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Livraria Cultura falência
Decisão da justiça afirma que Livraria Cultura forneceu informações incompletas no processo de recuperação judicial.| Foto: Hugo Harada/Arquivo/ Gazeta do Povo

Na quinta-feira passada, 9 de fevereiro de 2023, a Livraria Cultura teve falência decretada pela Justiça de São Paulo. Ao saber da notícia, escrevi no meu Twitter: Fim de uma era. Fiz amigos, levei minha esposa (ainda quando namorávamos) para tomar café, comprei muitos livros, lancei meu primeiro livro. Isso só pra registrar a minha relação com essa grande livraria!

De fato, minha relação com a Livraria Cultura é de afeto pelo ambiente e por livros. Por que teria outra relação romântica com o lugar? Tenho memórias.

Claro que algumas hipóteses poderiam ser levantadas aqui e ali. Mas sou incapaz de levantar a cortina para ver o que havia nos bastidores do mercado livreiro. Para entender um pouco mais acerca do fim da Livraria Cultura, entrevistei Dionisius Amendola, que trabalha com o “negócio de livros” há mais de 20 anos. Além de um grande amigo, Dionisius faz excelentes comentários sobre arte e cultura no Canal Bunker do Dio, do YouTube.

O que significa o fim da Livraria Cultura para a cultura?

Em termos objetivos, significa o fim de um espaço comercial que, mesmo no seu pior momento, tinha como foco a cultura, seja pela venda de livros, discos, filmes, quadrinhos, seja pela realização de shows, peças de teatro, debates, sessões de autógrafos com autores e artistas. A Livraria Cultura foi o lugar por onde passaram nomes como José Saramago, David Lynch, Lou Reed, Art Spiegelman, onde bandas como a Traditional Jazz Band realizavam shows semanais, onde autores nacionais de todo o país encontraram um lugar, uma casa.

Isso sem contar, claro, o fechamento de postos de trabalho, piorando a situação daqueles que trabalham no mundo livreiro, que veem falir um lugar de tantas possibilidades de crescimento profissional.

“A Cultura era um oásis para os apaixonados por livros, algo que até o momento nenhuma livraria atual consegue realizar, nem mesmo a Amazon.”

Dionisius Amendola

O que o mercado de livros perde com a morte de uma gigante nacional?

Para além da perda econômica, pois por mais que se fale hoje da Livraria Cultura como uma empresa que deu calote, quebrou editoras etc. (o que é verdade), também é preciso lembrar que por mais de 60 anos a Livraria Cultura era uma das livrarias mais respeitadas do país, sempre em dia com suas obrigações financeiras para com editores, funcionários etc. Por anos e anos muitas editoras cresceram e se mantiveram em atividade graças à parceria com a Livraria Cultura. Autores independentes, que não tinham espaço nas redes convencionais, como Saraiva e Nobel, tinham na Livraria Cultura um espaço privilegiado.

A Livraria Cultura era uma empresa que, em geral, pagava seus funcionários com salários acima da média do mercado.

Outro ponto importantíssimo é que a Livraria Cultura foi a principal livraria do país quando se pensava em títulos importados. Lá você encontrava títulos recém-lançados na Europa e nos EUA, encontrava livros e editoras de países como Espanha, Itália, França, Alemanha... Era um oásis para os apaixonados por livros. Detalhe que esse é um serviço que até o momento nenhuma livraria atual consegue realizar, nem mesmo a gigante Amazon.

O que mudou com a chegada da Amazon ao Brasil? Há relação com a falência da Livraria Cultura?

A iminência da chegada da Amazon causou turbulência e preocupação; pior, fez com que a Livraria Cultura adotasse estratégias equivocadas para enfrentar a “lojinha do Bezos”. Em vez de investir e valorizar o que ela tinha de melhor – seu material humano e sua expertise no mercado livreiro (nacional e estrangeiro), a Livraria Cultura tentou ser uma “loja de tudo”, menos uma livraria. Investimentos errados, como na comercialização de e-readers e produtos eletrônicos, não apenas não trouxeram resultado, como ainda descaracterizaram a Livraria Cultura.

Qual o papel das pequenas livrarias?

O mesmo de uma pequena editora independente. Tentar chegar ao público leitor e mostrar que há um valor na troca, na conversação, no debate de ideias. Mas o grande problema das pequenas é que elas estão, em primeiro lugar, concentradas em cidades como São Paulo; e competem entre si pelo mesmo público, mas não há tanta gente assim no país que valorize as livrarias, que goste de ler, que se disponha a pagar o preço de um livro etc. Esse público é minúsculo, e infelizmente não vai sustentar todas essas livrarias independentes.

O que o fim da Livraria Cultura nos ensina? E qual seu legado? 

Que a hubris (desmedida) é algo que derruba a todos, especialmente os maiores, aqueles que se acham intocáveis, inquebráveis. Falando em termos mais pragmáticos, que crescer é algo que precisa ser feito com atenção aos seus valores, à sua história, ao que fez você ser quem é. Que por vezes é preciso dar dois passos para trás para dar um para a frente. E que não se deve acreditar em “planilheiros de Excel”, em executivos que pouco ou nada sabem sobre o que sua empresa significa, o que a tornou o sucesso que ela é.

“Em vez de investir e valorizar o que ela tinha de melhor – seu material humano e sua expertise no mercado livreiro (nacional e estrangeiro) –, a Livraria Cultura tentou ser uma ‘loja de tudo’, menos uma livraria.”

Dionisius Amendola

O legado da Cultura, o verdadeiro, está nas gerações de livreiros e profissionais que formou, pessoas que hoje trabalham ou montaram livrarias, que estão nas editoras, ou mesmo em áreas diversas do mercado livreiro, mas que aprenderam lá um ofício. Ele também está nas estantes, nas grandes ou pequenas bibliotecas pessoais espalhadas por este país afora. Pode olhar nas estantes da sua casa, Razzo; aposto que você vai lembrar que muitos dos livros que estão nelas foram comprados na Livraria Cultura. Assim como você, muito mais gente formou sua vida intelectual, seu imaginário, com os livros comprados lá.

Qual foi sua experiência na Livraria Cultura?

Eu trabalhei na Livraria Cultura por 15 anos – 15 anos de bons e maus momentos, de muita coisa realizada e muito estresse, de aprendizados constantes, de dedicação e, por vezes, desalento. Comecei como vendedor em 2000, fui assistente de compras e depois comprador (da Livraria Cultura do Market Place) – algo como subgerente e gerente de loja, depois gerente comercial das áreas de livros nacionais e importados para toda a rede. Aprendi muito, muito mesmo lá, foi uma escola profissional como poucas. Aliás, uma coisa que precisa ser dita: por anos a Livraria Cultura foi o lugar onde caras como eu, uns aristocratas da sarjeta, que não teriam futuro em nenhuma empresa mais “certinha”, encontraram seu lugar no mundo e puderam aprender e provar ser capazes de tocar uma das melhores livrarias não apenas do Brasil, mas da América Latina.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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