Campo de refugiados de Gihembi, em Ruanda. Eduardo Castro/Agência Brasil| Foto:

Depois do meu último artigo sobre o genocídio ruandês, leitores interessados pediram-me mais informações sobre as origens históricas do fenômeno. Em atenção a esse pedido, resolvi voltar ao tema no artigo de hoje.

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Um genocídio é o terrível corolário de um conjunto heteróclito de causas. Tomadas isoladamente, nenhuma dessas causas bastaria, por si só, para precipitá-lo. Elas só se esclarecem perfeitamente em conjunto, e sempre ex post facto.  Ainda assim, para fins de estudo e compreensão, cada uma delas é individualmente valiosa e significativa, quando não porque surge de modo similar em contextos históricos e culturais distintos, como, por exemplo, no Brasil de hoje.

Ao longo dos últimos anos, um dos elementos retóricos que tornou possível a carnificina em Ruanda virou moeda corrente no discurso de parte de nossa classe política e intelectual, notadamente no debate sobre as relações raciais. Refiro-me à perigosa retórica racialista de reparação histórica, ilustrada, por exemplo, pela fala de uma jovem militante do movimento negro aos seus colegas de turma numa universidade federal brasileira: “Vocês [ela referia-se aos ‘brancos’] nos devem até a alma”.

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Para entender o genocídio em Ruanda, é preciso recuperar a história e o desenvolvimento da divisão entre tutsis e hutus, que remonta ao período pré-colonial, ao antigo reino dos banyaruandas, um Estado monárquico centralizado conhecido desde ao menos o século XV. A organização social baseava-se então numa hierarquia bem definida, mas socioeconômica, não racial: os tutsis, aristocracia pastoril dona de grandes rebanhos, governavam uma grande massa de lavradores hutus e uma reduzida minoria de serviçais domésticos, os tuás. Guardando alguma similaridade com o sistema indiano de castas, havia, contudo, mais mobilidade na sociedade banyaruanda, onde um tutsi sem rebanho, e que virasse lavrador, podia ser considerado um hutu; e um hutu capaz de adquirir cabeças de gado talvez fosse tido por tutsi. Se acrescentarmos os séculos de intercasamentos e coabitação entre membros das duas “castas”, teremos como resultado identidades grupais relativamente fluidas.

É somente com a colonização europeia (primeiro com os alemães, e em seguida, após a Primeira Guerra, com os belgas) que essas identidades começam artificialmente a se cristalizar e adquirir contornos dicotômicos. Influenciados pelas mais recentes descobertas da antropologia física, os administradores coloniais elaboraram uma série de especulações racialistas para dar conta das diferenças de modos e aparência percebidas entre tutsis e hutus. Os primeiros eram tidos por mais altos (um pesquisador alemão da época estimou a diferença média de altura em 10 cm), esbeltos e de fisionomia mais refinada que os segundos, diferença logo associada, como era típico da ideologia evolucionista da época, a uma pretensa superioridade cultural. Aos olhos dos colonizadores, os tutsis eram mais “europeus” que os hutus, o que lhes conferia uma posição privilegiada na hierarquia administrativa colonial.

Surgiu da percepção daquelas diferenças fenotípicas a hipótese de uma origem distinta para tutsis e hutus. Era comum no imaginário colonial da época uma divisão do continente africano em duas metades: uma, ao norte do Saara, tida por desenvolvida, e cujos povos, física e culturalmente mais próximo aos europeus, seriam de origem hamita ou semita; a outra, a metade subsaariana, concebida como a África selvagem, o “coração das trevas” de Conrad, habitada por povos negroides primitivos e inferiores, tanto racial quanto culturalmente. Nessa ficção antropológica, o Saara, ponte milenar responsável pelas trocas comerciais e culturais entre o norte e o sul do continente, convertia-se ideologicamente numa muralha civilizacional inexpugnável.

Dentro daquele esquema interpretativo, os colonizadores europeus de Ruanda não hesitaram em apontar a origem hamita dos “evoluídos” pastores tutsis em oposição à origem bantu dos “atrasados” agricultores hutus. Em 1926, com base nessa teoria, os colonizadores belgas oficializaram a divisão entre as “castas” ruandesas, passando a distribuir carteiras de identidade racial para cada uma delas. Em 1933, realizou-se um grande censo nacional, cujo objetivo era enquadrar todos os indivíduos ruandeses numa ou noutra categoria racial. Pela primeira vez na história do pequeno país africano, as identidades tutsi e hutu tornaram-se fixas, inequívocas e permanentes, uma política que, décadas depois, facilitaria a vida dos hutus na identificação de suas vítimas tutsis.

A administração belga em Ruanda situava-se a meio caminho entre dois grandes modelos coloniais europeus: o governo direito – pelo qual a metrópole enviava às colônias seus próprios administradores, assimilando os povos nativos à sua cultura e língua, e impondo-lhes o próprio ordenamento jurídico, como tipicamente, por exemplo, fazia Portugal com suas colônias – e o governo indireto – em que a metrópole administrava por meio de autoridades locais, usualmente separadas por etnia, e adotava o direito consuetudinário, um regime colonial que teve na Inglaterra o seu grande paradigma. Os colonizadores belgas adotaram parcialmente este último modelo, com uma diferença significativa: os hutus passaram a ser governados não por seus próprios chefes, mas por autoridades tutsi, os quais, por considerados pertencer a uma “raça” superior não autóctone, foram agraciados com as posições mais altas na hierarquia administrativa. Os “hamitas” tutsis foram postos na posição de representantes da metrópole belga. Desse modo, as velhas identidades grupais acabaram não apenas politizadas como também racializadas. A categoria minoritária tutsi, representando pouco mais de 10% da população ruandesa, virou sinônimo de colonizador ou invasor; a categoria majoritária hutu, sinônimo de nativo ou filho da terra.

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Nos anos 1950, seguindo um movimento que cobria todo o continente, Ruanda começou sua luta pela independência. E, como era de se esperar, a maioria hutu, movida por um ressentimento histórico não desprovido de causas reais, identificou na minoria tutsi, mais até do que nos colonizadores belgas, o grande inimigo a ser vencido. Graças a uma mudança gradual de postura da metrópole, surgira no país uma elite política e militar hutu, cujos sentimentos nacionalistas se misturavam inextricavelmente ao ódio aos tutsis. A velha distinção entre os “nativos” banto e os “estrangeiros” hamitas ressurgia na retórica dos anticolonialistas, fazendo nascer um sentimento de orgulho nacional hutu, cuja expressão política foi o surgimento do Partido de Emancipação Hutu, que teve como bandeira principal a luta contra séculos de opressão tutsi.

O ano de 1959 marca a grande mudança na estrutura de poder na Ruanda colonial. Depois de uma grande escalada de violência entre os dois grupos, a elite política hutu toma o poder das mãos da aristocracia tutsi, num processo que ficou conhecido como a “revolução social” de 1959, que alguns analistas, como o cientista político franco-americano René Lemarchand, chegaram na época a comparar com a Revolução Francesa, pondo os hutus no papel de jacobinos. Por meio de um referendo, os hutus consolidaram o seu poder em 1961, mas só depois de haverem incendiado casas, matado centenas de tutsis e expulsado outros milhares para países vizinhos como Uganda, Burundi, Tanzânia e Zaire.

Em 1962, a independência ruandesa é formalmente reconhecida, sob o governo hutu do presidente Grégoire Kayibanda, processo que se deu em meio a ataques que os refugiados tutsis organizados moviam a partir de bases em Uganda e Burundi. Os ataques dos rebeldes tutsis no exterior fizeram com que a recém-criada república hutu aumentasse a repressão contra os tutsis remanescentes em Ruanda, processo que se intensificaria nos anos seguintes. Em 1973, um golpe militar depõe Kayibanda, levando ao poder o major hutu Juvénal Habyarimana, que assume prometendo pôr fim à violência étnica no país, mas que mantém uma política inter-racial ambígua, ora cedendo fatias de poder político aos tutsis, ora respaldando as ações de extremistas hutus, sobretudo depois que, em 1990, a Frente Patriótica Ruandesa (FPR), formada por exilados tutsis, invade Ruanda pela fronteira ugandesa, dando início à violenta guerra civil que prepara o clima pré-genocídio de ressentimento histérico.

Dentro do país, aumenta a perseguição aos tutsis por parte dos radicais. Surge a milícia hutu conhecida como Interahamwe, (“Juntos Atacaremos”), e, articulada por acadêmicos hutus tais como Ferdinand Nahimana, Leon Mugesira, Casimir Bizimungo, Hassan Ngeze, entre outros, a retórica genocida começa a se fazer ouvir abertamente na recém fundada rádio Mil Colinas. Em 1992, a ONU começa a negociar um acordo de paz entre a FPR e o governo ruandês. Nesse contexto, Habyarimana aceita abolir a ditadura de partido único e formar um governo de transição, convidando os tutsis a participar das eleições gerais. Em 1993, na Tanzânia, o ditador assina com representantes da FPR o Acordo de Arusha, que deveria pôr fim à guerra civil. Inconformados com o que viam como uma capitulação de Habyarimana, os extremistas hutus, já inteiramente possuídos por fantasias genocidas, promovem massacres contra tutsis. No ano seguinte, dois mísseis atingem o helicóptero em que, no contexto das tratativas de paz, viajavam o ditador ruandês e um chefe de estado do Burundi. A aeronave explode no ar matando todos os tripulantes e, com eles, a última esperança de uma solução diplomática para a guerra civil. Até hoje permanece desconhecida a autoria do atentado, que tanto pode ter sido obra dos extremistas hutus interessados num pretexto para o genocídio, quanto de combatentes da FPR. Era o dia 6 de abril de 1994. Horas depois, começava o massacre.

Há algo no genocídio de Ruanda que até hoje nos intriga, um traço alarmante que o diferencia dos demais genocídios modernos, notadamente do Holocausto. Um ano após o ocorrido, um comissário político da FPR sintetizou-o com perspicácia: “Quando tomamos Kigali, pensamos que enfrentaríamos criminosos de Estado; em vez disso, enfrentamos uma população criminosa”. Sim, o genocídio ruandês não foi simples obra de um governo, de um regime político, de um exército. Ele foi perpetrado pela população civil hutu em peso, aí incluídos intelectuais, professores, médicos, enfermeiras, juristas, ativistas de direitos humanos etc., uma gente que, até o dia anterior, talvez não houvesse matado sequer uma galinha, e que agora não hesitava em chacinar vizinhos e parentes. Seu cenário não foram campos de concentração afastados do escrutínio público, mas ruas, cidades, colinas e pântanos espalhados por todo o país. Tratou-se, em suma, de um genocídio popular.

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Ora, um crime daquela magnitude jamais teria sido possível sem que uma perversa ideologia de vingança e reparação histórica (como a que infectou parte da intelligentsia brasileira no que diz respeito às relações raciais) houvesse preparado os espíritos para cometê-lo. E essa ideologia não seria tão sedutora não fosse calcada em verdades históricas parciais e, sobretudo, em meias-verdades. Sim, era verdade que, durante o período pré-colonial, e especialmente durante a administração belga, os tutsis formaram uma aristocracia que subjugava os hutus. Sim, muitos hutus sofreram nas mãos de poderosos tutsis. No entanto, acreditar que os tutsis da época do genocídio descendiam diretamente dos poderosos de outrora, como se o tempo tivesse parado, e como se pudessem ser ignorados os séculos de miscigenação “racial”, era uma corrupção ideológica da história ruandesa. É o mesmo que acreditar, como fazem os neorracistas brasileiros (que enfrentam o racismo de modo racista), que os brancos de hoje são representantes dos donos de escravos do século XIX. A eleição dos tutsis como uma “raça” estrangeira e exploradora, responsável por todos os males do país, foi o pano de fundo para uma série de políticas compensatórias, incluindo cotas raciais na universidade e no serviço público, e para o recrudescimento de um ódio racial artificialmente construído. Assim como para a militante do movimento negro brasileiro, também os hutus acreditavam que seus compatriotas tutsis lhes deviam até a alma. E, conquanto nada indique que o Brasil venha um dia a passar por algo parecido ao que ocorreu em Ruanda, ainda assim essa promoção forçada da bipolarização racial não pode deixar de envenenar as relações sociais. E isso é algo que toda pessoa sensata deveria repudiar.