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Com o advento do Iluminismo em sua forma radical, a relação entre direito e religião tornou-se cada vez mais crítica, a ponto de ser quase um lugar-comum o espírito combativo contra qualquer referência à manifestação da religião no espaço público. Hoje, os sacerdotes do humanismo ateu não poupam esforços para construir barreiras jurídicas com intenção de manter a ordem do sagrado aprisionada no espaço da vida privada, como se fosse uma mera questão de gosto pessoal sem oferecer nada à sociedade. Essa visão deformada de Estado laico, difundida com enérgico dogmatismo a fazer inveja a talibãs, não admite outra coisa senão impor divórcio entre o direito como bem público e a religião como experiência de foro íntimo. O que o Estado separou, o homem consente em silêncio obsequioso. Para demonstrar que as coisas não são tão simples assim, de que a relação entre o direito e a religião é muito mais estreita e cooperativa do que julgam os nossos “iluministas”, entrevistei Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina, que, juntos, escreveram o livro Direito Religioso: questões práticas e teóricas, pela Editora Concórdia.

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É lugar comum em uma cultura como a nossa, resultante do processo de secularização iluminista, alegar que a religião é uma experiência pessoal, de foro íntimo, que não deve se misturar com a política e com o direito. Um livro sobre Direito Religioso não iria na contramão dessa mentalidade? Como sustentar, então, um “Direito Religioso”?

É verdade que o século 20 relegou o fenômeno religioso para a esfera privada das pessoas. Talvez tenha sido a conta alta das escolas de pensamento crítico que, no século 19, invadiram seminários protestantes e católicos pelo mundo, desconstruindo as bases até então irrefutáveis da teologia bíblica. Ocorre que esta situação mudou drasticamente a partir do famigerado 11 de setembro de 2001. O ataque às torres gêmeas do WTC, em Nova York, motivado por sentimentos religiosos, devolveu o assunto para a esfera pública como uma bomba. O Brasil, porém, como uma ilha, manteve seu povo na “ignorância” das letras e, talvez, minimizou a força do elemento religioso como formador da nossa civilização. Com o gatilho do assunto “religião” puxado para devolver a pauta à arena pública, ele veio com tudo por aqui.

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De lá pra cá, só no Brasil, passamos por um novo regime jurídico das entidades (agora organizações) religiosas com o novo Código Civil, e também uma década e meia de um governo socialista levando às últimas consequências um texto constitucional de Welfare State num mundo onde esta mentalidade não mais faz sentido.

O certo é que hoje, 30 anos depois da promulgação da Constituição, o Brasil tem um modelo único de laicidade, verdadeiro exemplo para o mundo civilizado, um aumento exponencial do chamado “evangelicalismo”, que, melhor dizendo, trata-se da expansão das igrejas cristãs de tradição evangélica, e o uso do púlpito para moldar o pensamento para além dos assuntos relacionados à aproximação do homem com o Sagrado; mas, também, direcionando sua ética social e política. Por conta disso e das múltiplas relações jurídicas envolvendo a Igreja (em sentido amplo), o Estado e a sociedade, precisamos ter como objeto de estudo do comportamento normatizado o Direito usando a religião como verdadeira chave hermenêutica. Daí sustentarmos que existem bases para se pensar no Direito Religioso como verdadeiro ramo autônomo de investigação das ciências jurídicas enquanto ciências sociais aplicadas.

Em uma passagem do livro que trata do “modelo brasileiro de laicidade”, pode-se ler o seguinte: “O Estado brasileiro tem como modelo o sistema de laicidade aberta, distanciando-se totalmente do laicismo de combate e da laicidade à francesa”. Vocês poderiam explicar um pouco essa diferença?

Existem diversos modelos de organização estatal perante o fenômeno religioso, desde o modelo em que o Estado e a religião se confundem até o modelo que o Estado a suplanta e, contidas neste espectro, encontramos a laicidade aberta ou “colaborativa” e a laicidade à francesa. Malgrado os dois modelos remeterem à separação das coisas seculares e espirituais, a diferença de um para o outro é imensa e se dá na maneira como o Estado se posiciona perante a religião.

O Estado que pratica a laicidade colaborativa parte da premissa de que a religiosidade é um direito fundamental e inerente ao ser humano, que tem nela uma espécie de necessidade básica, assim como a segurança e a saúde o são. Partindo dessa premissa, o Estado não escolhe ou elege uma religião específica, mas garante o florescimento de toda e qualquer religião entre os seus cidadãos, tanto no espaço público quanto no privado. Em outras palavras, onde o homem estiver, em qualquer espaço que ele ocupar, poderá, se assim quiser, levar consigo sua crença e fé, e o Estado deve garantir que isto ocorra.

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De outra banda, o Estado que pratica o laicismo, a realidade é outra. Nesse modelo, o ponto de partida é o de que a religião não tem importância fundamental para a comunidade moral, tendo o grau de sua importância elegível individualmente na consciência de cada um, desde que não se afaste do nível da consciência particular. Em outras palavras, a religião é para ser vivida em casa e no íntimo de cada um; da porta para fora, o Estado não tem dever nenhum de garantir a expressão da religiosidade de ninguém – pelo contrário, tem o dever de suprimi-la. O laicismo, praticado na França, relega a religiosidade ao espaço privado, por entendê-la de pouca ou nenhuma importância para a cidade, na persecução do bem comum. É aí que entra Maritain.

De fato, um autor muito recorrente no livro de vocês é o filósofo francês Jacques Maritain. Qual a importância dele para o atual debate sobre direito religioso?

O francês Jacques Maritain, entre diversas obras, escreveu o clássico O Homem e o Estado, em que, em suma, demonstra que a soberania estatal (aquela que nos obriga como cidadãos) provém do corpo político que busca o bem comum de todos, enquanto a Igreja não participa do corpo político, de onde o Estado retira sua soberania.

A Igreja (aqui leia-se qualquer religião) e o Estado perseguem o bem comum da sociedade em ordens distintas, em um modelo laico. O Estado persegue o bem comum na ordem da imanência; a Igreja, na ordem da espiritualidade. Percebe-se, então, que a Igreja tem um fim em si mesmo, não sendo parte integrante do corpo político e do Estado, daí sua independência e a importância de protegê-la das ações de natureza estatal, papel que cabe ao Direito Religioso.

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E é nessa perspectiva que Maritain desenvolve seu pensamento das relações existentes entre a Igreja, o Estado e o corpo político, fixando os princípios que regem tais relações, sendo fundamental para se pensar o Direito Religioso como área autônoma do Direito, bem como se entender o modelo de laicidade aberta ou colaborativa praticada no Brasil.

No capítulo 2, vocês tratam de um assunto sempre muito polemizado: o ensino religioso. Destaco uma passagem da página 200: “a Constituição brasileira reconhece a necessidade da presença curricular do ensino religioso, reconhecendo a importância da ordem espiritual do aluno”. Como oferecer ensino religioso em uma escola pública? Isso não afrontaria o fato de vivermos em sociedade plural com diversas expressões religiosas?

De fato, vivemos uma sociedade plural, e de diversas expressões religiosas. Enquanto sociedade, justamente, por nossa formação histórico-social, temos a representatividade de mais de 90% da população professando a fé cristã – nas suas várias tradições. Assim sendo, e considerando a premissa de que a religião de um povo informa os valores de cultura que, por sua vez, dão forma à civilização, temos de ver o Estado – laico colaborativo – limitado à esfera imanente da vida humana e, portanto, reconhecendo a dimensão espiritual da existência, informando quais são estes valores que fazem da sociedade brasileira a civilização que ela é.

O ensino religioso, por sua vez, não é de caráter proselitista; esta faculdade é garantida ao cidadão, à sociedade civil organizada na forma de organizações religiosas e demais agrupamentos confessionais. Tampouco quer ser uma política afirmativa de “cotas” religiosas, que dividiria a sociedade a pretexto de privilegiar uma “diversidade religiosa”. A diversidade é filha da liberdade. Assim sendo, a escola pública, que pela Constituição é direito de todos e dever do Estado, também deve oferecer acesso aos valores religiosos que informam os elementos característicos da nossa sociedade plural.

O tema da isenção tributária para igrejas também é outro que gera muita discussão. No primeiro turno das eleições, o candidato João Amoêdo demonstrou apoio à possibilidade de as igrejas pagarem impostos. Afinal, igreja deve ou não pagar impostos?

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A laicidade colaborativa consagrada no artigo 19, I da Constituição, e em quase mais uma dezena de outros dispositivos constitucionais, não deixa dúvidas da importância da religiosidade e da honra que merece a dimensão espiritual da existência entre nós. É um direito humano fundamental, ligado diretamente ao senso de dignidade, ter sua fé protegida.

Nossa experiência de formação nacional produziu aqui um modelo único deste relacionamento entre o Estado e a religião. Construímos um modelo inovador de cooperação entre dois corpos políticos que buscam o bem comum em esferas distintas: um na imanência e o outro na transcendência, como ensinado por Jacques Maritain.

É neste espírito que se deve analisar a imunidade tributária religiosa. Seu fundamento é a preservação da laicidade brasileira, ao garantir que o Estado não possa exercer poder de império na atividade eclesial ou religiosa, desde as mais simples travas burocráticas até o que deva ou não constar de sua Constituição Eclesiástica, verdadeiro nome do que se chama de “estatuto social” pelo Código Civil.

Podemos dizer que a imunidade funciona como o muro divisor entre estas ordens cooperativas, a espiritual e a secular. Garante o devido freio a eventuais abusos estatais na ordem social, em particular das organizações religiosas. Mostra, de forma prática, que o Estado também tem limites. E encontra o limite justamente em um “igual”, ou seja, em uma esfera tão importante para a organização da vida em sociedade quanto ele. Qualquer entendimento diverso será conter a Igreja dentro do Estado.

Cumpre destacar que a imunidade tributária é direcionada apenas aos impostos, que são a única espécie de tributo que não tem quaisquer vinculações estatais, ou seja, o Estado “gasta onde quiser”, diferentemente das demais espécies de tributos, vinculados como taxas e contribuições – estas, sim, a Igreja paga, exatamente por serem atividades vinculadas, uma espécie de “prestação de serviços” do Estado ao contribuinte.

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Num país viciado em estatismo, como o Brasil, a imunidade tributária religiosa é um dos raros exemplos de dinheiro aplicado diretamente pelas pessoas na atividade-fim da organização sem a intermediação do órgão governamental. Logo, a igreja não deve pagar impostos.

Há no Congresso Nacional uma frente parlamentar conhecida como “bancada evangélica”. Como vocês avaliam a atuação de políticos religiosos? Não haveria riscos de ferirem o Estado Laico?

Novamente, o Estado brasileiro tem seu fundamento na dignidade humana. Este fundamento se traduz nas várias liberdades garantidas aos cidadãos, em especial a liberdade de crença e expressão religiosa. Assim sendo, não apenas crer e cultuar, mas viver e atuar na sociedade de acordo com este sistema de fé. Por que, então, limitar a expressão religiosa a determinadas esferas da vida social, como a política?

O aumento de agentes políticos que representam os segmentos identificados com determinadas confissões religiosas é, ao meu ver, o mais próximo que conseguimos chegar de uma espécie de “distrito eleitoral”: políticos fortemente identificados com segmentos que os elegem e fiscalizam muito de perto. Outros setores da sociedade também estão politicamente estruturados, mas nenhum com o espectro público tão difuso quanto o religioso; é mais que um simples grupo de pressão, mas uma parcela da sociedade real, palpável, com endereço fixo e capilar desde os grandes centros urbanos até rincões do Brasil profundo.

Afinal, este é mais uma afirmação de nossa laicidade aberta e colaborativa. Talvez isso assuste, e gritar “o Estado é laico” vira uma tentativa de barrar a verdadeira influência que este povo (aproximadamente 30% da sociedade brasileira) representa.

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