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Show do U2 em Roma, em 2017, comemorando os 30 anos do disco “The Joshua Tree”.
Show do U2 em Roma, em 2017, comemorando os 30 anos do disco “The Joshua Tree”.| Foto: U2Start/Wikimedia Commons

De vez em quando preciso voltar aos meus espantos. De alguns, deixei registro por escrito, como no texto abaixo, de 2017, que revi e aumentei em 2020, e reescrevi em parte agora, diminuindo-o. Não pretendia publicá-lo por aqui, mas, ao terminar, achei que deveria.

Quando vejo a devoção com que alguém fala ou aprecia alguma canção ou disco, já reconheço um “irmão de braçadas”, um náufrago existencial se mantendo à tona com a ajuda de música, muita música. E não falo aqui de histeria adolescente, mas de algo mais sério e profundo, uma vivência quase religiosa, religando a algo que faz e dá sentido à vida.

Uma experiência dessas tenho com o que considero o melhor disco (na minha opinião) do U2, The Joshua Tree, uma obra que trata justamente disso: procurar sentido e manter a esperança de encontrá-lo suportando o deserto desesperador que a vida se tornou.

Não por outra razão a capa do disco tem uma foto tirada no Deserto do Mojave, nos EUA, e, na contracapa, a “Joshua Tree” (“Árvore de Josué”). A origem do nome devemos aos mórmons que emigraram, atravessando o deserto em direção ao Oeste. Quando a viram, associaram seu formato peculiar à oração do profeta Josué, erguendo as mãos ao céu implorando a ajuda de Deus para chegar à Terra Prometida. Assim, viram na árvore um sinal de Deus os guiando pelo deserto.

The Joshua Tree trata de procurar sentido e manter a esperança de encontrá-lo suportando o deserto desesperador que a vida se tornou

O disco não me parece ser outra coisa senão também uma travessia pelo deserto que começa com a icônica Where The Streets Have No Name, que vem crescendo sem parar até o vocal entrar, quase dois minutos depois. Tudo é “para cima”, arrebatando, inspirando, alimentando a esperança. É como se tivéssemos chegado à Terra Prometida, cujas ruas não têm nome. Mas não se trata disso, é apenas o desejo intenso de isso acontecer.

Quando encaixamos letra e música, vemos que, embora exista a certeza da existência desse lugar, ainda estamos presos “aqui”, onde construímos e em seguida demolimos o Amor, que se torna enferrujado e nos deixa esmagados em poeira. Ou seja, a música é uma convocação para encetar a busca por este lugar onde a esperança será enfim satisfeita. Que mais haveríamos de querer nesta vida a não ser isso? “É só isso que posso fazer”.

Vem o hino religioso mais famoso da banda, I Still Haven’t Found What I’m Looking For, claramente inspirado no Livro dos Salmos, continuando do ponto onde a música de abertura nos deixou: procurando por aquele lugar que ainda não encontramos. Mas o que se revela aqui é que esse lugar, na verdade, é uma pessoa. E a letra não deixa dúvida de que essa pessoa é Jesus Cristo: “Você quebrou as cadeias, soltou as correntes / Você carregou a cruz / E toda a minha vergonha / Toda a minha vergonha / Você sabe que eu acredito nisso”.

Mas onde Ele está? Como encontrá-Lo? Eis a razão da busca que, mesmo começando plena de esperança e motivação, terá de passar pelo duro teste do deserto, que coloca à prova toda fé, exigindo uma resiliência digna dos cactos. With Or Wihtout You, comumente tratada apenas como uma baladinha romântica, surge neste contexto com significado muito maior. Ela nos aquieta da intensidade que as anteriores criaram, é lenta, introspectiva e a parte instrumental constrói um “chão” para a letra se destacar. Repare que, quando se canta sobre “ela”, não se trata da mesma pessoa do “você” do título: “Numa cama de pregos, ela me faz esperar / E eu espero sem você”.

Há duas esperas aí, portanto. Aquela por “ela” e aquela por “você”, que tampouco está lá. Esse “você” faz muito mais sentido, no contexto, se for Jesus Cristo, que estamos procurando, mas ainda não encontramos. É a Ele que a música fala como uma súplica na escuridão da noite no deserto. Mas essa esperança de encontrá-Lo começa a ficar abalada, pois num dos últimos versos vemos que o eu lírico se sente amarrado numa “cama de pregos” e pouco tem a oferecer.

Quanto tempo você suporta esperar pelo que demora a aparecer? Vem a música mais politizada da carreira da banda, Bullet The Blue Sky, outra cujo contexto do disco dá mais significado. A América cantada, para cujos braços as crianças e mulheres correm em busca de proteção e salvação, simboliza a Terra Prometida que ao mesmo tempo se descobre não ser. É aqui que a aridez do deserto começa a ganhar forma musical, de ausência de perspectiva, de vida dura, inclemente.

O tom dessa música é diverso do que veio antes, fazendo uma inversão da esperança para algo raivoso, frustrado, cansado. Nossa atenção é voltada não mais para onde as ruas não têm nome, para Ele; mas para o “aqui” sem Ele, sem Terra Prometida, muito menos encontrada. Se antes a esperança era maior e nos conduzia, agora se torna menor, como a Árvore de Josué no deserto, que ainda não é um sinal divino a certificar Sua presença, mas um símbolo do homem que sofre nesse deserto e começa a fraquejar daquela certeza inicial do que quer encontrar, embora ainda não tenha desistido da busca. A Árvore de Josué, assim, toda torta, torna-se também símbolo da dor: “Vejo que chove pregos nas almas / Sobre a árvore da dor”.

Mas a raiva, como todo sentimento, passa. E quando passa costuma deixar a tristeza em seu lugar. Vem, então, a música mais “desértica” do disco, Running To Stand Still, com seu início remetendo imediatamente à paisagem noturna do vazio silencioso do deserto. Aqui voltamos a ter um casal. Desta vez, é ela quem se angustia por saber que é preciso fazer alguma coisa sobre aquele “para onde” estavam indo e aonde parecia ser impossível chegar, se é que existia mesmo: “E então ela acordou / Ela acordou de onde estava deitada. / Disse que eu tinha de fazer algo / A respeito de para onde estamos indo”.

With Or Wihtout You, comumente tratada apenas como uma baladinha romântica, tem um significado muito maior. É a Cristo que a música fala como uma súplica na escuridão da noite no deserto

O sentido original da palavra pecado tem a ver com “errar o alvo”. Ou seja, é pecado tudo que nos desvia da busca da Terra Prometida, tudo que colocamos no lugar Dele ou nos faz desistir de “atingir o alvo”. A fuga da dor conduz ao pecado, que estamos a escutar agora, sobre o uso de heroína: “Doce é o pecado, amargo é o sabor em minha boca”.

Uma vida errando o alvo só pode se tornar muito mais torturante do que quando se suportava a dor de não saber onde estava o alvo, nem como atingi-lo. Aqui é interessante citar uma referência que a letra faz à Dublin da época do disco e que tinha um conjunto de sete prédios que se tornaram um mocó de drogados. Este local tinha a taxa de suicídios mais alta de toda a Irlanda. O suicídio que seria a única saída vislumbrada: “Eu vejo sete torres, mas vejo apenas uma saída”.

É por isso que essa fuga não é uma solução, como a música deixa claro, pois a entrega ao “céu estrelado” da heroína é como sair correndo ficando parado no lugar. Uma vida sem Ele, sem busca pela Terra Prometida, rebaixa-se à luta pela sobrevivência através do trabalho diário e, com sorte, um amorzinho para passar os dias.

Mas o trabalho apenas como meio de sobrevivência se torna rotina infernal que só deixa a esperança de algo melhor para depois do expediente, como se canta em Red Hill Mining retratando essa espera angustiada e, no fundo, descrente por ser pouco, muito pouco: “Nós queimamos a terra / Colocamos fogo no céu / E nos inclinamos tão baixo / para alcançar tão alto”.

Se também o trabalho não parece suficiente, tampouco o amorzinho: “Estou suportando / Você é tudo que restou para eu me segurar”. Mas é claro que isso não se sustenta, como se canta ao fim de In God’s Country: “Uma chama nua, ela possui uma chama nua / Eu estou com os filhos de Caim / Queimado pelo fogo do amor”. O amor humano jamais será suficiente, nem substituto do primeiro mandamento divino: há um amor maior que não pode ser substituído nem rebaixado de posto. Tudo que se coloca no lugar Dele é falso.

Daí a ironia dessa música ao tratar os EUA como sendo o país de Deus, ou seja, a Terra Prometida. Mas que país é esse em que o sono é como uma droga e os olhos são tristes e as cruzes tortas, como diz a letra? Ou seja, o deus aqui é falso, simbolizado na Estátua da Liberdade: “Ela é a Liberdade, e ela vem me salvar / Esperança, fé, sua vaidade / O maior presente é o ouro”.

Com Trip Through Your Wires continuamos na mesma atmosfera da música anterior, com a guitarra estridente acompanhando um ritmo um tanto cansado, questionando o falso deus do amor humano: “Anjo ou demônio? / Eu estava sedento / E você molhou meus lábios. / Você, estou esperando por você / Você faz o meu desejo / Eu tropeço por seus arames”. Mas agora a fonte secou: “Não há mais água na fonte / Não há mais água, água”.

Eis que um trovão sobre a montanha ao longe anuncia chuva no deserto. Seria Ele? Com a Água da Vida? Vai se aproximando o fim do disco, da jornada, da busca. One Tree Hill é uma música sobre o fim. Ao mesmo tempo em que há uma desolação, uma amargura com a vida (“Eu não acredito em rosas pintadas ou pessoas de bom coração / Enquanto as balas estupram a noite do misericordioso”), ainda permanece viva a esperança de que a morte seja restauradora, que o mar, símbolo típico de morte e renascimento, possa ser mais e melhor do que o rio que nos levou até lá: “Oh grande oceano / Oh grande mar / Corra para o oceano / Corra para o mar”.

Por mais sofrida que a vida esteja, algo ainda mais forte do que a dor nos sustenta e nos faz levantar toda manhã para encarar o que há para ser encarado, ainda que seja o aparente nada. Ainda que você não dê este nome, trata-se de um ato de fé

Esses versos finais são cantados com algo de etéreo e convidam à introspecção, terminando como se fosse uma súplica para não nos entregarmos, não desistirmos, mas resistirmos, sermos resilientes e seguir em busca do “oceano”, do “mar”. Vem Exit. Encontramos a saída? Esta música retoma a ideia rítmica de Where The Streets Have No Name. A diferença é que, se lá partimos da luz da esperança, aqui estamos nas trevas da noite, na angústia do quase desespero. Sentimos a proximidade da saída, mas não parece que a encontraremos, por nossa própria culpa, sussurrada nos versos finais: “Mãos que constroem / Também podem destruir / Mesmo as mãos do amor”.

A partir daí a voz cessa e a música prossegue por alguns minutos como num transe, deixando a sensação de que tudo acabou mal, sem Terra Prometida, sem Ele, sem ela, sem saída nenhuma. Mas ela não encerra o disco. Mothers Of The Disappeared é a última música, que prossegue no efeito hipnótico de Exit, mas sem a angústia terrificante, substituída por um lamento murmurado, revelando resignação. A letra trata de mães cujos filhos desapareceram, mas cujos sorrisos o vento ainda faz escutar e a chuva permite ver suas lágrimas. É a resignação se tornando resiliência. O que nos devolve ao título do disco, ao símbolo da solitária Árvore de Josué. Já prestou atenção em uma, leitor?

Uma Árvore de Josué no Deserto do Mojave, nos Estados Unidos. Foto: nightowl/Pixabay
Uma Árvore de Josué no Deserto do Mojave, nos Estados Unidos. Foto: nightowl/Pixabay

Repare como sua beleza não é estética, não é uma árvore bonita. Sua beleza está no seu significado. Ela parece mais do que uma sobrevivente no deserto. Embora pequena, se agiganta em meio ao nada em que se encontra. Seus “braços” parecem cansados, mas seu tronco permanece firme de pé, ainda que nada em torno justifique perseverar. Que baita símbolo de fé e esperança no deserto, não?

É o que este disco significa também, sendo como esta única árvore solitária teimando em resistir em meio ao deserto de sentido da vida. Quantas vezes não passamos por isso, como se estivéssemos largados num deserto sem saber qual rumo tomar, em que a própria esperança se torna quase desesperadora? E ainda assim suportamos. E ainda assim seguimos em frente. Porque por mais sofrida que a vida esteja, algo ainda mais forte do que a dor nos sustenta e nos faz levantar toda manhã para encarar o que há para ser encarado, ainda que seja o aparente nada. Ainda que você não dê este nome, trata-se de um ato de fé. A fé teimosa como a de uma mãe que perdeu seu filho, mas ainda o vê e escuta na chuva e no vento.

É preciso ser como uma Árvore de Josué, resistindo por um lado e, de outro, servindo de guia ao próximo. Uma hora você encontrará o que talvez não saiba que é o que realmente procura, que não é um quê, mas um quem

Não sei se você sabia, mas a árvore da capa do disco morreu, tombando no solo no ano 2000. No lugar onde resistiu ao deserto até seu fim, fãs da banda e do disco montaram um santuário informal com uma placa.

“Você encontrou o que está procurando?”, pergunta a legenda. Acho que sim. Demorou muito, muito tempo mesmo. Mas encontrei. E isso não seria possível sem obras de arte como esta, que escuto desde os meus 11, 12 anos. Não que o disco tenha me dado ou ensinado o sentido da vida. Não, longe disso. Mas se tornou companheiro nessa viagem solitária em busca deste sentido, servindo de sinal-guia para não desistir. É isso que faz toda a diferença. Porque quando a existência parece sem sentido é preciso fazer da sua busca teimosa e paciente o próprio sentido da vida.

Em outras palavras, é preciso ser como uma Árvore de Josué, resistindo por um lado e, de outro, servindo de guia ao próximo. Uma hora você encontrará o que talvez não saiba que é o que realmente procura, que não é um quê, mas um quem. Quando isto acontecer, aí você entenderá por que o U2, quando toca Exit nos shows, inclui no fim o refrão de outra música sua, Gloria, indicando a verdadeira saída do deserto, o encontro da Terra Prometida. Se um mínimo de curiosidade o está levando a querer conhecer a música, deixo a versão presente na edição super deluxe do disco, em que escutamos: “Eu, eu tento falar bem alto / Mas apenas em você eu estou completo. / Glória / Em ti, Senhor / Glória / Exultai / Glória / Glória”. Amém.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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