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Arara canindé no Passeio Público de Curitiba.
Arara canindé no Passeio Público de Curitiba.| Foto: Albari Rosa/Arquivo Gazeta do Povo

Frio do djanho em Curitiba dias atrás. Quando o sol deu o ar da graça, as garças do Passeio Público (são garças? Delas só conheço os clichês) se apinharam nas copas das árvores, enquanto os pássaros entre grades buscavam a luz e o calor nos galhos mais próximos dos passantes, como eu.

Ali estacionei da minha corrida de rua (meu exorcizante preferido), a admirar as cores das araras de tipos diversos, também de tucanos, papagaios e outras espécies que nunca guardo o nome. A luz da manhã tatuava o gradil nas penas dos bichos, banhando de ternura seus olhares melancólicos pela impossibilidade do voo.

Não me entenda mal, nada sei sobre aves. Se digo que tristes pareciam é pelo contraste com aquelas que avistei no Cerrado nas vezes em que fui para lá (saudades…). As mesmas araras vermelhas, de penas mais viçosas, grito estridente, pescoço empinado e olhar vivo, alerta. Bem diferentes das enjauladas por aqui com o colorido desperdiçado, mudas e de pescoço encolhido num olhar entre o assustado e o resignado.

Nada sei sobre aves. Se digo que as do Passeio Público tristes pareciam é pelo contraste com aquelas que avistei no Cerrado nas vezes em que fui para lá

Que brasileiro não se sente assim também? Identificando-se, menos pelas araras, mais pelo efeito das grades? Talvez fosse o momento de falar sobre isso, sobre essas grades todas, mas um dia de sol depois de tantos friosos merece a fantasia da liberdade. Existe “frioso”? Ando lendo tanto Manoel de Barros que mimetizo neologismos como quem se absorve em sotaques de terras outras.

Vai uma crônica assim mesmo, puxada pelo sol e palavras do poeta, no desejo de que a sensatez também possa me absurdar:

“Agora a nossa realidade se desmorona. Despencam-se deuses, valores, paredes... Estamos entre ruínas. A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos que voam por dentro dessas ruínas. Dos restos humanos fazendo discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres que correm dentro de nós e das casas. Aos poetas do futuro caberá a reconstrução – se houver reconstrução. Porém a nós – a nós, sem dúvidas – resta falar dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas e está cego. Cego e torto e nutrido de cinzas.”

Fica a arara no lugar dos morcegos, e essa má vontade de falar do que sobrou das ruínas, mesmo não sendo mais do que esse resto humano a declamar na alma trechos do Livro das Ignorãças:

Nuvens me cruzam de arribação.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.

As araras me ignoram, porém. Uma até esticou o olhar, pescoçamente, mas como quem diz “nem tente”. E não tento. Vou-me embora para o que não é Pasárgada, não sem antes passar pela chamada “Ilha da Ilusão”, no mesmo Passeio Público, a que se chega por uma curta ponte pênsil. Ali, em 1911, o príncipe dos poetas paranaenses, Emiliano Perneta, foi coroado, lançando seu livro Ilusão. Seu busto me ignora também, mas não a placa que o identifica, contendo apenas um de seus versos: “… toda madrugada é o começo do mundo …”.

É quase meio-dia. Se é assim, o mundo de hoje está em seu apogeu, e, ainda que inteiramente gradeado pelo lado de fora, vai por dentro inabarcável, refeito em palavras, com o poeta ressoando como o mar numa conchinha extraviada: “Dou para moer lírios com o olho tem dias. Me desculpem. Mas o que dá dimensão às coisas é primeiro a alma, o olho da alma, e depois a metragem”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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