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HO/Jair Bolsonaro's Press Office/AFP
HO/Jair Bolsonaro's Press Office/AFP | Foto:

 “A morte de Jair Bolsonaro não interessa somente aos inimigos declarados, mas também aos que estão muito perto. Principalmente após de (sic) sua posse!”, tuitou Carlos Bolsonaro dias atrás. É claro que é algo grave e a turma da imprensa e os analistas políticos todos irão pagodear por dias especulando isso e mais aquilo sobre a vida e a morte dos Bolsonaros, mas eu só consigo mesmo é lamentar que os irmãos Coen não tenham incluído em seu mais recente filme a história do encontro de Jair Bolsonaro com a morte, escapando dela.

The Ballad Of Buster Scruggs, disponível na Netflix, está certamente entre os melhores filmes de 2018 e não é outra coisa senão uma meditação sobre a vida e a morte. E que meditação sensacional, como esta de um dos personagens: “Acredito que a certeza naquilo que podemos ver e tocar raramente é justificável ou nunca. De todas as nossas eras, quais certeza sobreviveram? E no entanto fabricamos algumas em busca de conforto.” Porque morreremos, todos, e esta é a única certeza da vida. No mais: “Incerteza, isso é apropriado para as coisas deste mundo”, disse o mesmo personagem.

O filme tem a forma de uma leitura de um livro contendo 6 contos, aparentemente sem conexão entre eles, mas umbilicalmente ligados tematicamente pela presença constante da morte acontecendo em cada história de maneira diversa. Se nos dois primeiros o nonsense e a ironia típica dos irmãos Coen dão o tom e o ritmo, a partir do terceiro a ironia se cala, o riso é esquecido e uma angústia crescente vai tomando conta até terminar em desgraça, no sentido literal de “ausência de graça”, formando um símbolo poderoso do que é o ser humano diante da morte: completamente impotente.

Neste terceiro conto, um rapaz sem braços e pernas, tendo apenas a sua capacidade retórica como meio de ganhar o sustento, quando não consegue mais conquistar plateias é não apenas trocado por uma galinha pelo seu “dono”, mas sofre algo muito pior. Em uma de suas falas em suas apresentações ele cita Shakespeare falando sobre a natureza da graça divina, como “gota a gota ela cai, tal como a chuva benéfica do céu”. Não ali, não para ele. É um conto impactante que nos devolve ao espírito do Eclesiastes: “Vi mais debaixo do sol que no lugar do juízo havia impiedade, e no lugar da justiça havia iniquidade.” (Eclesiastes 3:16)

Mas o conto seguinte faz movimento oposto e para o minerador interpretado por Tom Waits, a fala de Shakespeare sobre a graça ser abundante como a chuva faz todo o sentido. Dois símbolos são usados aqui: a coruja e o cervo. Aquela costuma ter o significado de conhecimento racional, mas por não ser na história uma ave noturna e sim pairar sobre o minerador o tempo todo durante o dia, fornecendo inclusive alimento com seus ovos, simboliza não a reflexão humana, mas a sabedoria divina que domina as trevas e deixa tudo na luz. O cervo ao final complementa o significado da história, simbolizando o renascimento cíclico que nos devolve ao Eclesiastes, mas com mais esperança e alento: “Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois. Eu, o pregador, fui rei sobre Israel em Jerusalém. E apliquei o meu coração a esquadrinhar, e a informar-me com sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu; esta enfadonha ocupação deu Deus aos filhos dos homens, para nela os exercitar.” (Eclesiastes 1:10-13)

É compreensível que o quinto conto seja, então, marcado por este esquadrinhar do coração do homem. É neste que aparece a primeira citação acima, sobre a incerteza que é viver neste mundo e como é estreita a porta “e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.” (Mateus 7:14) A citação bíblica é feita pelos personagens, não por mim, e são essenciais para a compreensão de todo o filme porque a meditação que faz, começando pelo primeiro conto, remete ao destino final depois da morte. Buster Scruggs sobe ao paraíso como um anjo e no último conto, uma alegoria da passagem da morte para o que vem depois dela, termina deixando o espectador do lado “de cá” de uma porta em cujo umbral se vê a figura de um anjo e de um bode, típicos símbolos de Céu e Inferno.

No fim das contas, o protagonista do filme é toda a humanidade, simbolizada no quinto conto pelo povo de Israel. Há uma cena gratuita da caravana em direção ao Oregon com um menino caminhando de costas, ao que sua mãe pergunta: “O que está fazendo, Israel?”. Israel responde que está indo em direção ao Oregon, mas de costas. Considerando que na marcha de toda vida humana nossa terra prometida, vista do plano terreno, é a morte, é interessante pensar que tanto faz o que você faça nesta vida e como faça, para lá você irá de qualquer forma, ainda que “de costas”. Por isso nesse mesmo conto em que o aspecto simbólico de todo o filme vai se tornando cada vez mais explícito até escancarar-se na alegoria do último, há a cena em que a “moça nervosa” está montada num cavalo, segurando o cachorro que late para uns bichos que parecem umas toupeiras, dizendo: “Presidente Pearce (nome do cachorro) está tentando entender o que são essas criaturas”.

Tentando entender o que somos nós, humanos mortais, é o que parece que o filme está a fazer. No conto derradeiro, os ceifeiros a certa altura revelam que adoram observar os seres humanos quando se dão conta que irão morrer e como ficam tentando entender o que se passa. “E eles entendem?”, pergunta um dos passageiros da diligência que levava a todos, ao que respondeu o ceifeiro: “Não sei, eu apenas observo”. Talvez essa resposta só tenhamos depois da morte. Antes dela, o que temos é justamente o “coração a esquadrinhar, e a informar-me com sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu; esta enfadonha ocupação deu Deus aos filhos dos homens, para nela os exercitar.”

Mas o filme não deixa de ser também uma afirmação de se viver com e pela fé, necessária à incerteza inevitável da vida, e também um canto de esperança de que algo não só há depois da morte, como é um lugar bom, cantado por Buster Scruggs enquanto sobe ao Céu: “Deve haver um lugar em que os homens não são desprezíveis e não roubam no pôker. Se não existe, sobre o que são todas as canções? Vejo vocês lá e poderemos cantar e desaprovar toda a maldade que existia.” O simples fato do título do livro filmado ser o da história de Buster Scruggs significa que é ela quem dá o sentido final do filme.

Voltando aos Bolsonaros e recordando a facada e tudo o mais que se seguiu até chegarmos àquele tuíte de Carlos, indicando que essa história talvez mal tenha começado, fiquei a pensar em qual dos contos ela melhor se enquadraria. Seria o do minerador abençoado de graças ou o do retórico impotente diante do mal? Ou talvez seja o do vaqueiro do quinto conto que tenta fazer o seu melhor conduzindo a caravana até o seu destino, sobrevivendo às tragédias, mas sem saber o que dizer a respeito delas? Certamente o momento da carruagem ele já viveu, retornando da proximidade da morte que a facada lhe causou. Terá aprendido a esquadrinhar seu coração e não incorrerá no erro fatal de Buster Scruggs, o da vaidade diante do que conquistou? Espero que sim, embora o abusar das fotos fabricadas para demonstrar simplicidade e autenticidade deem indício do oposto.

Qual será, no fim das contas, a balada de Jair Bolsonaro? Seja qual for, será: “De tudo o que se tem ouvido, o fim é: Teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo o homem. Porque Deus há de trazer a juízo toda a obra, e até tudo o que está encoberto, quer seja bom, quer seja mau.” (Eclesiastes 12:13,14)

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