre indivíduos e grupos humanos. Quanto a isso, aliás, uma breve consulta à literatura especializada basta para constatar a universalidade cultural do fenômeno.

No domínio da antropologia e da sociologia, modalidades de interação social batizadas de “relações jocosas” foram tomadas como objeto de estudo já na década de 1920. Na França, por exemplo, ninguém menos que Marcel Mauss – sobrinho de Émile Durkheim e, junto a ele, pai fundador da escola sociológica francesa – dedicou ao tema um artigo que viria a se tornar um clássico das ciências sociais.

Uma das funções sociais da jocosidade, no esporte e alhures, é a de ritualizar e diluir a violência potencial entre indivíduos e grupos humanos

Intitulado Parentés à plaisanteries (1926) – e traduzido no Brasil, mais de 50 anos depois, com o título “As relações jocosas de parentesco” –, o artigo consagrava a tradição de tratar as “relações jocosas” como subtema de um campo consagrado na antropologia desde o século 19: o dos estudos de parentesco. Recorrendo a casos etnográficos de sociedades tribais ou “primitivas”, o antropólogo francês aludia a um tipo de licenciosidade e zombaria característico da relação entre parentes de determinadas categorias (como, por exemplo, “tios maternos” e “sobrinhos” ou “cunhados”). Desde então, falar em “relações jocosas” passou a significar, quase sempre e necessariamente, falar em parentesco.

Nessa linhagem, por exemplo, o antropólogo britânico Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955) publicou On Joking Relationships (1940), célebre artigo no qual definia a relação jocosa como “uma relação entre duas pessoas na qual o costume permite – e, em certos casos, até exige – que uma delas provoque ou caçoe da outra, a qual, por sua vez, não deve se ofender”. Para Radcliffe-Brown, “a relação jocosa consiste numa combinação peculiar entre amizade e antagonismo. O comportamento é tal que, em qualquer outro contexto social, expressaria e suscitaria hostilidade... Em outras palavras, trata-se de uma relação de desrespeito consentido”, cuja função consistia em “estabelecer e regular o equilíbrio social num tipo de situação estrutural que, em grande parte das sociedades tribais, resulta do casamento”.

Mas, muito embora as “relações jocosas” estivessem, no início, estreitamente vinculadas aos estudos de parentesco, já se entrevia nos escritos dos estudiosos que primeiro as abordaram a possibilidade de uma aplicação mais ampla do conceito.

Em seu clássico Primitive Society (1920), por exemplo, o antropólogo americano Robert H. Lowie – pioneiro em batizar o fenômeno como “joking relationships” (expressão que ele às vezes substituía por “joking alliances”, “joking partnership” ou “privileged familiarity”) – já enfatizava mais a especificidade da relação que o fato de, nas sociedades tribais, ela ocorrer habitualmente entre parentes de um certo tipo. E, no artigo acima referido, o próprio Radcliffe-Brown registrava a presença de relações jocosas entre clãs de determinada tribo e até mesmo entre tribos vizinhas – o que, segundo ele, exigia do estudioso uma teoria mais ampla, que ultrapassasse as fronteiras do parentesco.

Referindo-se ao caso etnográfico de certos clãs e tribos africanas, escreveu o antropólogo britânico: “Decerto, isso apresenta um problema algo distinto. Mas é óbvio que qualquer teoria geral das relações jocosas deve levar em conta essas relações entre grupos”. E, mais adiante, insistiu: “Portanto, a relação jocosa é apenas espécie de um gênero mais amplo; pois se trata de uma relação de proximidade na qual há uma aparência de antagonismo, controlado por regras convencionais”.

Curiosa e significativamente, Radcliffe citava expressamente o futebol como exemplo daquela relação de proximidade com antagonismo: “Um componente da relação entre grupos é, muito comumente, um certo grau e modo de oposição, no sentido de um antagonismo regulado e controlado socialmente. Os dois grupos podem se engajar regularmente em jogos competitivos tais como o futebol”.

No esporte como na vida, antagonismo sem proximidade é a receita certa para a guerra

Esse aspecto é de suma importância. Todos os estudiosos das “relações jocosas” enfatizaram a sua dupla natureza, de antagonismo e proximidade. As partes numa relação jocosa só podem provocar-se mutuamente graças à sua relativa proximidade social – ou, no mínimo, pelo fato de partilharem certa cultura da provocação, cujas regras e códigos tácitos são comumente conhecidos.

No futebol, a jocosidade acontece entre torcedores que, embora rivais, tendem a partilhar uma mesma cultura futebolística e uma longa história de provocações. Trata-se, aí também, de uma relação que, conquanto nem sempre em doses proporcionais, mistura hostilidade e proximidade de modo que o resultado se mantenha equilibrado. A pitada de proximidade permite, justamente, resolver tensões que, na ausência dela, poderiam descambar para a violência generalizada.

A relação jocosa futebolística tem, portanto, a importante função social de equilibrar familiaridade e hostilidade no ambiente das torcidas. Ao judicializar, tutelar, policiar e constranger essa relação, os totalitários politicamente corretos introduzem uma perigosa distância – e uma não menos perigosa impessoalidade – entre torcedores rivais. Como um estranho inconveniente que decidisse meter o bedelho numa brincadeira entre amigos, corrompem a relação horizontal e anárquica entre partes equivalentes, enxertando aí um elemento vertical, hierárquico e autoritário. Investindo contra a jocosidade, e incapazes de compreender as nuances de tão complexa relação, retiram a proximidade da mistura, deixando somente o antagonismo. E, no esporte como na vida, antagonismo sem proximidade é a receita certa para a guerra.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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