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Francisco Escorsim

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Cinema

David Lynch e o cortador de grama

Uma História Real, de David Lynch
Richard Farnsworth no papel de Alvin Straight em "Uma História Real", de David Lynch. (Foto: Divulgação)

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Bem que o ano podia voltar a começar só depois do carnaval. Precisamos urgentemente de tédio, muito tédio. De ver os jornais se virarem pra fazer matéria, achando que uma história sobre um vira-lata de porta de loja ou o maior pastel do bairro podem ser interessantes porque não há alternativas. Coisas assim.

Até estava escrevendo uma crônica sobre o Pix, vídeo do Nikolas Ferreira, vigilância estatal, falência da imprensa, coisas assim, mas chegou a notícia da morte de David Lynch, aos 78 anos, um dos grandes mestres do cinema, mais conhecido por suas narrativas complexas e surreais, como Twin Peaks. É preciso saber dimensionar a importância dos fatos e o falecimento de Lynch importa muito mais do que 600 trilhões de dinheiros ou visualizações de vídeo de rede social.

Para mim, Lynch será mais lembrado por The Straight Story (Uma História Real), que destoa de suas demais obras por ser um filme simples, de narrativa direta, comovente sem ser piegas, com uma trilha sonora primorosa. É mais do que baseado em uma história real, até a reproduz em grande medida, contando a jornada de Alvin Straight, um idoso de 73 anos que decidiu atravessar dois estados dos EUA em um cortador de grama para se reconciliar com seu irmão, que estava doente e com quem não falava há anos.

Em um mundo onde gritos e xingamentos parecem ser a norma, quantos estaríamos dispostos a embarcar em uma jornada lenta, difícil e silenciosa para reatar laços sem querer cobrar a conta do passado?

Isso ocorreu em 1994, com a viagem durando seis semanas. Alvin atravessou 390 quilômetros, indo de Laurens (no Iowa) até Mount Zion (no Wisconsin). Lynch capturou essa história com uma sensibilidade que poucos esperariam dele. O filme, lançado em 1999, é um testemunho da capacidade humana de perdoar e buscar a reconciliação, mesmo quando isso parece impossível e as diferenças, intransponíveis. E hoje, em um mundo onde o diálogo é frequentemente substituído por monólogos ensurdecedores, é um bálsamo.

Alvin não se preocupou com as razões que o afastaram de Lyle, seu irmão, quem tinha razão ou não; sua única preocupação foi com a reconciliação ao saber da doença dele. A forma como Lynch escolheu para terminar o filme é primorosa, com os irmãos se reencontrando sem precisar de mais nada. Tudo estava dito na atitude de Alvin, que não precisava da resposta de Lyle, tampouco este que Alvin dissesse algo.

E entre a decisão de ir e a atitude ao chegar, uma bela jornada. David Lynch, ao filmar cronologicamente a viagem tal como aconteceu, insistindo em usar um cortador de grama autêntico, nos presenteou com uma autenticidade rara, conseguindo reproduzir o suficiente do ritmo lento a 8 km/h, fazendo com que o espectador não apenas acompanhe Alvin, mas não tenha pressa, saboreando as conversas com outros viajantes nos acampamentos noturnos, contemplando as paisagens que vão mudando, sendo absorvido no olhar de Alvin, de uma profundidade acolhedora, compadecida.

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Em um mundo onde gritos e xingamentos parecem ser a norma, quantos estaríamos dispostos a embarcar em uma jornada lenta, difícil e silenciosa para reatar laços sem querer cobrar a conta do passado? Precisamos de antídotos para a toxicidade política atual, de remédios para nossa crônica ideologização da vida, de vacinas que nos imunizam contra a esterilização espiritual. The Straight Story pode ser tudo isso, depende de o espectador querer, como Alvin um dia quis se reconciliar com seu irmão.

É como Lynch escreveu no livro Catching the Big Fish: “Eu gosto do ditado: ‘O mundo é como você é’. E eu acho que os filmes são como você é. É por isso que, embora os quadros de um filme sejam sempre os mesmos – o mesmo número, na mesma sequência, com os mesmos sons –, cada exibição é diferente. A diferença é às vezes sutil, mas está lá. Depende do público. Há um círculo que vai do público para o filme e volta. Cada pessoa está olhando, pensando, sentindo e formando sua própria percepção das coisas”. Que possamos perceber como Alvin e encontrar o caminho de volta para aqueles que amamos, independentemente das distâncias que nos separam.

O legado de David Lynch é imenso, multifacetado e desafiador para nossas percepções. Sua morte deixa um vazio no universo do cinema, mas suas obras permanecerão, de valor atemporal. Mais ainda, sou grato por ter sido – e continuar a ser – um cortador de grama. Deus o tenha, David, obrigado por tanto.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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