Centro de testagem e vacinação contra Covid em Miami, na Flórida.| Foto: Cristobal Herrera-Ulashkevich/EFE/EPA
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Diz-se que Isaac Newton começou a formular sua teoria da mecânica clássica após ser atingido por uma maçã que despencou da árvore sob cuja sombra ele descansava. Aquela observação empírica teria levado Newton a questionar o porquê de objetos se moverem no plano terrestre.

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Newton, como qualquer cientista de verdade, formulou uma teoria que explicava os fenômenos que ele mesmo observara. Como gênio que foi, conseguiu unificar em apenas três leis as regras que explicam a movimentação de qualquer corpo, seja no planeta Terra ou no espaço. Séculos mais tarde, Einstein complementaria a teoria de Newton com a noção de Constante da Velocidade da Luz, entregando um arcabouço matemático mais robusto e uma formulação que explica os casos em que a mecânica newtoniana falha: as movimentações de corpos ou partículas em velocidades próximas à da luz.

Tanto Newton como Einstein, bem como todos os grandes nomes da ciência mundial, buscaram criar explicações para fenômenos observáveis no mundo real. Esta é a essência da ciência. Não teria cabimento, por exemplo, que Newton formulasse leis cujos resultados teóricos não correspondessem aos resultados empíricos. Não se muda a realidade, e sim o modo como a interpretamos. Embora isso pareça óbvio, não é o que se vê no mundo dos “cientistas” de Twitter, e em especial no tocante a assuntos politizados como a pandemia de Covid-19. Quando temas como eficiência de lockdowns e uso de máscaras de pano surgem, toda a evidência empírica é desprezada e cada um se mune dos estudos teóricos que mais lhe convêm para defender sua opinião do coração.

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Em breve chegaremos a dois anos de Covid, e finalmente temos evidências fáticas do que funcionou e do que não fez diferença. E que fique bem claro: funcionar no sentido de ter dado certo no mundo real

E é justamente com base nesses dois temas que pretendo desenvolver este texto. Em breve chegaremos a dois anos de Covid, e finalmente temos evidências fáticas do que funcionou e do que não fez diferença. E que fique bem claro: funcionar no sentido de ter dado certo no mundo real. Pode-se apresentar dezenas de estudos mostrando a eficiência do uso de máscaras em um ambiente controlado, mas é somente a análise de dados obtidos das aplicações no mundo real, caótico e descontrolado, que nos dirá se elas realmente funcionam. Da mesma forma, parece bastante lógico que lockdowns sejam necessários para evitar a superocupação de leitos de UTI, mas será que essa lógica se traduz em vantagens verdadeiras quando aplicada ao mundo real?

Para tentar responder a essas indagações, usarei dados de dois estados norte-americanos, Flórida e Califórnia.

A Califórnia, um dos estados mais democratas dos Estados Unidos, implementou um dos lockdowns mais draconianos do país. Já em março de 2020 o governador Gavin Newsom assinou uma ordem executiva proibindo as pessoas de sair de casa, exceto para atividades de extrema importância, listadas no corpo da ordem. O relaxamento quase total dessa ordem só chegou em junho de 2021, ou seja, 15 meses depois. Além disso, os californianos vivem hoje sob uma obrigatoriedade tácita de vacinação – quem não tem prova de vacinação sofre com restrição de acesso a diversos locais, tendo de apresentar testes negativos de Covid para compensar a falta de vacina – e a obrigatoriedade de máscaras em vários locais públicos e em escolas.

A Flórida, estado com ambas as casas legislativas de maioria republicana e com governadores republicanos desde 1999, implementou um dos lockdowns mais curtos da nação. No começo de abril de 2020, o governador Ron DeSantis emitiu uma ordem executiva limitando o funcionamento das empresas apenas à lista de atividades consideradas essenciais. A ordem deixou muita gente em casa, afetando um dos principais motores econômicos da Flórida, a indústria de turismo, mas por pouco tempo. Em 25 de setembro do mesmo ano, DeSantis já anunciava a entrada do estado na fase 3 de retorno, o que significou a reabertura de todos os estabelecimentos comerciais em capacidade máxima e a proibição aos governos locais (cidades e condados) de imporem restrições ou multarem empresas por causa de restrições relacionadas à pandemia.

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Em relação à obrigatoriedade do uso de máscaras, o governo da Flórida não só a retirou na fase 3 como também criou regras impedindo a imposição de máscaras por cidades e condados. Pode-se dizer que a Flórida é um dos estados com menor regramento em relação à Covid na atualidade. E o governador, em declaração recente, disse ter se arrependido de fazer o lockdown, pois entende que foi mais prejudicial que benéfico.

O que os números dizem? Que trancar as pessoas em casa, fechar comércios e obrigar o uso de máscaras não tiveram influência significativa sobre o destino das pessoas doentes

E o que os números dizem? Bem, os números não se importam com as dezenas de estudos sobre a eficiência ou não das máscaras. Eles não se importam com as análises sobre as vantagens e desvantagens dos lockdowns. Eles não se importam se os políticos são de um partido ou de outro. Os números apenas refletem o que aconteceu no mundo real, aquele que deve ditar nossas teorias, e não o contrário. E os números dizem que, em todas as faixas etárias de risco, o número de mortes por Covid per capita foi maior na Califórnia que na Flórida. Basicamente, isso quer dizer que as fórmulas utilizadas, de trancar as pessoas em casa, fechar comércios e obrigar o uso de máscaras, não tiveram influência significativa sobre o destino das pessoas doentes. E, se não ajudaram, certamente atrapalharam.

Não acho que seja hora de culpar pessoas e políticos. Essa pandemia foi algo inédito, e ninguém sabia o que fazer. Quem não se lembra das recomendações absurdas de desinfetar todas as compras que chegavam do supermercado, desinfetar os sapatos, tudo para não trazer o vírus para dentro de casa? O tempo mostrou que não houve um caso sequer de transmissão via superfície, e hoje podemos olhar para trás e ver o quão ridículo era lavar latas de milho e sacos de arroz. O mesmo ocorre com os lockdowns. Precisamos olhar para o resultado e entender que não deu certo. Foi uma tentativa, parecia ter lógica, mas não funcionou. Idem para com as máscaras de pano.

O mundo precisa parar de fazer ciência ao contrário, tentando arrumar justificativas para medidas que, no mundo real, se mostraram inúteis. Precisamos entender essa pandemia a partir da realidade, para que tenhamos ferramentas melhores caso algo semelhante ocorra no futuro. É essa a ciência que salva, e não a citação de mil e um artigos obscuros, cada um feito em seu pequeno ambiente de controle, cada um apresentando resultados totalmente descolados da realidade. Negacionista não é quem nega essa ciência ao contrário, e sim quem nega a realidade.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]