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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Férias

Trump no Oscar e a liquidação de nuvens 

(Foto: Criado com Grok IA)

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Flocos de algodão em forma de nuvem vão lentamente dançando na linha do horizonte. Gosto de imaginar o céu como um quadro-azul em que Deus desenha efemeridades durante o dia, depois o escurece salpicando luminárias de perenidade. Não ligue, é o whisky mal poetando com duas pedrinhas de gelo.  

Deveria estar de férias, mas isso non ecziste mais. Escrevo com vista para o mar, ao menos. Acompanhado de amendoins torrados com sal. Uma brisa me visita. Alongo o olhar nas ondas preguiçosas, invejando-as. O cachorro engarrafado me observa, esperando a desistência. 

Tentei não me atualizar das notícias, que são como conchinhas quebradas na areia, obrigando a olhar com cuidado por onde se pisa. Mas parece que coisas importantes aconteceram desse lado aí e escutei o alarido dos quero-queros trazendo as novas. Se entendi direito, o Trump foi indicado ao Oscar por Ainda Estou Aqui, confere?  

Mas minha preocupação maior é quão transfóbicos os brasileiros terão de ser para torcer contra o filme lá que tem um trans concorrendo contra a Fernanda Torres. É muito difícil ser desconstruído hoje em dia. Risos. Desculpe, estou rindo de “minha preocupação maior”. Onde pus o guardanapo? A gordura dos amendoins está melecando o teclado.  

Falar nisso, e a treta entre escritores que está abalando a literatura brasileira? Pois é, também não faço ideia de quem sejam, salvo um ou outro, sendo que só do um li algo (nem achei tão ruim). As pedrinhas no copo vazio estão quase derretidas, é o tamanho e relevância atual do universo literário neste país. Acho que vou mudar pra cerveja. 

Lembrei de um conhecido, esquerdista de quatro costados, que abriu um bar. Na propaganda, orgulhava-se de só servir Ambev, dizendo que era a cerveja que nossos pais bebiam, indo contra as artesanais que estavam na moda (ainda estão?). É engraçado esquerdista indo contra pequeno empreendedor brasileiro para defender multinacional. Acho que vou ficar no whisky mesmo. 

Terei pouco tempo de praia, digo, de trabalho por aqui. Terá show de graça na areia, do Alexandre Pires, o Fábio Jr. do pagode. Mas talvez esteja confundindo o Fábio com o Reginaldo Rossi. Acho que vou curtir, dizem que é um bailão em que ele canta Raça Negra. Tomarei algumas, daquelas que nossos pais bebiam quando não tinham opção. 

A brisa virou vento, acumulando os tufos de algodão no horizonte, empedrando o azul. O copo começou a suar pelo lado de fora também. Acrescentei mais gelo, também um pouco de água de côco, que vou chamar de Rayuela, homenagem à obra de Cortázar que estou a ler nos intervalos de não sei bem o quê. 

Aliás, enquanto me sirvo de outra dose, Cortázar assume aqui por um instante: “em duas ocasiões, estivera a ponto de sentir certa piedade e de lhes deixar a ilusão de que o compreendiam, mas algo lhe dissera que sua piedade não era autêntica, era antes um recurso barato do seu egoísmo e do seu tédio e dos seus hábitos. 'A Piedade está em liquidação', dizia Oliveira, e deixava que elas fossem embora, se esquecia delas muito rapidamente.” 

Voltei, mas acho que já está de bom tamanho, não? Crônicas sempre estão em liquidação também, igualmente esquecidas rapidamente pelo leitor. São como estes algodões levitando no céu. Gosto de imaginar que Deus as recolhe, transformando em estrelas a salpicar de brilho a monotonia da vida, ao menos a de quem de vez em quando olha para o céu. Não ligue, é a última dose, prometo. Keep reading.    

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