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A guerra de todos os dias
| Foto: Bigstock

Costumo escrever pelas manhãs, geralmente depois de ter feito algum exercício físico. Como, por restrição médica, não posso correr ainda (minha terapia mais recente), saí a caminhar pelos lados do Juvevê até chegar ao Ahú. Ainda existe o “Ahú de Baixo”? Ou nunca foram dois bairros?

Ah, saudades do tempo sem Google, em que o cronista podia se perguntar alto, parecendo até vagamente poético, sem precisar buscar ou esperar respostas. Descubro, enfim, que o bairro é um só, parece, e a divisão entre o Ahú de Cima e o de Baixo é mais coisa dos moradores. O “de Baixo” foi o bairro da minha infância. Não foi; é, sempre será.

Caminhando eu pensava no que escrever aqui, observando os velhinhos emprumados a entrar nas padarias, empregadas a passear com cãezinhos empetecados, piazada corcunda com o peso das mochilas a carregar entrando nas escolas.

Em uma delas, a Loureiro Fernandes, onde minha mãe deu aula muito tempo atrás, parei na entrada e fiquei a observar um vira-lata largado rente à porta, se coçando. Das dúzias de jovens passando, uma parou, se abaixou e ficou fazendo um longo agrado, que me arrancou um sorriso.

Segui caminhando, já pensando em escrever uma crônica “das antigas”, ao estilo de Rubem Braga (“Paro na padaria miserável e vejo se tem pão fresco) ou Carlos Heitor Cony, que volta e meia escrevia sobre sua cadela, Mila: “Liturgia de todas as manhãs: quando me vê entrar no banho, Mila vai para o canto dela e desaba.”

Fosse um artigo “científico” haveria necessidade de notas de rodapé a informar que a crônica de Braga se chama Sentimento do Mar, e a de Cony, A Melhor Parte. Como hoje em dia é científico o que queremos acreditar que seja, ficam aí as notas desfeitas de rodapé como convite à pesquisa você sabe onde.

Nesta altura, agradeço ao leitor que ainda permanece lendo. Vivemos em uma época tão insana que considero quem lê - e aprecia - crônicas assim como sendo um “irmão de armas” nessa guerra diária que lutamos, principalmente na vida virtual, entre o efêmero e o permanente, entre o que importa e o que distrai.

Polzonoff, dos melhores cronistas da atualidade, escreveu sobre isso recentemente. Recomendo a leitura, assim como a Carta Aberta a Polzonoff, que Bruna Frascolla escreveu também aqui nesta Gazeta do Povo, um dos poucos oásis que ainda possui cronistas tentando ser cronistas.

Vivemos em uma época tão insana que considero quem lê - e aprecia - crônicas assim como sendo um “irmão de armas” nessa guerra diária que lutamos, principalmente na vida virtual, entre o efêmero e o permanente, entre o que importa e o que distrai

Deixei a minha crônica de lado. A vida, aquela, chamou. Retomei agora, em novo dia, sem caminhada porque o dia será cheio. Leio o aqui escrito contrastando com a notícia do dia sobre a invasão russa à Ucrânia. A crônica mofa antes de nascer.

Como toda crônica digna do nome. Porque esta é uma de suas funções, servir para um instante de respiro e mansidão em meio à guerra, de todos os tipos e de todos os dias. Não como uma distração, mas um convite à contemplação, que é o que dá vida à vida.

A crônica, quando das boas, torna-nos mais parecidos com uma criança a adiar seu dia para acarinhar um vira-lata que passou pelo seu caminho. Não dura muito, provavelmente será esquecida. Mas há pães frescos em padarias miseráveis todos os dias, assim como vira-latas a esperar os que têm sede e fome de um sorriso.

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