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Parque Estadual de Vila Velha.| Foto: Henry Milléo/Arquivo/Gazeta do Povoas Gazeta do Povo

Escrevi na estrada. Por escrever, não me refiro ao digitar palavras e frases, o que faço agora do quarto do hotel, com a atenção dividida com a vista da janela alcançando boa parte da cidade de Ponta Grossa e se perdendo planalto adentro. Quem escreve sabe bem que essa parte braçal é apenas a conclusão de um trabalho que começou muito antes. Antes das mãos quem escreve é o olhar, é o que prende a atenção, desarma a distração e faz, da alma, contemplação.

Comecei a escrever admirando o entorno da estrada que leva de Curitiba a Ponta Grossa, que, para mim, é das mais belas paisagens, especialmente depois de São Luiz do Purunã até a região de Vila Velha. Antigamente, quando as rochas apareciam no horizonte, sua vista era mais impressionante, mas hoje as árvores cresceram no entorno que antes era um campo aberto, escondendo parte da imponência dos arenitos milenares. Faz alguns anos que não os visito. Gosto da história da sua formação, que remonta a 300 milhões de anos atrás, quando tudo por aqui (ali) era mar.

Naquela época, a área fazia parte de um supercontinente chamado de Gondwana, que cobria a maior parte do Hemisfério Sul, incluindo a Antártida, América do Sul, África, Madagascar, Seychelles, Índia, Oceania, Nova Guiné, Nova Zelândia e Nova Caledônia. Na separação dos continentes, decorrente da colisão das placas tectônicas, o terreno de Vila Velha se levantou. Seguiu-se a era do gelo, com tudo se congelando. Depois de alguns milhões de anos, ao derreter o gelo, a água arrastou e juntou os pedaços de rochas e depósitos de areia deixados pelo extinto oceano, resultando nos famosos arenitos que vemos hoje, que contemplo agora.

Apesar de On the road parecer ser uma história de jovens tentando viver uma vida livre e repleta de prazeres, havia também por baixo e por cima da viagem uma inquietação de ordem espiritual, uma busca por algo que não se sabia bem o que seria

Como a estrada anda complicada, com constantes acidentes que demoram a ser resolvidos, a viagem que antigamente não demorava quase nada agora não raro se arrasta pelo dobro do tempo, muitas vezes deixando o viajante preso no asfalto, parado. Aconteceu comigo, atrasando a chegada em não sei quanto tempo. A conversa no carro estava boa, nem senti passar. Mas fiquei a pensar como sofreria o jovem de hoje em dia, já que onde paramos não havia sinal de internet. Deduzo que achariam ter esperado o equivalente ao intervalo havido entre as placas tectônicas colidirem e a água desaparecer.

De pensar em jovem me veio a lembrança de On The Road, o famoso livro estradeiro de Jack Kerouac, que serve também como manifesto da então jovem geração dos anos 1950, chamada de beat pelo próprio autor. Lembro pouco do livro, lido muitos anos atrás, recordo vagamente que, apesar de parecer ser uma história de jovens tentando viver uma vida livre e repleta de prazeres, havia também por baixo e por cima da viagem uma inquietação de ordem espiritual, uma busca por algo que não se sabia bem o que seria.

Parei a escrita (a de digitar) e fui conferir nas minhas anotações de anos e anos de leitura se havia deixado alguma do livro, crente de que não, pois havia lido antes de começar essa espécie de diário de leitura, que já vem de décadas. Mas havia uma, para minha surpresa: “Curtiríamos o mundo inteiro num carro como esse, você e eu, Sal, porque, na verdade, a estrada finalmente deve conduzir a todos os cantos do mundo. Não pode levar a outro lugar, certo?”

Certamente anotei pela pergunta final, que devo ter sublinhado ou dobrado a orelha da página em que se encontra. Só isso explicaria que, anos depois, ao escrever no diário, recuperasse esse trecho. Lembro que revisitei livros lidos para ver o que tinha destacado neles. Era uma época em que eu procurava por um rumo para minha vida, uma época em que as estradas estavam abertas, mas todos os cantos do mundo não me pareciam ser um destino. Eu esperava, já meio desesperado, que a vida pudesse me levar a outro lugar. Haveria? Pois houve.

Sempre que lembro dessa obra de Kerouac, associo com o livro Ghost Rider: A Estrada da Cura, de Neil Peart, falecido poucos anos atrás e mais conhecido por ser o baterista da famosa banda Rush. Nele, Neil escreveu uma espécie de diário de uma viagem de moto em que partiu meio sem rumo, procurando por uma cura interior para uma tragédia pessoal sofrida, tendo perdido uma filha em um acidente de carro e a esposa um ano depois para um câncer. Achei um trecho: “Eu apenas permanecia em movimento, com medo de parar por tempo demais, com medo de me dar tempo para pensar”.

Estou a matutar na relação entre estar parado na estrada; a juventude agoniada de Kerouac procurando, na verdade, por uma salvação; a maturidade de Neil tentando curar a secura do luto para não se tornar um arenito em vida. Lembrei que o título do livro é também de uma música da banda, cuja letra é de Peart. Relembrei que gosto muito de uma das estrofes, que possui esse trecho: “Apenas (...) / Um eremita errante / Correndo em direção à luz”. Eis que o engarrafamento se desfez, os arenitos já estão no retrovisor, uma tempestade se aproxima pela esquerda e o sol começa a se pôr no horizonte sobre o destino que me aguarda.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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