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Carl de Souza/AFP
Carl de Souza/AFP | Foto:

Quem passou o fim de semana tentando se informar sobre os rumos da greve dos caminhoneiros pela grande imprensa, que nessas horas é de importância vital, ficou mais desorientado ainda. Porque o noticiário levava a crer que o problema maior seriam as obstruções nas estradas quando a realidade era outra: os caminhões continuavam parados à margem das rodovias desobstruídas ou não. Tanto era assim que no domingo à noite o governo capitulou, aceitando tudo o que os grevistas pediam e comprometendo o futuro próximo do país, afinal, cedeu em tudo sem cortar gasto algum, repassando todo o custo ao “tesouro nacional”, que nada mais é do que o nosso bolso. E nem assim a greve acabou. Vêm tempos piores por aí.

De tudo o que se tem falado, debatido, profetizado por aí, nada me parece mais relevante e urgente do que a crise profunda de representatividade que vivemos. As grandes manifestações populares que culminaram no impeachment de Dilma Rousseff já revelaram que a grande maioria da população não apenas não se sentia representada por seus representantes eleitos, como recusava a participação de partidos e políticos em seus atos cívicos. Nada mudou de lá para cá, pelo contrário, como se vê agora pelo apoio popular à paralisação dos caminhoneiros que revela que essa crise de representatividade é ainda mais grave e profunda, porque afeta até mesmo os supostos representantes mais próximos e diretos dos mais variados interesses de grupos e pessoas.

Isso ficou evidente na sexta-feira passada (25), quando mesmo depois de um acordo ter sido firmado entre o governo e nada menos do que 8 entidades ditas representantes dos motoristas, não apenas a paralisação não acabou como se intensificou. Na noite de quinta (24), o ministro Eliseu Padilha saiu da reunião em que fechara o acordo dizendo acreditar que até a segunda-feira seguinte tudo estaria normalizado. A crença se justificava, afinal, acordaram pelos caminhoneiros a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), Confederação Nacional do Transporte (CNT), Federação dos Caminhoneiros Autônomos de Cargas em Geral do Estado de São Paulo (Fetrabens), Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens do Distrito Federal (Sindicam-DF), Sindicato Nacional dos Cegonheiros (Sinaceg), Federação Interestadual dos Transportes Rodoviários Autônomos de Cargas e Bens da Região Nordeste (Fecone), Federação dos Transportadores Autônomos de Cargas do Estado de Minas Gerais (Fetramig) e Federação dos Transportadores Autônomos de Carga do Espírito Santo (Fetac-EC). Convenhamos, com tanta entidade representativa assim, como imaginar poderia haver tamanha distância entre elas e seus representados?

Pois havia, há. No dia seguinte, a paralisação aumentou e mesmo com a determinação do uso de forças de segurança para desobstruir as estradas os pontos de manifestação (não de bloqueio) aumentaram. No Paraná, por exemplo, segundo informaram a Polícia Rodoviária Federal e Estadual, havia cerca de 250 manifestações no sábado (26), sete a mais do que na sexta-feira (25). Porque, é óbvio, desobstruir estradas não significava obrigar os caminhoneiros a trabalharem. Eles simplesmente permaneceram onde estavam, nos acostamentos. Se alguma coisa estava clara àquela altura é que nenhuma daquelas entidades que aceitaram o acordo representavam de fato os caminhoneiros paralisados.

Uma única entidade recusou o acordo proposto pelo governo. O presidente da Associação Brasileira de Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, de 76 anos, abandonou a reunião quando percebeu que os demais representantes das entidades ligadas ao setor iriam aceitar a proposta. Dado que os caminhoneiros tampouco aceitaram o acordo, parecia que era ele o grande articulador e legítimo representante do interesses da categoria. Mas, será? Em nota à imprensa divulgada depois do acordo, a Abcam, por seu presidente, assim a terminou: “Agora, deixaremos a resposta para o Governo nas mãos dos caminhoneiros. Se eles acham que a proposta apresentada pelo Governo é justa, que voltem para suas casas. Mas se consideram que o Governo não atendeu às suas necessidades, que permaneçam firmes!”

Ora, tal qual as entidades que aceitaram o acordo, todas, sem exceção, não falavam pelos caminhoneiros, apenas ouviram e se comprometeram a “encaminhar a proposta” e “deixar nas mãos dos caminhoneiros”. Se é assim é porque não estão a representá-los de maneira alguma.

Tanto que mesmo depois de novo acordo ter sido firmado no domingo (27) e assinado por todas essas entidades, inclusive a Abcam, a segunda-feira amanheceu com a imensa maioria dos caminhoneiros mantendo a paralisação. O presidente da Abicam, aliás, chegou a pedir para os caminhoneiros “levantar acampamento e seguir a vida”. Não levantaram e seguiram parados. Ainda que a manifestação venha a ser encerrada nas próximas horas (escrevo esta coluna na segunda (28) à tarde), o simples fato dela não ter terminado imediatamente à publicação no Diário Oficial das medidas provisórias atendendo seus pedidos prova que a representatividade de todas essas entidades é nenhuma.

Em matéria publicada na sexta (25), repórteres do jornal Estado de São Paulo apuraram que a greve “é resultado de discussões sobre as condições de trabalho ruins em diferentes grupos do WhatsApp”. Segundo um dos motoristas ouvidos: “Não teve uma organização central. Fomos nos falando por WhatsApp e aconteceu.” Outro, que está parado em lugar distante do primeiro, disse: “Não tem nenhum sindicato envolvido nessas conversas, nós não temos representante.” E ainda um terceiro, também estacionado em lugar muito diverso dos demais, completou: “Os sindicatos embarcaram na nossa. Eles vieram procurar a gente. Começamos a greve e eles nos apoiaram depois.”

Ainda que se descubra que houve apoio e até participação de empresários do setor, é inegável que se isso aconteceu foi à reboque desse movimento espontâneo de caminhoneiros conectados por WhatsApp, não o contrário. E tampouco será terminada por ordem ou condução que não seja desses caminhoneiros sem organização central. “Nós não temos representante” é algo que se escutava também nas manifestações gigantescas de rua de anos atrás, sendo que grupos como o MBL e Vem Pra Rua surgiram em decorrência desse movimento popular espontâneo.

Não há mais como negar uma realidade escancarada: sobram instituições esvaziadas de legitimidade por não representarem ninguém de fato, havendo também uma recusa da própria representação em si e que, se encontra suas razões no contexto atual, têm suas raízes na própria formação do país. Antônio Paim, talvez o mais importante intelectual liberal vivo, em sua clássica História do Liberalismo Brasileiro, que teve sua segunda edição revista e ampliada publicada recentemente pela editora LVM, apontando a importância originária do Marquês de Pombal, afirma que ele “tendo nos despertado para a modernidade, legou-nos uma tarefa gigantesca: completá-la com a organização das instituições do sistema representativo. (…) até hoje andamos às voltas com o problema, poderoso indicador de que o substrato moral de nossa cultura seja infenso ao sistema representativo. A circunstância deve levar-nos a não nos contentarmos com o estudo do pensamento político, devendo conduzir mais longe essa investigação, com vistas à identificação de nossa moralidade social básica” (grifos meus).

Tal investigação Paim não fez nessa obra, entretanto, limitando-se a historiar a tradição liberal brasileira, o que já é muito e, nem preciso dizer, não é algo que se conte nas aulas de história  de ontem e de hoje, infelizmente. Não posso fazer aqui mais do que relembrar a indicação de Paim e sua convocação à uma investigação nesse sentido, mas a própria história contada no livro tem por eixo as dificuldades de se estabelecer tal sistema representativo, o que nos ajuda a ter melhor dimensão da realidade atual em que vivemos. Em toda nossa história, tivemos poucos intervalos de normalidade institucional, justamente pelas falhas de representatividade, sendo o maior deles durante o segundo reinado. A República já nasceu sem representatividade, fruto de um golpe militar que só foi supostamente legitimado mais de um século depois, no plebiscito de 1993, quando a distância no tempo e dos personagens originais fazia parecer que a república seria mais representativa do que outra coisa. Não por acaso o autoritarismo foi nossa constante maior durante a República e nos intervalos democráticos a instabilidade institucional sempre foi a regra, como agora.

A situação atual se torna mais compreensível quando considerada dessa encrenca representativa. À esquerda, o discurso petista de transferência de responsabilidade para o “sistema” ao qual o PT, coitadinho, teria sido cooptado e de que o impeachment foi um “golpe” contra a vontade do povo expressa nas eleições de 2014, tenta encontrar abrigo e eco nessa insatisfação popular contra o “estamento burocrático”, como chamava Raymundo Faoro ao conjunto formado pelos donos do poder, ou seja, nossos ditos representantes. Mas não tem funcionado, nem poderia, pois isso só faria algum sentido se antecedido ou acompanhado de um mínimo de arrependimento pelo que fizeram. Mas como seguem negando a realidade mais patente da pilhagem cometida noEstado brasileiro, o discurso é esquizofrênico e acaba acusando de golpistas a própria população que precisaria convencer a lhe apoiar e que em sua imensa maioria exigiu sua saída do poder. Como os demais discursos esquerdistas orbitam em torno deste ou são tímidos demais temendo desagradar a porção lulista do eleitorado, acabam engolidos na mesma esquizofrenia e não representando alternativa. Não por acaso na manifestação dos caminhoneiros as tentativas da militância esquerdista em usá-la para si foi rechaçada e não encontra simpatia alguma, apesar das infiltrações inevitáveis.

Já à direita encontramos duas posturas opostas diante da constatação do mesmo fato de que o sistema representativo está em xeque e que podem ser simbolizadas por duas figuras icônicas da chamada “nova direita”. De um lado, o filósofo Olavo de Carvalho simboliza o que se poderia chamar de “revolução brasileira”, algo que, em suas próprias palavras, seria um confronto do povo em geral contra o estamento burocrático, os donos do poder. Segundo o filósofo, em 2015 o povo teria tomado consciência da sua força e da existência do próprio processo revolucionário de destruição desse estamento e estabelecimento de uma democracia verdadeira, com representatividade real, sendo que a paralisação atual dos caminhoneiros seria uma intervenção popular a conduzir esse processo.

Olavo parece ter razão, mas seria isso uma solução? Essa revolução levaria ao estabelecimento de uma democracia verdadeira? Não há como saber. Nada garante que algo melhor ou menos pior advenha disso, nem mesmo que a troca do atual sistema por outro – que ninguém sabe qual seria e como se estabeleceria – seria capaz de dar mais representatividade a tantos interesses de toda ordem. Quem garante que não será como se deu na Constituinte de 1988 e saia disso tudo uma nova carta magna imensa, esquizofrênica e inaplicável na sua maioria que sofrerá emenda atrás de emenda para tentar ser salva? Não há como saber, só arriscar. Acontece que essa ousadia de levar a cabo uma revolução, ainda que não violenta (se é que é possível não ser violenta no atual contexto brasileiro), gera durante o processo revolucionário, uma insegurança generalizada em virtude do medo inevitável das consequências que são imprevisíveis. E aí, o receio natural do desconhecido somado à degradação da ordem instituída pode fazer o tiro revolucionário sair pela culatra, criando, na prática, o oposto do desejado, ou seja, não um novo sistema de representatividade mais democrático, mas o contrário disso. Exemplos disso não faltam na história mundial.

De outro lado, o símbolo é Reinaldo Azevedo, que enxerga nessa alegada revolução justamente o problema maior a ser evitado, pois fora do “Estado Democrático de Direito” não haveria salvação e as mudanças teriam de ser dar dentro do próprio sistema de representatividade atual, ainda que não represente ninguém de fato. É justamente por isso, porque a realidade é de uma crise de representatividade sem precedentes, que sua defesa apaixonada do “Estado Democrático de Direito” deixou de ser razoável, transformando o próprio Estado Democrático de Direito num fetiche por inverter a própria realidade que lhe dá fundamento e sentido, pois se não há representatividade de fato, a representatividade “de direito” é oca e meramente formal. Por isso mesmo vem constrangedoramente se obrigando a negar a realidade dos fatos que desmentem seus achismos, como aqueles que demonstram que a paralisação dos caminhoneiros se iniciou espontaneamente, como a reportagem do Estadão citada acima demonstrou e a dificuldade em terminar a paralisação comprovou de vez, sustentando que se trataria de um locaute de empresários e mais nada. O divórcio de Reinaldo Azevedo com a realidade tem sido tamanho que já chegou ao ponto de negar ao povo a capacidade de enxergar a realidade e julgar por si, crente que a fragilidade do atual governo, de quem se tornou, na prática, um assessor de imprensa informal, se deveria à um “cerco que foi armado contra a gestão Michel Temer, que o relega a uma impopularidade absolutamente incompatível com seus feitos nestes dois anos”. Ou seja, o povo só não gosta de Temer porque estaria sendo manipulado por esse “cerco”, não porque possa avaliar tais feitos de forma diferente e talvez levando em consideração muito mais do que isso no seu julgamento.

É claro que entre uma e outra postura haverá um sem número de intermediárias que, no fundo, cabem todas no ditado popular: “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.” Ou seja, no fim das contas acabarão por desaguar em uma ou outra dessas posições citadas. Enfim, independente do que cada um pense e se posicione a respeito de tudo o que está acontecendo, o fato é que ninguém pode saber nem prever em que isso irá resultar, só conjecturar, apostar e rezar. Dia desses estava a reler Paulo Francis e fiquei a pensar em uma de suas famosas frases: “Talvez o Brasil já tenha acabado e a gente não tenha se dado conta disso.” Talvez, agora, a gente esteja.

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