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Imagem de um vídeo divulgado pela agência de propaganda do Estado Islâmico mostra homens que supostamente realizaram uma série de explosões suicidas no domingo de Páscoa no Sri Lanka | Foto: AMAQ/AFP
Vídeo divulgado pela agência de propaganda do Estado Islâmico mostra homens que supostamente realizaram uma série de explosões suicidas no domingo de Páscoa no Sri Lanka, em 2019.| Foto: AMAQ/AFP

“Devo lhes dizer por que ocorreram esses eventos, e lhes falar francamente sobre os momentos que me levaram a tomar a decisão de executá-los, para que possam julgar por si próprios. Deus sabe que jamais teríamos pensando em atingir as torres caso não testemunháramos tanta tirania e opressão cometidas contra o nosso povo na Palestina e no Líbano pela aliança EUA-Israel. Só decidimos pelo ataque quando já não aguentávamos mais... Pode-se culpar um homem por defender a si próprio? Defender-se e punir um agressor à altura significa terrorismo? Se esse é o caso, então não tivemos escolha.” (Osama Bin Laden, Mensagem ao Povo Americano)

A decapitação do professor de História nos arredores de Paris parece, finalmente, ter mexido com os brios de parte da sociedade francesa, que, embora timidamente, decidiu de algum modo reagir contra a ocidentofobia manifesta por radicais islâmicos vivendo no país. O problema é que, ademais de tardia, a reação não parece considerar um fator essencial: o inimigo interno.

No caso particular da França, e da civilização ocidental como um todo, o principal inimigo interno tem sido aquela ideologia que, em livro obrigatório sobre o tema (a respeito do qual já escrevi anteriormente), o filósofo Pascal Bruckner chamou de tirania da penitência. Desde ao menos o 11 de setembro, a reação cultural do Ocidente aos ataques inimigos tem sido, antes de mais nada, perguntar: “Por que nos odeiam tanto?” – pergunta inútil, pois, como escreveu o cientista político André Glucksmann, “o ódio precede e predetermina o objeto que fabrica para si mesmo”. Pergunta perigosa, pois a busca por razões pretensamente objetivas para o ódio ocidentofóbico manifesto pelos radicais islâmicos já é, de algum modo, uma maneira de justificá-lo retroativamente. Daí que as reações da classe falante ocidental aos ataques terroristas sirvam como mais um combustível para aquele ódio, preparando o terreno para o próximo atentado.

A pergunta por que eles nos odeiam tanto? deve ser trocada pela pergunta como vamos deter esses desgraçados?

Enquanto os assim estigmatizados “infiéis” – ou seja, quem quer que se recuse a viver sob a sharia islâmica – não se livrarem da “tirania da penitência”, o seu destino será invariavelmente o choque e a perplexidade diante do terror, seguidos de choro, luto, velas acesas e pedidos inócuos por “paz”. A pergunta por que eles nos odeiam tanto? deve ser trocada pela pergunta como vamos deter esses desgraçados? “Mil anos de guerras consolidaram o Ocidente; um século de ‘psicologia’ pôs-lhe a corda no pescoço” – escreveu algures o filósofo romeno Emil Cioran. E, com efeito, a presente hora é de guerra, não de psicanálise.

Mas os radicais islâmicos conhecem bem o inimigo e sabem perfeitamente com quem falam. Quando vi a notícia da decapitação do professor de História, lembrei-me no ato do caso do jornalista americano James Foley, decapitado pelo Estado Islâmico em 2014, numa execução brutal filmada e divulgada pelos terroristas na internet. O vídeo exibia um texto com dizeres antiamericanos, e veiculava a seguinte mensagem, expressa na voz da própria vítima: “Chamo meus amigos, família e entes queridos a erguer-se contra meus verdadeiros matadores, o governo dos EUA. Porque o que vai acontecer comigo é apenas o resultado de sua complacência e criminalidade”.

Quem estuda o terrorismo contemporâneo – corolário lógico e inevitável da mentalidade revolucionária – decerto já topou com esse modus operandi, no qual se repete uma modorrenta ladainha, que inverte sistematicamente as posições de vítima e algoz: a culpa da crueldade dos terroristas é dos EUA ou de qualquer outro bode expiatório a gosto do freguês (Israel, o capitalismo, eventualmente o Ocidente como um todo). Nesse sentido, a espetacularização da morte de Foley e as torpes justificativas maometanas para o assassinato do professor de História são reedições fieis de casos anteriores.

Recorde-se, por exemplo, o do empresário Nick Berg, americano de origem judia decapitado em 2004 por militantes islâmicos no Iraque. As imagens também foram divulgadas na internet pelos assassinos. Numa declaração com equivalente teor de cinismo, o terrorista Abou Rachid, um dos autores da barbárie, lançava sobre os EUA a culpa pelo que estava fazendo. Na época, a jornalista Sara Daniel, do Nouvel Observateur, fez a reportagem: “Enquanto Abou Rachid explica seu ‘dever de matar’, rememoram-se os urros bestiais de Nick Berg, o refém americano que agoniza enquanto os carrascos investem laboriosamente contra seu corpo contorcido: ‘Vocês sabem, sentimos um grande prazer quando decapitamos alguém’, empenha-se em nos comunicar, em inglês, um dos homens sentados à direita do emir... ‘Nossa intenção ao sequestrar alguém não é amedrontar os reféns’, corrige ele, ‘mas sim exercer pressão sobre os países que ajudam ou se oferecem para ajudar os americanos. Em que pensam quando visitam um país ocupado? Decapitar não é uma coisa boa, mas um método que funciona. No decorrer dos combates, os americanos tremem de medo. Vejam a reação correta que tiveram as Filipinas. Graças à atitude deles, pudemos liberar nosso refém e demonstrar ao mundo que também amamos a paz e a clemência... Aliás, eu mesmo tentei negociar a troca de Nick Berg por alguns prisioneiros. Foram os americanos que recusaram. São eles os verdadeiros responsáveis por sua morte’”.

Qual é a substância desse raciocínio? Longe de expressão irracional de mentes “atrasadas”, como quer crer boa parte do palpitariado tupiniquim (em particular o de viés liberal), ele sugere, ao contrário, um sofisticado know how de propaganda por parte dos terroristas, além de um notável conhecimento da audiência para a qual se dirigem. Para se compreender a lógica do terror, é preciso abandonar a cosmovisão iluminista e o seu pendor para a exotização. Nada mais equivocado, por exemplo, do que a opinião corrente segundo a qual os terroristas são criaturas primitivas, egressas da Idade da Pedra, cegas e brutalizadas por concepções de mundo “medievais” (adjetivo usado pejorativamente por dez entre dez jornalistas contemporâneos).

De antemão, cabe lembrar que boa parte dos terroristas islâmicos é oriunda de famílias de classe média alta, educada e intelectualizada. Muitos deles estudaram nas melhores universidades do Ocidente, como Harvard e Oxford. Muitos, além disso, demonstram um completo desinteresse pela tradição corânica. Historicamente, os terroristas não fazem parte de uma massa carente, ignorante, oprimida e miserável. Muito pelo contrário, os “guerreiros suicidas” empenhados na jihad foram educados profissional e intelectualmente no mundo globalizado. Dominando os códigos intrínsecos ao ambiente cultural e universitário do Ocidente moderno, é provável que muitos deles viessem a desfrutar de um futuro próspero caso não houvessem optado pelo terrorismo. Portanto, vislumbrar no fundamentalismo islâmico um fenômeno exótico, arcaico ou, em suma, pré-moderno, é um erro crasso, ainda que comum.

Boa parte dos terroristas islâmicos é oriunda de famílias de classe média alta, educada e intelectualizada. Muitos deles estudaram nas melhores universidades do Ocidente

Conforme têm mostrado alguns estudiosos do terrorismo contemporâneo – como André Glucksmann, John Gray, Paul Berman, Barry Cooper, entre outros –, o movimento jihadista, antes que consequência direta de alguma espécie de “mentalidade primitiva”, é precisamente o contrário: um subproduto da modernidade ocidental, do Iluminismo e do Romantismo. Nas palavras do cientista político Barry Cooper: “As semelhanças estruturais entre movimentos que, de resto, pouco têm em comum sugerem que o terrorismo contemporâneo nada mais é que uma espécie de sectarismo revolucionário, ideológico e moderno”.

Organizações como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico são atores globais, e não “tribais”. À semelhança do anarquismo e do niilismo russos do século 19 (pioneiramente descritos por Dostoiévski), ou dos totalitarismos europeus do século 20 (notadamente, o internacional e o nacional-socialismo), veem o terror como método legítimo para a imposição de uma “nova ordem mundial”, habitada por um “novo homem”. O Terceiro Reich nazista, a sociedade sem classes comunista e o califado universal jihadista são variações sobre um mesmo tema revolucionário.

De algum modo, portanto, o terrorismo islâmico procede essencialmente do tipo de doença espiritual que gerou os movimentos revolucionários contemporâneos. Como escreve John Gray: “Se Osama Bin Laden tem um precursor, este é Sergei Netchaiev, o terrorista russo do século 19”. Seguiremos daí no artigo da semana que vem.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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