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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Supremocracia

Ainda somos dignos de uma democracia?

Chamam de crise institucional, mas é autoritarismo em curso. Democracias renascem quando a sociedade admite que as perdeu. (Foto: Aline Menezes com Chat GPT)

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Há três anos, escrevi sobre o cansaço de fingir que nossa democracia ainda vivia. Fui devolvido àquele escrito por um editorial recente desta Gazeta do Povo (fiquei honrado pela menção e até feliz por ver que alguns textos permanecem vivos), que retomou minha pergunta melancólica: "Como as democracias renascem?".

Aquela coluna de 2022 foi, percebo agora, parte do meu processo de luto. Um luto comungado com muitos, mas ainda em número insuficiente, de quem enxerga perfeitamente bem a morte da nossa democracia. Como um todo, nós, a sociedade brasileira, ainda estamos na fase da negação.

Isso ficou escancarado com a primeira reação geral à carta do presidente dos EUA, Donald Trump, que informou o governo brasileiro sobre a aplicação de tarifas comerciais como sanções por perseguição judicial a Jair Bolsonaro e às chamadas 'big techs'. Trocando em miúdos, está nos acusando de não agirmos como uma democracia.

Foi um griteiro só por aqui em defesa de nossa soberania, que seria interferência externa em assuntos internos e bibibi e bobobó, passando-se, então, a concentrar o debate público apenas na questão econômica, como tentar negociar etc.

Mas recusamos, até aqui, a encarar os principais motivos apontados na carta e tentar lhes dar resposta mínima. E Trump vem repetindo parte desses motivos, dia após dia, em entrevistas e pronunciamentos: só fala da perseguição judicial a Bolsonaro.

Sim, concordo que focar apenas nisso faz parecer coisa de irmão mais velho e forte tentando vingar o menor que apanhou na escola.

Mas uma análise honesta do que vem fazendo o STF há muitos anos revela, sem dificuldade, que o julgamento de Bolsonaro se insere em um processo de destruição flagrante do Estado de Direito. Isso é apenas um exemplo de abuso dentre centenas de outros que possuem arbitrariedades ainda maiores. Como no caso de Filipe Martins, por exemplo.

Nesta semana, Alexandre de Moraes novamente agiu de forma absurda para uma democracia: atingiu uma rede social estrangeira que sequer opera no Brasil, ordenando-lhe diretamente censurar pessoas sob pena de multa, ignorando o devido processo legal de comunicação entre estados soberanos. Ou seja, Alexandre de Moraes quem age como quer, quando quer, sem pudor algum, achando-se autoridade de país estrangeiro como se fossem parte da cozinha de sua casa.

Negamos o absurdo dessas coisas e a consequente morte da democracia quando tratamos como se fosse uma "crise institucional". Não é mais. Hoje é, simplesmente, o funcionamento “normal” de um sistema autoritário onde o Executivo só governa através do Judiciário, que se tornou mais do que um poder moderador, fazendo do Legislativo um coadjuvante, um bibelô democrático. 

Aliás, como se viu mais uma vez nesta semana com a decisão monocrática do mesmo Alexandre de Moraes esfarelando a decisão do Congresso sobre a confessa inconstitucionalidade do aumento do IOF pelo governo - confessa, porque foi anunciada por Haddad como sendo medida arrecadatória de um imposto que só poderia ter finalidade regulatória. Pouco importa o que seja, o que está valendo é a vontade de apenas uma pessoa: Alexandre de Moraes.

O editorial que me trouxe de volta àquela pergunta de 2022 tem razão: democracias mortas não ressuscitam por decreto ou por wishful thinking. O que significa dizer que temos um começo de resposta. O “como” principia pelo “quando”.

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Se só o que dá para fazer agora é nomear as coisas pelo que são, insistamos nisso. Não há "tensão entre poderes", mas concentração de poder nas mãos de uma única pessoa - ou onze. Não há "crise institucional", mas captura institucional. Não há "Estado de Direito", mas um regime autoritário em vias de consolidação. Não há “Democracia”, mas Supremocracia.

Significa também continuar cobrando dos nossos representantes que parem de normalizar o anormal, continuar exigindo transparência real nos processos judiciais, continuar questionando cada decisão monocrática que rasga a Constituição. Ainda que pareça inútil, como espasmos de um corpo recém-morto, insistamos.

Pensando melhor, talvez a pergunta que devemos responder não seja se, como ou quando a nossa democracia vai renascer, mas se ainda somos dignos de uma. A dignidade sobrevive em cada um que se recusa a normalizar o inaceitável. Mesmo que sejamos poucos. Especialmente porque somos poucos.

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