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A poetisa Helena Kolody.
A poetisa Helena Kolody.| Foto: Luiz Costa/Arquivo Gazeta do Povo

Se Curitiba fosse dos invisíveis exibidos, dos Trapos em cargos de confiança, dos vampiros banguelas, dos cosplays de Leminski, dos plurais sem diversidade, jamais seria Curitiba. Que tão pouco é a da propaganda oficial, seja a de hoje ou a de todos os ontens. Em Curitiba cabem todas as Curitibas, com nenhuma delas nos definindo. Acho que Cristóvão Tezza tem razão: “Curitiba é uma atmosfera”.

Tezza deu essa definição num encontro de um grupo de leitura cuja mediação tenho a honra de fazer. Estávamos a ler seu romance que o tornou conhecido, Trapo, e viajando literariamente por nossa cidade que completou 330 anos nesta semana. Por causa desse trabalho, revisitei vários autores conterrâneos, também conhecendo novos. E fiquei a pensar: quem somos, como curitibanos?

Não consigo, por nossa literatura, apontar isso ou aquilo como um traço distintivo, portanto definidor, de nossa identidade e, no entanto, ela é nítida, quase palpável, não fosse uma atmosfera. Sendo isso, é preciso a névoa para vermos Curitiba, que se revela, portanto, mais como uma paisagem interior comungada do que um exterior urbanizado cheio de parques e radares por todos os lados.

Não consigo, por nossa literatura, apontar isso ou aquilo como um traço distintivo, portanto definidor, de nossa identidade e, no entanto, ela é nítida, quase palpável, não fosse uma atmosfera

Às vezes, quase sempre, parecemos sufocados pelo nevoeiro das futilidades de nossa elite, das invejas dos que poderiam ter sido e não foram, das mesquinharias do clima, dos ressentimentos vazando por nossa boca maldita que adora falar mal de si, mas daqui não sai, fantasiando-nos de antipatia ao visitante desavisado.

Às vezes, mas nem sempre. Há ternura em Dalton Trevisan, por exemplo. Leia o conto Um Dia, publicado em O Beijo na Nuca: “Sobre a cidade o grande pássaro de luz revoa no seu fremir de pálpebras. No céu ventam delícias, um ipê sorri maravilhas, obediente ao meu poder. Sou o primeiro homem descobrindo o dia na sua caverna”.

Parece pouco? Uma mínima poesia de Helena Kolody como resposta: “Tudo se torna minúsculo / nas almas pequenas”. O título desse poema é Espelhos Côncavos. Acho boa pista para conhecer nossa paisagem interior, vendo no exterior que parece tão pouco, pequeno, um quase nada, também uma portinhola para o muito, o grandioso, o inefável. Por isso, Curitiba cabe toda num haikai. De novo, Kolody:

Pintou estrelas no muro
e teve o céu
ao alcance das mãos.

Aliás, o primeiro livro de poemas de Helena Kolody, de 1941, preparado em segredo por ela como presente-surpresa de aniversário de 60 anos do pai, inteiramente publicado por ela, que escolheu papel, tipografia, criou a capa e bancou com seu dinheiro uma tiragem de 450 exemplares, chama-se Paisagem Interior.

Infelizmente, o pai morreu dois meses antes do seu aniversário, com ela quase desistindo da publicação. Mas amigas a incentivaram e o livro saiu. Essa paisagem interior, resultante de dez anos de criação poética, agora marcada pela morte, que fez da festa um velório, nasceu tão alargada quanto profunda. Leia Reflexos: “Teus olhos são limpos como o céu varrido pela tempestade / desertos como a terra depois do dilúvio, / profundos como os abismos abertos pelos cataclismos. / É que passou por eles a Vida.”

Se fosse eu a escolher apenas uma pessoa a nos representar, seria Helena Kolody. Desde 1969 ela se instalou no apartamento 901 do edifício Vila Rica, que fica na Rua Voluntários da Pátria, 11. De sua janela, via a Serra do Mar ao longe, com a praça Rui Barbosa ao perto. Dessas visões, quantos poemas.

Se fosse eu a escolher apenas uma pessoa a nos representar, seria Helena Kolody

Sua biografia revela a “vidinha” da maioria dos curitibanos, tão aparentemente invisível quanto. Raramente era reconhecida nas ruas, mas deduzo que pouco se importava com isso. Com o que se importava, aí sim, era com o que era capaz de reconhecer.

Dentre as coisas que reli, uma foi oRoteiro Literário – Helena Kolody, que a Biblioteca Pública disponibilizou anos atrás. Uma passagem me marcou, uma citação dela dizendo: “Dia destes, quando cruzava a Praça Rui Barbosa, vi uma pena de pombo cair na calçada. Apanhei-a, contemplando-a, e na hora pensei num poema. Como tinha apenas um lenço de papel, foi nele que escrevi: ‘Apanhei na calçada uma pena de pombo, aprisionei um momento de voo e vento’”.

Nesse olhar, quanto cuidado. Nessas contemplações, nossa atmosfera Abismal:

Meus olhos estão olhando
de muito longe, de muito longe,
das infinitas distâncias
dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria sua face.
Mas os cinco dedos pendem como um lírio murcho
ao longo do vestido.

Aqui tudo é leve, silencioso, indefinido,
imóvel.
Não tenho mais limites.
Tornei-me fluída como o ar.
Seus olhos têm apelos magnéticos,
mas estou abismada
em profundezas infinitas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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