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O paradoxo da intolerância
| Foto: Dimitris Vetsikas/Pixabay

Por incrível que pareça, há defensores da democracia que propõem limites para liberdade de expressão e de discussão. Na prática, esses limites viriam na forma de monitoramento e moderação de conteúdo que circula nas redes sociais. Ou seja: proibir a presença de certos perfis considerados perigosos para a sociedade em redes como Twitter, YouTube, WhatsApp e afins com o objetivo de garantir a saúde da democracia.

O pressuposto teórico que justifica tal prática é simples: extremistas querem destruir a democracia. Se deixarmos suas ideias circularem livremente nas redes, a democracia está em risco. Em nome da democracia, não se deve tolerar o intolerante. Mas quem são os extremistas? Ora, quem pratica discurso de ódio. E quem pratica discurso de ódio? Todo aquele que não pratica o nosso discurso de amor.

Eis o círculo vicioso: tenho certeza de que meu discurso é de amor, paz e justiça. Meus adversários pensam diferente de mim. Logo, tenho absoluta certeza de que o discurso deles é de ódio e guerra. Democracia é o regime de amor e justiça. Meus adversários pregam ódio. Logo, meus adversários não podem participar democraticamente da democracia.

Quem são os extremistas? Ora, quem pratica discurso de ódio. E quem pratica discurso de ódio? Todo aquele que não pratica o nosso discurso de amor

À primeira vista, o paradoxo da tolerância faz bastante sentido: se deixarmos o intolerante muito à vontade na sociedade democrática, a tendência é ele destruir a democracia. Portanto, a sociedade aberta, plural e democrática não pode ser tão aberta e democrática assim. Quem monitora o intolerante? Em sua monumental obra A sociedade aberta e seus inimigos, Karl Popper propôs a seguinte reflexão:

“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.”

Curiosamente, os epígonos da democracia liberal, adeptos de um cordão sanitário para proteger a sociedade aberta de seus inimigos, suprimem o restante do trecho de Popper, que é muito claro a respeito de quem são os intolerantes e como eles devem ser combatidos:

“Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, ao começar por criticar todos os argumentos e proibindo seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos ou pistolas. Devemo-nos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos exigir que qualquer movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que qualquer incitação à intolerância e perseguição seja considerada criminosa, da mesma forma que no caso de incitação ao homicídio, sequestro de crianças ou revivescência do tráfico de escravos.”

Se você não é capaz de combater expressões consideradas intolerantes com argumentos racionais e mesmo assim deseja suprimir o intolerante de participar do debate público, o intolerante, muito provavelmente, é você

Se podemos combater expressões filosóficas consideradas intolerantes com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, pode ser atitude imprudente suprimir pela força essas expressões supostamente intolerantes. Noutras palavra: se você não é capaz de combater expressões consideradas intolerantes com argumentos racionais e mesmo assim deseja suprimir o intolerante de participar do debate público, o intolerante, muito provavelmente, é você.

Segundo Popper, o direito de combater o intolerante pela força deve ser bem limitado. O intolerante se caracteriza, justamente, por aquele que, em vez de responder com argumentos, opta por punhos e pistolas. Em vez de participar do debate com argumentos, prefere usar a força. Para Popper, à margem da lei devem estar aqueles movimentos que promovem a incitação ao homicídio, o sequestro de crianças e a retomada do tráfico de escravos.

Quem tem medo da liberdade de expressão e discussão é quem não quer assumir responsabilidades pelas próprias ideias no debate público; ou, o que é pior, quer assumir as responsabilidades pelos outros, ditar o que os outros podem ou não podem pensar. Ironicamente, na mão dos defensores da democracia liberal, o paradoxo da tolerância se transforma em paradoxo da intolerância: a intolerância limitada pelo uso da força dos tolerantes leva ao aparecimento da intolerância.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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