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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Memória

Do nunca ao para sempre – mas sem pressa

Charles Bradley cover changes black sabbath
O cantor Charles Bradley, em foto de 2016, durante show na Alemanha. (Foto: Jörgens.mi/Wikimedia Commons/Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license)

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Aniversários de morte... É esquisito associar uma coisa à outra, mas aniversários não são apenas festivos, são também o marco da passagem de mais um ano de algum fato, qualquer fato, não apenas o nascimento.

Leitores que me acompanham nestes mais de dez anos de coluna sabem que costumo escrever nos aniversários delas, as minhas mortes. Talvez eu seja um desses adoradores mórbidos de ausências, como chamou Nick Cave. Devo ser, mas, como o próprio Cave também é, estou bem acompanhado.

Sarah e Bernardo farão 3 anos neste sábado. Já escrevi aqui sobre eles, quando as mortes ainda não estavam confirmadas; a última vez foi no primeiro aniversário delas. Não iria escrever nada desta vez, senti que seria apenas para parecer que não passou em branco. Mas nunca passa, nunca.

Ainda bem que nunca passa em branco o que é para sempre

Falando em nunca, nunca fui fã de Black Sabbath, nem de Ozzy Osbourne. Acho que Bernardo também não. Mas Sarah desconfio que gostasse, ao menos de algumas músicas, provavelmente as mais pesadas. Sei lá o que me deu nesses dias para resolver escutar direito os discos da banda, gostando bem mais do que imaginava. Deve ser coisa da Sarah, pois uma das músicas me fez lembrar muito do casal: Changes, aquela.

A música é triste, inspirada no divórcio pelo qual passava o baterista Bill Ward. Tony Iommi, o gênio guitarrista, compôs a melodia no piano. Geezer Butler, o baixista, escreveu a letra e Ozzy a imortalizou com sua voz inigualável. Ozzy, aliás, viria a regravá-la no futuro. Uma delas em dueto com sua filha, mudando partes da letra para retratar a saída de casa dela, encarando o mundo, mudança que não é tanto feita de lágrimas (tears), mas de temores (fears).

Voltando ao nunca, nunca dei muita atenção a esta canção, achava meio tediosa. Até escutar a gravação de Charles Bradley, preenchendo de alma e cantando com o coração na boca. Ficou tão impressionante que o letrista, Geezer Butler, a considera a melhor cover já feita de músicas da banda. E olha que não foram poucas as covers feitas por aí.

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Curioso que Bradley não conhecia o Sabbath, nem mesmo Ozzy, mas a música o comovia por lembrá-lo da mãe, com quem passou boa parte da vida sem ter uma boa relação. Ela o deixou com a avó quando tinha 1 ano de idade, apenas levando Charles para morar consigo aos 8. Mas foi um inferno na vida do garoto, que fugiu de casa aos 14. Só foram se reconciliar quando ele chegou aos 50; até o fim da vida dela, a relação foi intensamente vivida, recompensando os anos perdidos.

Quando a mãe estava nos últimos momentos de vida, Charles implorou para que não se fosse, ouvindo em resposta que ela iria construir um lugar para ele no Céu. É isso que o filho escutou nestes versos de Changes: “Demorou um tempo para perceber / Que ainda consigo ouvir seus últimos adeus / Mas agora todos os meus dias viraram lágrimas / Queria poder voltar, mamãe, e mudar esses anos”.

Ao cantá-la, Bradley costuma contar esta história e, nos versos citados, faz as lágrimas se tornarem um reencontro. Reencontro que não é um retorno, nem muda o passado, mas o transfigura naquele lugar no Céu. Passei esses dias vivendo nesta canção. Ainda bem que nunca passa em branco o que é para sempre. Obrigado, Sarah, vai ajeitando um lugarzinho no Céu pra mim também. Mas sem pressa, sem pressa!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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