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Nick Cave (ao piano), no documentário “This Much I Know To Be True”.
Nick Cave (ao piano), no documentário “This Much I Know To Be True”.| Foto: Divulgação

(para mim)

“Só para loucos. Só para raros.” As famosas frases do romance O Lobo da Estepe, de Herman Hesse, vieram-me à lembrança depois de assistir a This Much I Know To Be True, o mais novo documentário sobre Nick Cave, disponível na plataforma de streaming Mubi. O título vem de um verso da música Balcony Man, executada no filme, cuja letra termina assim: “E o que não te mata / apenas te deixa mais louco”.

Em 2015, Nick perdeu um filho de 15 anos numa tragédia, Arthur. Não é fácil escutar suas músicas compostas depois disso. Compreendo quem não consegue e se sente desconfortável demais. Porque são dolorosas mesmo, apesar de dolorosamente belas. E, como o luto se tornou um tabu, demonstrações públicas muito explícitas dessa dor incomodam mais do que artista tatuando o ânus em rede social.

No início do último maio, Cave veio a público informar que outro filho seu morreu: Jethro, de 31 anos. Embora o documentário tenha sido feito antes, é difícil imaginar que o acréscimo de luto mudará algo no sentido maior que Nick Cave encontrou e está retratado no filme. Acho até que acontecerá o contrário: “E o que não te mata apenas te deixa mais louco”. Como desconfio que sou desses também, não só escuto os últimos discos dele como escrevo sobre eles. Como em 2020, quando o músico fez um show magnífico em plena pandemia, sem público e acompanhado apenas de um piano. Ali, a marca profunda da dor do luto se apresentou já transfigurada por uma esperança luminosa, ainda que solitária.

Como o luto se tornou um tabu, demonstrações públicas muito explícitas dessa dor incomodam mais do que artista tatuando o ânus em rede social

Agora, a solidão é partilhada com seu parceiro de longa data, Warren Ellis, com quem compôs Carnage, seu penúltimo disco. Utilizando parte dele e do anterior, Ghosteen, em execuções intimistas com um coral magnífico, This Much I Know To Be True constrói uma narrativa que, somada às imagens e, especialmente, ao uso de luz e trevas, revela a plenitude de sentido que há em toda dor, todo sofrimento, toda morte. Nick já disse que “se você conseguir entrar no coração da canção e lá ficar, é algo divino o que acontece, ao menos por alguns momentos”. Em This Much I Know To Be True, é algo divino que acontece o tempo todo.

Numa das poucas cenas não musicais do filme, falou sobre como não buscava mais a felicidade, porque havia encontrado um sentido maior, presente em todas as coisas, boas e ruins, na realidade como um todo. Quando o vemos falando, cantando, trabalhando, mas principalmente sofrendo, não temos como negar que Nick Cave se instalou nesse sentido. Talvez nada demonstre isso melhor do que suas respostas às cartas que lhe enviam por seu blog, The Red Hand Files.

No filme, ele comenta e responde uma dessas cartas, de alguém que lhe perguntou quem ele era, independentemente do que fazia. Nick tomou alguns segundos e respondeu que não se via mais como músico, escritor, artista, mas como uma pessoa, uma pessoa que era marido, que era pai e que tinha as ocupações de músico, escritor etc. A humildade é inegável; a sinceridade, comovente. Aliás, o diretor fez muito bem em transformar o documentário numa mistura de take de bastidores e de filmagens pra valer. Porque assim vemos que o sentido está presente a todo momento, de forma simples, humilde e sincera.

Escutar suas músicas, assistir a seus documentários, acompanhá-lo respondendo essas cartas é sentir sua dor, a dor do luto, da solidão, mas também a total desambição de qualquer coisa que não seja estar e falar desde o coração desse sentido. Desde lá para o coração de quem for sensível o suficiente para experimentar esse sentido. E é uma experiência transformadora. “Só para loucos. Só para raros.”

Mas no que se transforma a personalidade que não foge dos sofrimentos inevitáveis da vida, que aceita as cruzes que lhe desmontam e encontra o sentido para tanto? É aí que a narrativa através das músicas executadas vai não exatamente responder isso, mas iluminar a resposta. Do início ao fim do filme, a luta contra a desesperança é uma constante, mas o sofrimento pelas perdas vai se transfigurando em amor pelo amor. Em Ghosteen, Nick canta: “Estou falando de amor agora / E como as luzes do amor se apagam/ (...) Bem, não há nada de errado em amar o que não pode permanecer”.

O “fantasma adolescente”, obviamente seu filho Arthur, responde em Ghosteen Speaks: “Eu estou dentro de você, você está dentro de mim / Eu estou ao seu lado, você está ao meu lado / Eu acho que eles estão cantando para serem livres”. E é isso, serem livres, não da dor, porque sem ela essa liberdade não será concedida. Sim, concedida, não conquistada.

No que se transforma a personalidade que não foge dos sofrimentos inevitáveis da vida, que aceita as cruzes que lhe desmontam e encontra o sentido para tanto?

Na passagem das músicas do disco Ghosteen para Carnage, vem a canção Hand Of God, cuja introdução fala por si: “Há algumas pessoas tentando descobrir o porquê / Há algumas pessoas que não estão tentando encontrar nada / Salvo aquele Reino no Céu”. A partir daqui, não há mais o que “interpretar”, as letras são óbvias. Em White Elephant, cantada logo em seguida, repete-se: “Não pergunte por quê / Há um Reino no Céu / Estamos todos voltando para casa”.

Albuquerque, cuja letra é sobre a impossibilidade de se ir a qualquer lugar, ganha no contexto do filme outro sentido. Não o da impossibilidade, mas da liberdade de quem não vai não porque não pode, mas porque prefere ir a outro lugar, muito melhor: o Reino do Céu. Reino do Céu cuja metáfora com um campo de lavanda, feita em Lavender Fields, vem acompanhada de uma “explicação” do que Nick Cave está fazendo: “Estou viajando terrivelmente sozinho em uma estrada singular / Para os campos de lavanda que se estendem além do céu / As pessoas me perguntam como eu mudei, eu digo que é uma estrada singular / E a lavanda manchou minha pele e me deixou estranho / A lavanda é alta e vai além da cobertura celestial / Vasculho por este mundo furioso do qual não espero mais nada”.

O uso de luz e trevas durante as músicas, que já era perfeito, torna-se divinamente deslumbrante na última, na já citada Balcony Man, mais especificamente quando Cave canta os singelos versos: “Esta manhã é incrível, assim como você”. Palavras aqui não dão conta da beleza sublime que é esse trecho no filme, com uma luz que “cega” o próprio Nick. É esse pouco que ele sabe ser verdade, essa luz que a tudo banha, contém, ilumina e restaura. É essa luz de sentido que faz com que a frase que termina a canção, “E o que não te mata apenas te deixa mais louco”, ganhe o significado dos Evangelhos, da sabedoria de Deus que parecerá loucura aos sábios deste mundo. “Só para loucos. Só para raros.”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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