Tragédias como a do Rio Grande do Sul são daquelas realidades em que qualquer forma de registro, qualquer tentativa de retratar, descrever, interpretar, acabará sempre por diminuir a dimensão do acontecido. E beira a indecência quando fazem vídeos e reportagens adicionando musiquinhas tristes ao fundo e uma edição “cinematográfica”.
Tenho trabalhado escutando rádios gaúchas, que passam as 24 horas do dia cobrindo o desastre, informando e prestando um serviço mais do que relevante. Mas quando os fatos vão se aquietando e sobram apenas as histórias de quem perdeu tudo, talvez mais do que tudo, o desalento é tão tremendo, tão, tão…
É tanto que não há uma palavra que possa representar a contento; no máximo, conseguimos expressar nossa incapacidade de expressar. A língua inglesa tem um bom termo para essa insuficiência diante de algo tão trágico, que é overwhelming, mas qualquer tradução para o português fica distante da realidade, seja “esmagador”, “opressivo”, “muito pesado” e por aí vai.
Diante de tragédias da magnitude da gaúcha, nenhum outro drama é sério o suficiente e toda tentativa de torná-lo relevante é apenas mais uma forma de indecência
Voltava para casa no início da noite, com a chuva que nem chuva era, caindo mais suave que uma garoa, molhando apenas ao ponto de fazer brilhar as pedras das ruas no entorno das ruínas de São Francisco, espelhando o nublado do céu. Ao avistá-las, pensei neste espaço, no que escrever, tentando encontrar uma forma de falar sobre a tragédia que não fosse indecente. Não encontrei, pensando em alternativas igualmente atuais, como as barbaridades cometidas por alguns “jornalistas” nesta semana.
Imaginei, então, uma crônica com um repórter das antigas, já no fim da carreira, desiludido e desesperançado com o jornalismo, velho demais para desistir dele, também se achando velho demais para se libertar. Estaria saindo de um jantar com amigos de longa data, todos engolidos pelo cinismo ou alguma ideologia, enquanto ele, por teimar em ser e querer ser apenas repórter, descobria-se um idealista que nunca fora e que só poderia ser em tempos assim, quando os ideais foram todos prostituídos e a mera recusa de se degenerar já seria virtude suficiente.
Não era uma má ideia, talvez um dia a retome, invente, reconte, quando a realidade permitir que dramas assim tenham alguma importância. Mas a verdade é que, diante de tragédias da magnitude da gaúcha, nenhum outro drama é sério o suficiente e toda tentativa de torná-lo relevante é apenas mais uma forma de indecência. E lá vou eu usar de novo essa palavra, mas é como sinto, não escapando de ser também um tanto indecente neste texto.
No dia seguinte, uma amiga enviou um vídeo de um perfil de instagram em que o sujeito conversava com uma senhora que limpava sua casa, tendo perdido tudo que havia dentro, mas que a enchente havia lhe dado um “presente”: uma cruz enorme, que nem cruz era, mas ficou no formato de uma, feita de madeiras quebradas. Calei-me. Havia uma palavra, no fim das contas, que dava conta da tragédia: cruz. Mas será que tenho noção da dimensão real da cruz, aquela?
Escrevendo aqui me lembrei de uma passagem do Eclesiastes, que diz: “Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não transborda”. Isso me confortou. Se há Deus, Ele é como o mar. E nele chegamos como náufragos agarrados em cruzes de madeira que são, ao mesmo tempo, prova da tragédia e tábua de salvação. Eu sei, dizer essas coisas nessa hora em que só sobrou a cruz quebrada talvez seja só mais uma indecência.
Precisava de Nick Cave. Sempre volto a ele em momentos assim, é quem me parece melhor navegar atualmente nas enchentes da vida, fazendo da cruz um barco
“E não é um choro que você escuta à noite / Não é alguém que viu a luz / É um frio e alquebrado Aleluia”, escuto Jeff Buckley cantar na sua versão de Hallelujah, enquanto releio o que escrevi, incerto se estou a tentar chorar, a procurar por alguma luz ou a lutar contra a tentação de apagar tudo e escrever outra coisa, sem aleluia algum.
Precisava de Nick Cave. Sempre volto a ele em momentos assim, é quem me parece melhor navegar atualmente nas enchentes da vida, fazendo da cruz um barco. No seu blog, ele respondeu a uma longa carta de um músico, agoniado por estar no começo de carreira e ter uma excelente oportunidade de se apresentar em um festival importante, mas que estava sendo cancelado na internet (o festival, não o músico), porque um dos patrocinadores seria “apoiador do genocídio israelense em Gaza”. Ele não sabia o que fazer, se desistia ou não. Havia boas razões para ambas as decisões, segundo pensava. A resposta de Cave me desarmou. Disse apenas: “Querido, toque. Com amor, Nick”.
É… Que vergonha sinto, Nick. Obrigado por isso. Mais indecente é a vaidade. Enfim, escrevi. Espero que com amor também.
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