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Dizem que existe um treco chamado “lugar de fala”. Em resumo, significaria que alguém só poderia falar sobre preconceito racial, por exemplo, tendo sofrido preconceito racial. Eu, como homem branco, não teria “lugar de fala”, portanto, para dizer algo sobre o racismo. Sendo assim, pergunto: quem é o Senhor dos Lugares de Fala? Afinal, com que legitimidade e autoridade alguém poderia pontificar sobre “lugar de fala” sem estar no lugar de todos os lugares de fala? Não é preciso pensar muito para se concluir que esse truque retórico significa apenas uma coisa: tentativa de controle da fala alheia. Trata-se, portanto, de conquistar um “lugar de poder”.

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O último Oscar deu uma amostra perfeita disso. Depois de alguns anos de campanha contra um “Oscar branco”, neste último havia três filmes a tornar a premiação um bombom dois-amores. Pantera Negra parece ter sido indicado menos por ser um filme que por ter sido feito praticamente só com atores negros. Sua vitória seria política apenas e tão somente, nada tendo a ver com cinema ou arte. Além dele, havia o panfletário Infiltrado na Klan, sobre uma história real de um policial negro infiltrado na Ku Klux Klan, que o filme associa diretamente a Trump; e Green Book, também baseado em fatos reais da relação de um músico negro muito culto com seu motorista branco inculto, durante uma viagem em turnê pelo sul dos EUA na década de 60, época de forte segregação racial.

Embora bem menos cotado, Green Book venceu a premiação. O “Oscar branco” enfim se tornou um “Oscar negro”, certo? Não, segundo quem teria “lugar de fala” para falar sobre isso. Spike Lee, diretor de Infiltrado na Klan, ficou tão indignado com a vitória do concorrente que tentou sair do auditório na hora do anúncio e, não conseguindo, recusou-se a aplaudir o agraciado. Logo depois, viralizou um vídeo da reação de Chadwick Boseman, o ator que interpretou o Pantera Negra, nitidamente descontente. Aí descobri que acusavam Green Book de ser um filme racista porque o negro da história supostamente seria dependente do branco. Será? Não resisti à propaganda feita por Spike Lee e saí do meu lugar de preguiça para assistir ao filme.

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Green Book é o típico filme hollywoodiano, feito dentro do padrão, sem nada de mais e sustentado inteiramente nas interpretações dos atores, Mahershala Ali e Viggo Mortensen, ambos exuberantes. Não acho que merecia vencer, mas acusá-lo de racismo é forçar demais a fronteira do tal “lugar de fala”. Para mim, não faz sentido algum falar em dependência de qualquer um dos personagens para com o outro quando há evidente cooperação mútua. Ajudam-se mutuamente o tempo todo, aprendem um com o outro, criando uma amizade genuína e comovente. O filme é bom, divertido, dá uma bela sessão da tarde, mas não mais que isso. Até sua indicação poderia ser questionada, quanto mais a vitória. Mas por razões cinematográficas, jamais por essa militância insensata.

Como sou curioso (alguns dirão masoquista), resolvi assistir também ao filme de Spike Lee, para ver se seria melhor que Green Book e mais adequado ao tal “lugar de fala” sobre o racismo. É um filme superior ao vencedor, certamente. Spike Lee é um grande cineasta que sabe montar um filme como poucos. Até a panfletagem escancarada associando Donald Trump aos supremacistas brancos, que é ridícula em si, ganha sentido na obra, pois é uma sátira social e política no fim das contas. Mas, do ponto de vista de quem não está interessado em cinema, apenas em lacração, é um filme tão representativo do tal “lugar de fala” quanto Green Book; afinal, no fim o protagonista negro preferiu “se submeter ao branco”, continuando sendo policial, a se unir aos ativistas, a ponto de sua então namorada lhe dizer que não poderia continuar o relacionamento com ele seguindo na polícia.

A sátira é tão forte em Infiltrado na Klan que, no fim das contas, estamos diante de uma obra que, se tem um “lugar de fala”, não é o do negro ativista, mas o de quem satiriza a militância, qualquer uma. A cena em que o discurso do chefão da KKK é entrecortado com outro de um representante dos negros, com os dois grupos gritando palavras de ordem idênticas, mudando apenas o “lugar de fala” (“white power” e “black power”), é o clímax dessa sátira a dar forma ao todo da história, fazendo com que os opostos sejam retratados como muito semelhantes. Assim, o ridículo com que o filme cobre um branco supremacista acaba também atingindo a militância negra cuja radicalidade insensata fica evidente ao chamarem todo policial de porco, mesmo diante de provas abundantes de que vários ali não o eram, muito pelo contrário.

O mais engraçado é que, como Spike Lee quis fazer uma obra militante, a sátira acaba acertando também nele, involuntariamente, sendo que às cenas finais reais registradas de conflitos entre manifestantes nos últimos anos nos EUA poderia se acrescentar facilmente a sua reação infantil e desrespeitosa na premiação do Oscar, que foi exatamente a mesma postura intolerante da ex-namorada do protagonista do seu filme, que se recusou a namorar quem amava por ele ter preferido se manter fiel à sua vocação policial.

Na cena derradeira, Lee colocou a foto de uma jovem branca apoiadora do movimento negro que foi morta durante um daqueles conflitos. Abaixo da foto, trocou a frase tradicional “descanse em paz” por “descanse no poder”. Eis aí a militância, qualquer uma, revelando seu real “lugar de fala”, que não é o de quem busca a paz, mas o poder. Ainda bem que a sátira nos retirou desse lugar e nos levou ao lugar do riso, única arma contra a qual o poder se desnuda ou se demonstra inútil. Não deixa de ser significativo que o penúltimo ato do policial negro protagonista tenha sido justamente passar um trote no chefão da KKK, sendo seu último recusar o radicalismo da militância, preferindo ser muito mais eficaz no combate ao preconceito agindo como policial. Tinha toda a razão.

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No fim das contas, a sátira de Infiltrado na Klan nos devolve ao humor leve e humanizador de Green Book, que faz qualquer espectador sair do cinema com um sorriso no rosto, desarmado desses “lugares de conflito” para a amizade dos protagonistas que resolve todos os potenciais conflitos e nos conduz para o único lugar de fala que interessa e no qual todos somos convidados a morar, independente de qual seja sua raça: o lugar de fala do amor ao próximo.