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O comediante Dave Chappelle, em foto de 2018.
O comediante Dave Chappelle, em foto de 2018.| Foto: John Bauld/Creative Commons Attribution 2.0 Generic license

Todos temos o desejo de conhecer. Temos? É o que afirmou Aristóteles, pelo menos, completando que esse desejo seria despertado pelo espanto diante de algo. Espanto mais no sentido do que encanta, maravilha, que daquilo que assusta. Mas conhecer para além da curiosidade exige mais. Exige uma inquietude, uma perturbação que não deixa sossegar enquanto não se conhece o que perturba, seja para descobrir do que se trata, seja para compreendê-lo.

Não sou filósofo, nem humorista, salvo naquilo que todo mundo tem um pouco, não só de médico e de louco. Deveria acrescentar também ser poeta, porque achei que deu rima involuntária na frase anterior, mas dirão que ouvi estrelas. As da Tetê Espíndola, claro, cuja música voltou à moda, pelo que soube. Certamente um caso do acaso bem marcado em cartas de tarô. Mas divago, perdoe. Ou deveria dizer “faço humor”? Enfim, ainda bem que é pouco.

Caiu a ficha da tentação de considerar humoristas como sendo mais do que humoristas: porque estão se tornando os únicos, por dever de ofício, a não se deixarem dominar pela autocensura. Ainda

Meses atrás, assistindo à entrevista de Dave Chappelle ao outro David, o Letterman, no programa que este mantém na Netflix, uma fala do entrevistador me deixou intrigado. Achei que não seria nada de mais, mas volta e meia algo me faz lembrar daquela cena, deixando-me novamente pensativo. O último especial de Chappelle, The Dreamer, recentemente lançado, foi uma dessas vezes, repetido logo em seguida ao assistir Armageddon, também recém-lançado stand up de Ricky Gervais, ambos pela Netflix. Agora, o incômodo se tornou indistraível. É quando sei que não tenho mais escolha, a não ser tentar entender o que me perturba. Eis o filósofo que habita em mim, mais atormentado que maravilhado.

A fala de Letterman veio antes de uma pergunta, referindo-se à morte de George Floyd, que desencadeou protestos no mundo todo e o surgimento do movimento Black Lives Matter. O apresentador contava que, diante do que acontecia, de quem ele gostaria realmente de saber o que teria a dizer a respeito era Chappelle, comparando-o a Bob Dylan nos anos 1960, como o porta-voz daqueles que protestavam contra a Guerra do Vietnã. Fiquei atônito ou, como diria o Didi: “Cuma?”

Não que Dylan e Chappelle não possam ser porta-vozes do que quer que seja. Mas uma coisa é assim considerá-los, outra, bem diferente, é tratá-los como muito mais do que isso, como autoridades intelectuais para além da arte que fazem. Como o apresentador não é um tolo, está longe de ser como aqueles cujo desejo de conhecer se satisfaz com feed de rede social ou os três primeiros resultados da página de busca do Google, fiquei a pensar se eu não ando a fazer o mesmo, tomando humorista como se fosse filósofo.

Ainda que seja indispensável um pouco do filósofo a todo humorista de verdade (por sua vez, todo filósofo deveria se permitir um pouco de humor, não é, Chesterton?), não deveríamos bagunçar os galhos. Cada macaco no seu. E ao escrever isso, “cada macaco no seu galho”, acho que entendi o que anda me perturbando. Porque imediatamente pensei: “será que posso escrever isso hoje em dia?” Se não pode mais cantar “atirei o pau no gato”… Não seria fascismo, reumatismo, algum desses “ismos” todos? Aí caiu a ficha da tentação de considerar humoristas como sendo mais do que humoristas: porque estão se tornando os únicos, por dever de ofício, a não se deixarem dominar pela autocensura. Ainda.

Ao menos os humoristas de verdade, como Gervais, que, não por acaso, creio eu, começa seu especial falando sobre o pensamento, o quanto funcionaria de forma involuntária. Entretanto, soou estranho, parecendo mais uma justificativa pelas piadas que seriam feitas do que uma piada em si. Retornou a isso em outros momentos do show e, em todos, pareceu-me desconectado do restante. No fim, uma decepção: terminou confirmando minha suspeita, justificando-se pelas piadas, explicando o que e para que serviria um show de stand up, o quanto ele estaria mais para um ator no palco do que sendo ele mesmo. Ora, quando você precisa explicar uma piada é porque ela claramente não funcionou.

Curioso (e talvez sintomático da capitulação) que Gervais tenha vencido o Globo de Ouro, semana passada, por este especial. A mesma premiação em que foi host por anos, fazendo em sua última apresentação um antológico monólogo exorcizando a hipocrisia das celebridades, com uma coragem quase suicida, pelos tempos que vivemos. Não deixa de ser frustrante, portanto, vê-lo se explicar em um especial somente seu, como se seu público precisasse disso. Não só não precisa, como boa parte dos que o assistem estão ali justamente pela liberdade de rir com o que já não se permitem pensar.

Pode ser que os humoristas estejam se tornando os novos filósofos mesmo. O risco é perderem a graça, o único limite real do humor

Mas talvez também tenha outra coisa se revelando aqui, que tem a ver com o lugar em que de certa forma os humoristas vêm sendo colocados, não mais como os bobos da corte com permissão para dizer verdades, mas como os sábios a nos educar, como filósofos, no fim das contas. Gervais pode estar assumindo esse papel, como Chappelle parece já ter assumido. Embora tenha respondido a Letterman não querer esse papel, em seu especial parece muito à vontade nele quando, depois de ótimas piadas com Will Smith e Chris Rock sobre o ocorrido na cerimônia do Oscar, suspendeu o humor para bancar Sêneca, filosofando ao  dizer entender tanto Smith quanto Rock, explicando o porquê. Colocou-se, no fim das contas, acima de ambos e da plateia, ensinando como todos deveríamos ser.

Lições de moral não são inusuais em shows de stand up, eu sei, e pode ser apenas ranhetice minha diante da expectativa frustrada com os shows dos dois maiores humoristas da atualidade, que entregaram especiais irregulares, para não dizer preguiçosos. Mas pode ser que seja algo mais, pode ser que os humoristas estejam se tornando os novos filósofos mesmo. O risco é perderem a graça, o único limite real do humor. Só espero que a moda não pegue. Vai que começam a aparecer especiais de Noam Chomsky na Netflix?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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