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O compositor Cartola em foto de 1966.
O compositor Cartola em foto de 1966.| Foto: Domínio público/Arquivo Nacional

Se até o Cartola, fundador da Mangueira... Está certo que disse isso no fim da vida, mas desde anos antes, quando chegava o carnaval, se mandava do morro da Mangueira para sua casa em Jacarepaguá. Gosto de escutar Cartola, descansa-me em esperança. E nessa época é perfeito para fazer entrar aos poucos no ritmo da Quaresma. Porque Vinícius de Moraes tem razão, o bom samba é uma forma de oração.

E os sambas de Cartola são oração, alguns explicitamente, como Enquanto Deus Consentir, em que canta: “Agradeça sempre a Deus / O que tiveres em sua mesa / Amparai os inocentes / Se for cego dê-lhe a luz / Sem contar com a recompensa / Do Grande Mestre Jesus”. E o samba que se lhe segue no quarto e último disco em vida, Dê-me Graças, Senhora: “Eu sou a mãe de Deus, Virgem Maria / Dê-me graças Senhora / Um sorriso a quem chora / Onde há ódio eu vos peço / Que ponha amor e assim / Eu serei mais feliz que sou”.

Quando tinha 15 anos, Cartola abandonou os estudos para trabalhar de pedreiro e cair na vida boêmia. Foi enquanto trabalhava que ganhou o apelido de Cartola, pois para que o cimento não caísse nos cabelos usava um chapéu-coco, que os colegas diziam parecer mais uma cartolinha, daí já viu. Depois de a mãe morrer, aos seus 17 anos, foi expulso de casa pelo pai que odiava sua vida boêmia. Foi aí que caiu de vez na vida, vadiando, bebendo, frequentando casas de prostituição e dormindo em trens de subúrbio. Contraiu várias doenças venéreas e acabou quase morrendo numa cama de um pequeno barraco onde morava só. Uma vizinha se compadeceu e passou a cuidar dele. Embora fosse casada, acabaram se envolvendo e Deolinda abandonou o marido para viver com sua filha e Cartola, que criou a menina como se fosse sua.

Vinícius de Moraes tem razão, o bom samba é uma forma de oração. E os sambas de Cartola são oração

Anos depois, uma afilhada de Deolinda que perdera a mãe foi morar com eles, tendo Cartola a criado como filha também. Quando Creusa chegou aos seus 16, 17 anos, Cartola, vendo o caminho de festeira que a menina tomava, temeu por seu futuro, que foi quase o dele. Compôs, então, um samba em forma de conselho que é também uma oração. Em O Mundo é um Moinho, Cartola falou a Creusa como quem cantava ao espelho: “Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora de partida / Sem saber mesmo o rumo que irás tomar / Preste atenção, querida / Embora eu saiba que estás resolvida / Em cada esquina cai um pouco a tua vida / Em pouco tempo não serás mais o que és / Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho / Vai reduzir as ilusões a pó / Preste atenção, querida / De cada amor tu herdarás só o cinismo / Quando notares estás à beira do abismo / Abismo que cavaste com os teus pés”.

Tinha 35 anos quando a compôs, em 1943, mas viria a público apenas na década de 1970, quando a gravou, tornando-se de imediato uma das obras-primas da música brasileira. Anos depois de escrever a canção, o abismo abriu-se aos seus pés. Deolinda morreu de infarto em 1948 e Cartola desapareceu em seguida. Ninguém sabia para onde havia ido e muitos o davam por morto. Quase acertaram. Cartola vivia numa favela no bairro do Caju, bebendo como nunca, perdendo os dentes e vendo a rosácea do seu nariz evoluir mais. Envolveu-se com uma mulata chamada Donária por algum tempo, mas logo ficou sozinho. Foi resgatado por Zica, em 1952, cunhada de Carlos Cachaça, seu grande parceiro, que lá o descobriu e o trouxe novamente para o morro da Mangueira.

Assim como Deolinda lhe estruturara a vida antes, agora Zica faria o mesmo por ele, devolvendo-lhe a si mesmo e também à carreira. No mesmo ano compôs Sim, uma tentativa de oração, com o trigo da fé misturado ao joio do orgulho: “Sim / Deve haver o perdão / Para mim / Senão nem sei qual será / O meu fim / (...) / Todos erram neste mundo / Não há exceção / Quando voltam à realidade / Conseguem perdão”. A partir dali viveria a melhor época de sua carreira, consagrando-se na década de 1970, quando enfim gravou discos, entre 1974 e 1979. Dentre os sambas gravados, O sol nascerá (a sorrir): “A sorrir / Eu pretendo levar / A vida / Pois chorando / Eu vi a mocidade / Perdida.”

Um dia, em 1973, Cartola deu rosas a Zica, que as plantou no jardim da casa. Dias depois, ao abrir a porta pela manhã, percebeu que haviam se multiplicado e ficou deslumbrada com a quantidade, chamando o marido e lhe perguntou: “Venha ver o jardim! Por que é que nasceu tanta rosa?”, ao que Cartola respondeu: “Não sei, Zica. As rosas não falam!” Foi o que bastou de inspiração para compor seu samba mais famoso, As Rosas Não Falam: “Bate outra vez / Com esperanças o meu coração / Pois já vai terminado o verão / Enfim / Volto ao jardim / Com a certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres voltar / Para mim / Queixo-me às rosas / Que bobagem / As rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti, ai”.

Parece triste? E é, mas uma tristeza ressignificada em esperança, pois Vinícius de Moraes tem mesmo muita razão: “Porque o samba é a tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança / A tristeza tem sempre uma esperança / De um dia não ser mais triste não.” E triste Cartola não foi mais. O fim da vida se aproximava e as orações em forma de samba continuam, como em Grande Deus, presente em seu penúltimo disco, em que vemos que o joio do orgulho fora ceifado pela humildade da fé que se rende pedindo piedade: “Deus, Grande Deus / Meu destino bem sei / Foi traçado pelos dedos teus / Grande Deus / De joelhos aqui eu voltei para te implorar / Perdoai-me / Sei que errei um dia / Oh! Perdoai-me pelo nome de Maria / Que nunca mais direi o que não devia / Eu errei, grande Deus / Mas quem é que não erra / Quando vê seu castelo cair sobre a terra / Julguei Senhor, daquele sonho / Eu jamais despertaria / Se errei, perdoai-me / Pelo amor de Maria”.

E grato. Em Por você fiz o que pude (também chamada Todo tempo que eu viver), cantou mais uma vez sobre sua Mangueira, mas para passar a coroa para o jovem Nelson Sargento, a quem dedicou o samba, cantando: “Perdoa-me a comparação / Mas fiz uma transfusão / Eis que Jesus me premeia / Surge outro compositor / Jovem de grande valor / Com o mesmo sangue na veia”. Estranhou o “premeia”? Pois os críticos também, apontando o “erro” do compositor. Cartola ficou chateado, evitava tocá-la em seus shows, achando que os críticos tinham razão. Mas não tinham. Embora incomum à época (e mais ainda hoje em dia), a forma da escrita não estava errada. Cartola assim escreveu porque assim aprendera lendo nos sermões de Padre Antônio Vieira, em especial o trecho: “Assim castiga, ou premeia Deus”.

Cartola é a melhor companhia para o carnaval. Porque ele não te deixa nele ficar, mas ajuda a dizer “chega” e ainda lhe faz companhia na Quaresma até a Páscoa

E premeia mesmo, como se prova pelo belo O Inverno do meu tempo, primeira faixa do último disco lançado aos seus 70 anos de idade: “Surge a alvorada / Folhas a voar / E o inverno do meu tempo começa / A brotar, a minar / E os sonhos do passado / No passado estão presentes, / E o amor que não envelhece jamais / Eu tenho paz / E ela tem paz / Nossas vidas / Muito sofridas / Caminhos tortuosos / Entre flores e espinhos demais / Já não sinto saudade / Saudades de nada que vi / O inverno do tempo da vida / Oh! Deus / Eu me sinto feliz”.

Dias antes de Cartola morrer, em 30 de novembro de 1980, Carlos Drummond de Andrade havia escrito uma crônica em sua homenagem, intitulada Cartola, no moinho do mundo, assim a terminando: “Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. ‘O mundo é um moinho...’ O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se e ‘fui à vida’, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação”.

Amém. Nessa crônica, Drummond começou contando de onde veio sua inspiração para escrevê-la: “Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para fazer qualquer coisa que está escrita na sua agenda. Nem é preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e fica ouvindo”. Espero, leitor parceiro que estacou por aqui, que se ainda não ouviu, agora ouça. Cartola é a melhor companhia para o carnaval. Porque ele não te deixa nele ficar, mas ajuda a dizer “chega” e ainda lhe faz companhia na Quaresma até a Páscoa quando até as rosas, que não falam, cantarão a glória do Grande Deus.

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