• Carregando...
Cena do episódio “Bastogne”, da série “Band of Brothers”.
Cena do episódio “Bastogne”, da série “Band of Brothers”.| Foto: Divulgação

Como era esperado, as arbitrariedades judiciais não pararam com o fim das eleições, tampouco com a saída de Jair Bolsonaro da Presidência, pelo contrário.

Nesta semana, foram censurados dois colegas aqui da Gazeta do Povo, Guilherme Fiuza e Rodrigo Constantino, que tiveram suas redes sociais derrubadas, sendo que no caso de Constantino a situação é ainda mais grave com a determinação de bloqueio de suas contas bancárias e cancelamento de seu passaporte.

E por causa de quê? Ninguém sabe ao certo, nem por que e por quem foi determinado. Teria sido pelo STF? TSE? Nem advogados têm tido acesso aos autos, mal sabem quantos processos existem para investigar sabe-se lá o quê.

O silêncio de boa parte da grande imprensa e a conivência de autoridades de outros poderes diante dos abusos do STF torna a situação pior, até distópica

Algo autoritário assim não precisaria de mais do que sua notícia para ser rechaçado por qualquer defensor do tal Estado Democrático de Direito.

Entretanto, o silêncio de boa parte da grande imprensa e a conivência de autoridades de outros poderes torna a situação pior, até distópica, criando um teatro de normalidade que está a alimentar justamente a realidade que acreditam combater: uma revolta contra as instituições.

Mas a situação ainda piorará muito, pois o novo governo já está aproveitando dos estilhaços que sobraram da Janela de Overton para pavimentar um possível totalitarismo, a começar pelo poder dado à chamada Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia de “representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”.

Se o leitor não percebeu de imediato a gravidade do que se está consolidando no país, sugiro que leia os links espalhados pelo texto e assista ao vídeo, antes que também seja censurado, de outro colega colunista aqui do jornal, Paulo Polzonoff, de quem empresto as palavras e de cuja indignação comungo.

Rachel de Queiroz, considerada por Carlos Heitor Cony como a rainha da literatura brasileira, mas que, quando perguntada sobre suas atividades no mundo das letras, respondia que “antes de mais nada, sou uma jornalista”, costumava dizer que o jornalismo tinha de ser como uma trincheira, onde soldados costumam se abrigar para poder resistir ao assalto do exército inimigo.

Um dos melhores retratos da função de uma trincheira está na série Band Of Brothers, baseada em fatos reais vividos por soldados na Segunda Guerra Mundial. Em um dos episódios se conta a história da batalha de Bastogne, quando não tinham condição de avançar por estarem em número inferior, sem armamento e suprimentos suficientes, inclusive para suportar a neve inclemente do inverno. Tudo que podiam fazer era resistir a partir de suas trincheiras. Muitos morreram, poucos sobreviveram e não sem traumas, mas a resistência ali foi fundamental para a vitória depois.

A trincheira ainda existe, sem dúvida, mas com cada vez menos jornalistas dentro dela, seja porque foram censurados, seja porque covardemente desertaram

Rachel deu inúmeros exemplos de jornalismo como trincheira e, em uma de suas crônicas, explicitou onde fica esta trincheira. Foi quando da criação da Ordem dos Jornalistas. A escritora publicou na revista O Cruzeiro, em maio de 1955, um texto intitulado “A Ordem dos Jornalistas”, em que escreveu:

“Nós de jornal somos, como se diz em minha terra, uma ‘nação de gente’ que não pode sobreviver se amordaçada, cujo clima único, cujo pão de cada dia é a liberdade da palavra e do pensamento. É por isso que ela nos é completamente indispensável e devemos vigiar permanentemente esta liberdade; torná-la inatacável, defendê-la de todos os abusos, quer esses abusos partam dos nossos adversários naturais, quer – o que ainda é mais delicado – esses abusos partam de nós próprios. A nós cabe delimitar nossas fronteiras, a nós criar nossos sinais de tráfego, se não queremos que alguém mais poderoso o faça.”

Hoje, alguém mais poderoso tomou posse do pão de cada dia, racionando o consumo ao seu bel-prazer juristocrata. A trincheira ainda existe, sem dúvida, mas com cada vez menos jornalistas dentro dela, seja porque foram censurados, seja porque covardemente desertaram.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]