O tratorzinho amarelo ia pra lá e pra cá, com Gabriel sonorizando o acelerar, a ré, o levantar da lâmina e os tropicões que o brinquedo fazia quando passava de uma telha a outra. Às vezes, o vento trazia uma ondinha d’água e ele lembrava da praia. Parava de brincar e mirava o horizonte aguado, com a vida desaparecida, salvo topos de árvores e postes de luz afogados. Seu olhar nublou.
“Tchê, tem de aplainar esse canto de cá, Gabito”, disse Álvaro, que não desviava a atenção do bisneto. Gabriel se assustou, o biso não costumava falar com ele, apenas sorrir. E sorrindo lhe respondeu com o olhar, voltando ao trabalho. Brrrrrr, pi, pi, pi, pract…
Ao longe, o barulhar de uma lanchinha foi aumentando e a família se animando. O pai vinha nela, acenando, trazendo o resgate. Todos instalados, Gabriel ganhou um achocolatado, que bebeu de um gole só, agarrado no trator. Quando iam longe, o menino se voltou, procurando pelo telhado da casa, mas já não sabia reconhecê-lo.
Ao longe, o barulhar de uma lanchinha foi aumentando e a família se animando. O pai vinha nela, acenando, trazendo o resgate
Naquela noite, alguém arranjou uma tevê das antigas. Álvaro tinha por costume assistir ao Jornal Nacional. Se achegou, surpreendendo-se que, nos poucos minutos dedicados ao acontecido, no início, nem de longe deram a dimensão do que se passava. Esperou por mais, que não veio. A âncora terminou sorrindo, falando sobre um show que teria no Rio de Janeiro naquela noite.
Ninguém desligou o televisor, ninguém comentou nada. Não fosse o barulhar dos anúncios publicitários, o silêncio desalentado se faria ouvir como o zumbido escutado em Hiroshima segundos antes do fim. “Filhos da p*!”, alguém disse, por todos, sendo a faísca de um incêndio de raiva angustiada. Álvaro se afastou, levando Gabriel consigo: “Vamos ver se a chuva parou?”
As horas se confundiam na mesmice da espera, só se sabia quando passava da manhã para a tarde quando terminava o programa de Lasier Martins na Guaíba, que Álvaro gostava de escutar sentado na cadeira de praia no gramado. Quando a tarde chumbada ia escurecendo, só voltava pro ginásio quando Luiz Antônio regressava. O neto saía para ajudar nos resgates todos os dias. Admirava-o, sabia que enfrentaria como antes havia encarado a morte dos pais. Mas não se permitia lembrar da filha, do acidente de carro, já havia água demais por tudo.
No dia seguinte a mais uma noite não dormida, Alice estava sentada no colchão, olhando para o nada, desolada. “Você tá bem, filha?”, perguntou o avô do seu marido. “Tô levando, seu Álvaro… Queria saber que bem a gente vai conseguir tirar disso tudo…”. Álvaro entendeu seu esforço, deu uma bicada no mate, olhou-a com ternura e respondeu: “Não sei, filha, mas tudo passa, até o mal. Isso talvez seja o bem que baste”.
Gente chegava, gente saía; comida às vezes era até farta, mas água de beber quase sempre faltava. Álvaro tomava o mate quase de olhos fechados, deixando aquela réstia de sol bater no seu rosto. Gabriel não saía de seu lado, brincando com o tratorzinho o tempo todo. De vez em quando parava e ficava com o olhar pausado. “Terminou o serviço, Gabito?”. “Não… Quando a gente volta pra casa?”. Álvaro sabia que a pergunta viria, mas não havia conseguido preparar alguma resposta que prestasse. Quando notou que o bisneto percebia sua angústia, foi a vez de Gabito lhe dar um olhar de abraço.
Comida às vezes era até farta, mas água de beber quase sempre faltava
Um dia, sabe-se lá que dia, Luiz Antônio chegou mais cedo, sorrindo, feliz mesmo. “Passei pela casa, vô, a água tá baixando, dá pra ver que o que vai dentro já era, mas as paredes parecem firmes. Tem jeito, tem jeito!” Álvaro sorriu, sem conseguir dizer nada. Levantou-se e abraçou o neto, que tampouco conseguia dizer mais, sentindo a camiseta ficar molhada nas costas.
Na manhã seguinte, de previsão de mais chuva, mas que ainda não caía, Gabito vinha do ginásio aos saltos, encantado com uma borboleta amarela que perseguia aos sorrisos. Álvaro notou que esquecera o tratorzinho e o coração se alargou. “Bah, e o trabalho, Gabito?”. “Não se voa com trator, biso!”
Sentiu alguém ao lado, era Alice, que lhe disse: “É esse o bem que a gente tira, seu Álvaro…”. Ambos se fizeram o sinal da cruz, com ela descansando a cabeça em seu ombro. Assim ficaram, contemplando o menino a borboletear em torno daquele ponto amarelo a desfazer as cinzas do céu.
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