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Orzabal (esq.) e Smith (dir.) em foto de divulgação do álbum The Tipping Point.
Orzabal (esq.) e Smith (dir.) em foto de divulgação do álbum The Tipping Point.| Foto: Facebook/página oficial Tears for Fears

Com a revolução que a internet causou na indústria musical, com muitos acreditando ser questão de tempo para desaparecer o formato de álbum, de disco contendo várias músicas reunidas com algum tema ou história as relacionando, compor músicas “soltas” visando transformá-las em grandes hits se tornou talvez a única forma de se estabelecer e sobreviver.

Natural, portanto, que diante do retorno do Tears For Fears, grandes fazedores de hits no passado, a gravadora e produtores desejassem que focassem nisso. E foi o que tentaram fazer em 2013, chamando artistas contemporâneos mais famosos que eles para parcerias musicais. Embora tenham composto algumas músicas, o resultado não saía como gostariam, desanimando a dupla, especialmente Curt Smith. O projeto foi se arrastando, nunca sendo finalizado; com a morte de Caroline, esposa de Roland Orzabal, em 2017, e a subsequente internação do viúvo para tratar seu vício em álcool, estava praticamente abandonado.

Até que, no início de 2020, com Orzabal retomando a vida, inclusive com nova esposa, a dupla decidiu deixar de lado tudo o que diziam que deveriam fazer, todas as parafernálias da indústria e se encontraram apenas os dois com alguns violões. A mágica, então, aconteceu. Curt criou um riff folk, ao estilo de Bob Dylan ou Johnny Cash, e compuseram No Small Thing, uma ode à liberdade. Segundo Orzabal: “Foi o oposto completo do que tentávamos fazer há muitos anos – buscar o single de sucesso elusivo e moderno. De repente, nos sentimos desimpedidos, livres, se quiser, não mais nos preocupando com o mercado, com o sucesso, mas desenhando a música com as influências de nossa infância”.

O que Smith e Orzabal descobriram compondo, apenas os dois, é que são muito melhores quando estão juntos. É o amor da amizade que os fez criar o Tears for Fears, é pelo amor da amizade que encontraram uma explicação para o sofrimento

A partir dali, um novo disco foi nascendo, reaproveitando algumas das músicas já feitas, compondo novas, ganhando o título de The Tipping Point, que pode ser traduzido livremente como sendo “o ponto de virada” ou “ponto de inflexão”. Uma virada em vários sentidos, não apenas em relação ao dito acima, mas também da vida de ambos. Orzabal, em entrevistas, tem feito um paralelo com o primeiro disco do duo, The Hurting, quando queriam entender o sofrimento, pedindo para alguém explicá-lo. The Tipping Point, um disco emocionalmente amadurecido, ao contrário da vulnerabilidade daquele primeiro, revela o encontro da resposta. Por isso, mais do que libertador, este disco é curativo, como disse Curt: “Foi o mais prazeroso e mais terapêutico momento de nossa história juntos”.

O álbum tem a típica estrutura de lados A e B, com cinco faixas para cada, desenvolvendo o tema do sofrimento. No primeiro lado, No Small Thing serve não apenas como este manifesto do valor da liberdade, mas também de introdução para a “libertação” do sofrimento. A segunda faixa é a que empresta o nome ao título do disco, tratando da morte da esposa de Orzabal, com ele a observando na cama do hospital e se perguntando quando seria o momento da virada, o momento em que o fiapo de vida se cristalizaria na morte. Mas, no contexto do disco, The Tipping Point não é apenas sobre este sofrimento, mas sobre todos já vividos e por viver. A certa altura, ele canta: “A vida é cruel, a vida é dura / A vida é louca, então tudo vira pó”.

Na meditativa Long, Long, Long Time, a terceira faixa e que tem alguns dos melhores versos do disco (“Engraçado como o coração de todo mundo / É a parte que nunca conheceremos / Curioso como a arte de conservar é se desapegar”), a experiência dos quase sessentões ressoa na forma de uma aceitação do sofrimento como sendo parte da vida. Há uma serenidade que nos remete a um novo “ponto de virada”, agora da morte para a vida, que vem com a faixa mais animada desse lado A, Break The Man, que tem um sentido político contra o patriarcado, mas que dificilmente você perceberia se os próprios compositores não chamassem a atenção para isso. No contexto do disco, ela ganha outras camadas de significado, muito mais interessantes, como a da esperança que não termina mesmo quando tudo parece estar se acabando: “Chega de se perguntar: ‘O que acontece agora?’ / Não mais segurando seus pés no fogo / Quando tudo está acabando / Isto é amor”.

A última faixa do lado A, My Demons, conecta-se com a primeira do lado B, Rivers Of Mercy, formando o coração do disco. É preciso encarar nossos demônios para que rios de misericórdia nos banhem: isto é amor. Como se canta em Rivers Of Mercy: “Se por trágico, você quer dizer o fim / Nós não estávamos errados, estávamos apenas famintos / Pelo Maná do Céu / E venha me afogar no mar infinito / Deixe-me cair em rios de misericórdia, sim / Atrevo-me a imaginar alguma fé e compreensão?” Não só se atrevem, como de fato nos levam a uma maior compreensão, o que exige novo “ponto de virada”.

Please, Be Happy é outra canção composta por Orzabal quando Caroline estava muito doente, devolvendo-nos ao sofrimento: “Por favor, seja feliz / Porque você sabe que eu não suporto te ver / Neste estado de melancolia / Enrolada em sua cadeira”. Mas não há aqui um recuo, uma queda, pois no contexto do disco a resposta que encontraram para o sofrimento é a aceitação do fato de que ele é inescapável, faz parte da condição da vida. Aqui começa a ficar claro o sentido do “tipping point” representado na capa do disco como uma espécie de “roda-viva” a girar perenemente, com o sofrimento indo e vindo; fugir dele seria não só inútil, como motivo de mais sofrimento. Por isso, em Master Plan, a oitava faixa do disco, cantam: “Acredite em mim quando digo que há outra maneira / O sol nascerá amanhã em seu mundo de dor / Se ao menos você deixasse seus sentimentos aparecerem”.

Deixar os sentimentos aparecerem, encarar os demônios, para que a misericórdia, o amor retorne ou se manifeste, “transformando lágrimas em júbilo”, como cantam na sorridente penúltima música: End Of Night. Que seria, de certa forma, o encerramento. Entre The Tipping Point, entre o sofrimento agudo no seu momento crucial e a transfiguração da noite em que ele nos deixou para a luz da esperança, com End Of Night, teríamos o disco completo, apresentando uma jornada emocional madura pelo sofrimento humano. Mas não é assim que ele termina, como não foi assim que ele começou. A última música, Stay, poderia ser a primeira, assim como No Small Thing poderia ser a última.

O amor dá sentido à dor e é esta a terapia que liberta ambos das neuroses que carregam, do passado às do presente. O amor liberta

Stay é sobre Curt Smith, sobre sua dúvida se seguia em carreira solo, com as dificuldades que encontravam nas gravações das tentativas de criar hits, também pelo drama pessoal de Roland, que poderia significar o fim da dupla se ele não se recuperasse. A letra de Stay retrata o sofrimento moral de Curt, com ele cantando: “Fique, não fique / Vá, não vá”. O disco termina assim, sendo ele próprio a resposta dada por Curt: ele ficou. E aí temos novo “ponto de virada”, em que a liberdade, que não é pouca coisa, cantada na primeira música, ganha nova camada de significado depois de ouvido todo o disco: “A razão vai te cegar / Aleijar e confinar você / Ouça enquanto seu pobre coração se parte / Faça uma viagem para a América / Deixe o vento soprar em seu cabelo / Vamos comprar algumas cervejas e esperança para compartilhar / Todos os dias”.

O que eles descobriram compondo, apenas os dois, é que são muito melhores quando estão juntos. É o amor da amizade que os fez criar o Tears for Fears, é pelo amor da amizade que encontraram uma explicação para o sofrimento: sem sofrimento o amor não seria o que é. O amor dá sentido à dor e é esta a terapia que liberta ambos das neuroses que carregam, do passado às do presente. O amor liberta. Daí a seriedade da constatação em No Small Thing de que a liberdade não é pouca coisa. Porque só existe amor quando somos livres para amar.

Mais do que uma declaração de amor à liberdade ou libertação das neuroses, este disco também é uma declaração de amor de um para o outro, simbolizada de várias formas, a começar no amor por uma garota na primeira música: “Porque você sabe que eu te amo, garota / Você é minha saída do inferno / Mas tenho apenas mais uma música para cantar / Mais uma história para contar”. Como disse Curt, em entrevista recente para a Vulture, respondendo a uma pergunta sobre a amizade deles: “A maior lição – o que é difícil para nós, porque somos pessoas com muita força de vontade, portanto, dois homens de frente – é que não podemos viver um sem o outro. É difícil para nós dois admitir isso, mas é algo que aprendemos. Somos melhores juntos do que separados, e há alguma mágica que acontece quando estamos juntos. Mas levou muito tempo para nós dois chegarmos a um acordo com isso, daí o rompimento e, portanto, eu me afastando dele. Ser capaz de admitir que você precisa de outra pessoa é, na verdade, uma lição muito valiosa para pessoas tão obstinadas quanto nós”. Uma lição muito valiosa também para nós.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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