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“Essa foi a nossa sina coletiva, e que Trotsky vá para a puta que o pariu se, com seu fanatismo de obcecado e seu complexo de ser histórico, não acreditava que existissem as tragédias pessoais, mas apenas as mudanças de etapas sociais e supra-humanas. E as pessoas? Algum deles pensou alguma vez nas pessoas?” (Leonardo Padura, O Homem que Amava os Cachorros)

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“Trotsky não ofereceu nenhuma forma alternativa de comunismo ou qualquer doutrina diferente da de Stalin” – escreve Leszek Kolakowski em seu monumental Main Currents of Marxism. A opinião do filósofo polonês, que conheceu o comunismo tanto em teoria quanto na prática (sua obra manteve-se proibida na Polônia por quase 20 anos), contraria frontalmente o simbolismo usual, propagandeado pela esquerda ao redor do mundo, segundo o qual os dois revolucionários russos foram a nêmesis um do outro: o primeiro consagrado como símbolo do espírito originário e imaculado da revolução bolchevique; o segundo, como o seu maior traidor.

Desde que, em 1956, com o famoso “discurso secreto” de Kruschev, elegeu-se Stalin como bode expiatório sobre o qual o comunismo internacional pôde lançar os seus pecados, Trotsky passou a ser idealizado e convertido numa espécie de mártir do “verdadeiro” comunismo – aquele que, em permanecendo mera virtualidade estendida num futuro hipotético, se furtava à responsabilidade histórica pelos crimes que em seu nome se cometeram. Sendo assim, uma disputa por poder circunstancial entre dois expoentes da revolução entrou para a história como ruptura fundamental entre um traidor da “causa operária” e o seu mais nobre defensor. O comunismo nasce bom, Stalin é que o corrompe. Com essa tese desavergonhada, os comunistas puderam dormir com a consciência tranquila, prontos para, ao despertar, perfazer de novo e de novo o sempiterno caminho da barbárie.

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É por estar mais de acordo com o diagnóstico preciso de Kolakowski, e portanto pela ousadia de desfazer aquela narrativa politicamente conveniente, que a série Trotsky, uma produção russa recém-incluída no catálogo da Netflix brasileira, precisa ser vista por quem se interessa pelo que de fato se passou na Rússia nas primeiras décadas do século 20. Afora algumas escolhas estéticas de gosto duvidoso, e uma edição não raro infeliz, a série acerta na construção da trama, na elaboração dos diálogos e, sobretudo, no realismo com que apresenta a persona revolucionária de Trotsky (que, sob esse aspecto crucial, em nada diferia das de Lenin e Stalin) em toda a sua frieza e indiferença pelos seres humanos de carne e osso.

Ao longo dos oito episódios, o espectador tem contato com uma alma patologicamente arrogante, que exigia obediência irrestrita e não tolerava a menor divergência em relação à sua visão doutrinária. Ao que me consta, é a primeira vez que uma produção audiovisual retrata, por exemplo, o protagonismo de Trotsky na covarde repressão à revolta dos marinheiros de Kronstadt, bem como na política de extermínio dos kulaks. Lembrando, ademais, que estamos falando de um dos primeiros idealizadores do sistema gulag, já não era mesmo sem tempo que o seu caráter confessadamente amoral fosse exibido nas telas, assim como, aliás, a brutalidade do regime político que ajudou a implementar, que não teria sido menos genocida caso o amante de Frida Kahlo vencera a sua guerra particular contra Stalin.

Mas bastou que uma série representasse Trotsky e a revolução bolchevique sem lhes dourar a pílula para que parte da imprensa brasileira a tachasse de anticomunista e caricatural (ver, por exemplo, esta crítica no Estadão). Trata-se aí de adotar um critério de avaliação que jamais seria adotado, por exemplo, no caso de obras ficcionais sobre o nazismo. Seria impensável que um crítico qualificasse de antinazistas filmes tais como A Lista de Schindler ou O Pianista. A barbárie nazista é bem conhecida, e ninguém desconfia da verossimilhança de obras ficcionais que a retratem em cores vivas e implacáveis. Aí, não há qualquer suspeita de exagero para fins de propaganda ideológica.

O mesmo não costuma ocorrer com obras que lancem luz sobre os horrores do comunismo. Nesse caso, há sempre a sugestão de uma (má-)intenção política subjacente, responsável por exagerar esses horrores e estigmatizar como monstruosos os seus perpetradores (Trotsky, por exemplo). Tudo se passa como se o mal do comunismo só pudesse ser abordado cinematograficamente cum grano salis, de modo a não servir a eventuais agendas anticomunistas. Como bem argumenta o historiador Alan Charles Kors: “O Ocidente tolera um notável, monstruoso, imperdoável duplo padrão. Recitamos os crimes do nazismo quase que diariamente, os ensinamos aos nossos filhos como lições históricas e morais definitivas, e prestamos testemunho a cada vítima. Mas, quase sem exceção, mantemo-nos em silêncio sobre os crimes do comunismo. Assim é que os corpos jazem entre nós, despercebidos, em toda parte. Insistimos na ‘desnazificação’, e acusamos quem a relativiza em nome de realidades políticas novas ou emergentes. Nunca houve e nunca haverá uma equivalente ‘descomunizificação’, embora o sacrifício de inocentes tenha sido exponencialmente maior, e embora aqueles que assinaram as ordens e comandaram os campos de concentração continuem por aí. No caso do nazismo, vamos atrás de homens de 90 anos porque ‘os ossos clamam’ por justiça. No caso do comunismo, insistimos no ‘sem caça às bruxas’ – deixem que os mortos sepultem os vivos. Mas os mortos não podem sepultar ninguém… O Holocausto comunista deveria ter provocado um florescimento na arte ocidental, e testemunhos, e empatia pelas vítimas. Deveria ter produzido um oceano transbordante de lágrimas. Em vez disso, tudo o que suscitou foi uma geleira de indiferença”.

Eis a grande vitória cultural da propaganda comunista, que sobreviveu à “queda” nominal da URSS: ter conseguido lançar uma pecha sobre os seus críticos, associando-os ora ao fascismo, ora a uma paranoia ideológica de tipo macarthista. Com isso, a crítica ao comunismo nos meios cultos do Ocidente acabou restrita ao fracasso das economias socialistas ou, quando muito, à burocratização do modelo soviético de governo. Quando se chegava a falar no morticínio, recorria-se à tática já descrita acima, a de se limpar na sujeira de Stalin. Qualquer condenação mais explícita aos crimes contra a humanidade cometidos por regimes de inspiração marxista era logo ostracizada com as pechas de “paranoia anticomunista” ou “saudosismo da Guerra Fria”.

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Jean Paul Sartre exemplificou essa postura quando, em conversa com o seu ex-amigo Albert Camus, comentou sobre os gulags: “Assim como você, acho esses campos execráveis, mas acho igualmente execrável o uso que todos os dias se faz deles na imprensa burguesa”. Há aí uma tentativa torpe de fazer equivaler moralmente a construção de campos de concentração por parte da ditadura bolchevique e a sua denúncia por parte da “imprensa burguesa”. Ambos, um empreendimento genocida e a sua crítica, seriam execráveis na mesma medida. Em verdade, sabe-se que, repudiando muito mais a segunda que o primeiro, o rei da Rive Gauche costumava afirmar que “todo anticomunista é um cão” – um cão, ressalte-se, não por haver feito algo que se comparasse à brutalidade de Lenin, Trotsky e Stalin, mas pelo simples fato de ser anticomunista, mesmo que de maneira inteiramente pacata. Na mesma linha de Sartre, o historiador marxista Eric Hobsbawm cometeu certa feita ato falho revelador. Descrevendo as denúncias de Kruschev, falou numa “brutal e implacável denúncia dos delitos de Stalin”. Comentando o ocorrido, o colega Tony Judt não deixou barato: “Note-se que é a denúncia contra Stalin que recebe de Hobsbawm os epítetos (‘brutal’ e ‘implacável’), não os seus ‘delitos’”.

Tendo em Sartre e Hobsbawm duas de suas grandes referências, a intelligentsia brasileira adotou sem reservas aquele padrão corrompido de julgamento. Intelectuais e jornalistas que, com o colapso da URSS, viriam a renegar formalmente o comunismo, e mesmo os que se tornaram seus críticos contumazes, continuaram repudiando com igual ou maior veemência o anticomunismo. Os crimes soviéticos haviam sido mesmo terríveis, concedia-se para não ter de falar mais no assunto. Mas, segundo esse estranho padrão ético, a eventual insistência em denunciá-los ou simplesmente relatá-los seria coisa ainda mais abjeta. Como escreveu Alain Besançon em Le Malheur du Siècle: “O nazismo, apesar de completamente extinto há mais de meio século, segue sendo, com razão, objeto de uma execração que não diminui com o tempo. A reflexão horrorizada sobre ele parece até aumentar a cada ano em profundidade e extensão. O comunismo, em compensação, apesar de sua memória mais recente, e apesar inclusive de sua dissolução, beneficiou-se de uma amnésia e de uma anistia que colhem o consentimento quase unânime, não apenas de seus partidários, pois eles ainda existem, como também de seus mais determinados inimigos e até mesmo de suas vítimas. Nem uns nem outros sentem-se confortáveis para tirá-lo do esquecimento. Acontece às vezes que o caixão do Drácula se abre. Foi assim que, no fim de 1997, uma obra [O livro negro do comunismo] ousou calcular a soma dos mortos que era possível lhe atribuir. Propunha-se uma cifra de 85 milhões a 100 milhões. O escândalo durou pouco e o caixão já se fecha, sem que, no entanto, essas cifras tenham sido seriamente contestadas”.

Como se vê, a arte de fechar o caixão e ocultar o Drácula continua sendo exercida alegremente por formadores de opinião no Brasil. O tipo de perversão ética ilustrada pelas falas de Sartre e Hobsbawm alastrou-se como vírus pela classe falante nacional, expelindo do debate público, a despeito de questões de mérito ou valor, tudo o que parecesse emanar os vapores tóxicos do anticomunismo. Como era de se esperar, é nesse ambiente que Trotsky tem sido recebido pela crítica brasileira. E é justo por essa razão que o leitor interessado em encarar de frente toda a feiura do Drácula encontrará na série farto material para reflexão e, claro está, também para entretenimento.