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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Vaza Toga

A toga puída do imperador

eduardo tagliaferro vaza toga
Audiência pública no Senado com Eduardo Tagliaferro, ex-assessor de Alexandre de Moraes. (Foto: Saulo Cruz/Agência Senado)

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O recente depoimento de Eduardo Tagliaferro ao Senado Federal escancarou a natureza mafiosa das engrenagens do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Ex-chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE, Tagliaferro apresentou um conjunto de acusações graves, envolvendo adulteração documental, manipulação política de processos e a existência de estruturas paralelas destinadas a perseguir adversários políticos. O relato não apenas expôs práticas ilícitas, mas ofereceu um mapa detalhado do funcionamento interno da juristocracia que hoje controla o destino do Brasil.

A coincidência temporal do depoimento foi emblemática. Enquanto o STF conduzia o julgamento-espetáculo contra Jair Bolsonaro, o Senado ouvia, quase simultaneamente, que o seu principal algoz recorria a métodos que desfiguravam a própria legalidade. Essa justaposição oferece ao país uma síntese clara de sua crise institucional: de um lado, a exibição do poder de punir; de outro, a revelação de que esse poder se sustenta em expedientes fraudulentos. Além do caráter político, o contraste possui um componente moral. Afinal, a existência de um tribunal que mantém a pretensão (e o poder) de julgar enquanto os seus membros manipulam a própria lei é evidência clara do colapso da ordem constitucional brasileira.

Segundo Tagliaferro, relatórios foram fabricados retroativamente para justificar operações já deflagradas, com datas alteradas para lhes conferir a aparência de legalidade. O burocrata arrependido descreveu a existência de “gabinetes paralelos”, formados por grupos de mensagens e e-mails privados, cujas decisões eram posteriormente revestidas de formalidade institucional. Esse procedimento demonstra cabalmente a transformação do aparato judicial em um mecanismo de perseguição política, destinado a moldar fatos de acordo com interesses particulares.

A concentração de poder na toga não eleita, e proibida por lei de agir político-partidariamente, caracteriza um Estado judicial hipertrofiado, no qual a lei passa a servir aos fins daqueles que a aplicam

Tagliaferro revelou também a atuação seletiva de acadêmicos, ONGs e empresas de checagem, que orientavam e legitimavam a perseguição a setores da direita política enquanto ignoravam práticas semelhantes da esquerda. Listas com centenas de nomes eram enviadas a Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) em conluio com o pseudoprocurador-geral da República, Paulo Gonet, configurando interferência direta na autonomia das instâncias inferiores do Judiciário. Como diria Orwell, quando a documentação e a memória histórica podem ser reescritas, o próprio conceito de verdade torna-se relativo, submisso ao arbítrio daqueles que controlam o poder.

O episódio mais representativo da sessão ocorreu quando, durante o depoimento prestado por videoconferência, o canal de Tagliaferro no YouTube foi derrubado. A coincidência funcionou como alegoria viva da censura contemporânea no país. O denunciante foi silenciado em tempo real, ao vivo e em cores, justamente quando denunciava os mecanismos de silenciamento.

Mas não há censura que possa atenuar o impacto institucional das denúncias. Tagliaferro expôs o STF como protagonista político absoluto, acumulando funções de investigador, acusador e julgador. Esse arranjo rompe com o princípio do juiz natural, fundamento do sistema acusatório consagrado pela Constituição de 1988. A PGR, por sua vez, comprometida por acusações semelhantes, não exerce contrapeso efetivo, e o CNJ – que mais parece um órgão de imposição de consenso ideológico dentro do Judiciário – revela-se desinteressado em frear uma corte que se autoprotege. Em paralelo a essa incapacidade de fiscalização, a concentração de poder na toga não eleita, e proibida por lei de agir político-partidariamente, caracteriza um Estado judicial hipertrofiado, no qual a lei passa a servir aos fins daqueles que a aplicam.

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O Senado, pela Constituição, é a única instância capaz de conter essa expansão de poder, por meio do impeachment de ministros. Tagliaferro forneceu elementos suficientes para que essa prerrogativa fosse acionada. No entanto, a prática política recente demonstrou o contrário: Rodrigo Pacheco e Davi Alcolumbre atuaram e atuam como fiéis escudeiros da corte, bloqueando qualquer tentativa de responsabilização. A consequência é a consolidação da juristocracia, uma forma ilegítima de governo que, mediante chantagem e ameaças de instrumentalização da Justiça, controla o Poder Legislativo e age em conluio com o Executivo.

Numa grata tentativa de reverter o quadro, os senadores de oposição presentes ao depoimento reagiram com mais firmeza que de costume. Flávio Bolsonaro classificou Alexandre de Moraes como “marginal”, denunciando um modus operandi de manipulação de provas. Jorge Seif defendeu a abertura de uma CPI para investigar a existência de um “gabinete paralelo” de produção de relatórios falsificados. Damares Alves afirmou que Moraes deveria ser preso imediatamente. Os parlamentares decidiram encaminhar o material a diversas instâncias – STF, TSE, CNJ, OAB, Ministério Público e organismos internacionais – como forma de preservar a integridade da denúncia e tentativa (a meu ver, infelizmente inútil) de quebrar o cerco corporativista que sustenta a atual juristocracia.

O depoimento de Tagliaferro mostrou, de maneira irrefutável, que a toga deixou de ser instrumento de justiça e passou a funcionar como ferramenta de arbitrariedade

O importante é que as revelações de Tagliaferro estão ganhando visibilidade, evidenciando um padrão de seletividade e instrumentalização da lei, característica comum aos regimes totalitários do século 20. A manipulação de normas para perseguir adversários específicos, enquanto aliados permanecem impunes, confirma que a lei não é mais um instrumento de justiça, mas de poder. Montesquieu já alertava que não há tirania mais perigosa do que aquela exercida sob a aparência da legalidade. O ex-serviçal de Moraes demonstrou que nem mesmo essa aparência existe mais, e que quem queira continuar a defender o regime deverá fazê-lo, a partir de agora, sem qualquer afetação de inocência.

A CPI da Vaza Toga, se instalada, representará a primeira tentativa real de restabelecer freios e contrapesos no país. Trata-se de uma iniciativa institucional relevante, que vai além da mera denúncia retórica. O depoimento de Tagliaferro mostrou, de maneira irrefutável, que a toga deixou de ser instrumento de justiça e passou a funcionar como ferramenta de arbitrariedade. O Senado, ao aceitar o registro das denúncias e encaminhá-las às instâncias competentes, tenta cumprir seu papel constitucional, mas a efetividade dependerá da coragem e da capacidade política de prosseguir até a responsabilização dos abusadores de autoridade. E, para isso, a leitura correta do cenário geopolítico global é absolutamente indispensável, fator no qual a direita pátria ainda comete muitos erros.

De todo modo, nenhuma pessoa honesta pode mais negar o quadro de erosão institucional avançada no país. O caso Tagliaferro mostra mais uma vez que o colapso da legalidade não ocorre apenas por ações espetaculares ou revoluções armadas. Ele pode se dar lentamente, de dentro para fora, via golpe de Estado judicial, quando aqueles que deveriam aplicar a lei passam a subordiná-la às próprias vontades.

A máscara da legalidade caiu. Não se trata apenas de erros ou abusos isolados, mas de um método consolidado, no qual o arbítrio se traveste de processo

A história política mundial demonstra que a impunidade e o arbítrio institucional raramente retrocedem sem resistência organizada. A experiência soviética narrada por Soljenítsin e a observação de Arendt sobre o funcionamento de regimes totalitários ilustram que burocracias corrompidas podem transformar procedimentos cotidianos e banais em terríveis instrumentos de dominação. O Brasil contemporâneo oferece um exemplo doméstico perfeito dessa dinâmica.

O depoimento de Tagliaferro expõe um fato inevitável: a máscara da legalidade caiu. Não se trata apenas de erros ou abusos isolados, mas de um método consolidado, no qual o arbítrio se traveste de processo, e o poder se legitima pela própria ficção que produz. A República não está em perigo apenas porque leis foram manipuladas; está em risco porque a consciência cívica foi posta à prova e a neutralidade institucional desmoronou. Resta à sociedade a escolha de restituir a lei ao seu lugar ou de permitir que a toga continue escrevendo história à margem da verdade. Aquele que silencia, falsifica ou adia a justiça não combate o caos, mas se torna parte dele. Como concluiu o grande Eric Voegelin: “Ninguém é obrigado a participar da crise espiritual de uma sociedade; ao contrário, todos são obrigados a evitar essa loucura e a viver sua vida em ordem”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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