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“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”
| Foto: Daniel Kirsch/Pixabay

Copa de 2014. Que jogo era, não lembro ao certo, talvez contra o Chile. Estava na casa de pais de amigos, tradicional local onde assistimos a algumas Copas, especialmente a do penta. Estava no pré-jogo ainda, o dono da casa veio e sentou ao meu lado, enchendo meu copo de cerveja.

Conversávamos sobre a seleção, claro, o futebol em geral, do meu Athletico e do Paraná dele. Contei como foi assistir a Irã x Nigéria aqui em Curitiba. O melhor zero a zero que já vi na vida. Não pelo jogo, mas pelo meu pai.

Eu não iria, pois o ingresso era caro demais para o meu bolso. Fui no lugar dele, porém, que havia falecido meses antes e havia comprado ingressos para ele, minha mãe e meu primogênito. Era triste estar no lugar dele, mas, ao mesmo tempo, sentia-me grato. Era como se tivesse me deixado um presente, como se ainda estivesse perto. E estava.

Num jogo de futebol cabem todos os gêneros literários e não há drama que nele não seja encenado, sem esquecer daquelas partidas que se tornam uma experiência religiosa

Contei que só fui por isso, ao que o pai dos meus amigos me surpreendeu: “Gostava muito do teu pai”. Eu não esperava, meus olhos se banharam de lágrimas, só consegui murmurar um: “Eu também...” e agradeci ao tio, como chamamos quem gostaríamos que fosse da família, com o olhar. Não lembro que jogo era, mesmo, nem o placar, o quanto sofri e sorri, mas, do tio falando isso, jamais me esqueci nem esquecerei: ele gostava muito do meu pai. E eu do tio.

Contra a Coreia, segunda passada, lá estava eu na casa dele de novo, com os amigos de sempre, de décadas. Menos ele. O tio faleceu na virada do 21 para o 22. Desconfio que o coração não aguentou tanto sofrimento com seu Paraná Clube. Fez sentido, faz sentido... Como também fez sua presença em meio à aparente ausência. Escutando com o coração, dava para ouvir seu riso aberto, num sorriso nunca fechado, numa alegria no olhar como se dissesse: “gosto muito de você”. Ao que meu pai respondeu: “E eu de você”.

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”, disse Nelson Rodrigues, cuja leitura de suas imortais crônicas futebolísticas faz parte da minha liturgia da Copa, além de assistir ao menos um jogo na casa do tio. Esta semana reli uma em que escreveu: “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão”.

Repare bem na ordem das palavras: drama, tragédia, horror e... compaixão. Se você já leu Nelson, qualquer coisa, das crônicas às peças teatrais, percebeu como tudo o que vem antes da compaixão só existe por causa dela? Se não, releia e perceba.

Esta crônica era sobre uma vitória do Santos, que assim completou: “E o lindo, o sublime na vitória do Santos é que, atrás dela, há o homem brasileiro com seu peito largo, lustroso, homérico”. Da tragédia ao sublime e vice-versa, às vezes em questão de minutos. Num jogo de futebol cabem todos os gêneros literários e não há drama que nele não seja encenado, sem esquecer daquelas partidas que se tornam uma experiência religiosa, sacramentando casamentos com o esporte, batizando desavisados.

E o mais lindo, o sublime é quando atrás há o torcedor brasileiro com seu peito largo, lustroso, homérico, guardando um coração de tio.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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