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O poeta Fernando Pessoa caminha pela Baixa, em Lisboa.
O poeta Fernando Pessoa caminha pela Baixa, em Lisboa.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

A natureza ama esconder-se
(Heráclito).

Reconheço que poesia não está muito na moda. Mesmo assim, eu gostaria de dizer o que penso a respeito do ofício do poeta. Antes disso, confesso que já arrisquei alguns versos. Em língua portuguesa, meu poeta favorito é Fernando Pessoa. Menciono-o porque foi o meu primeiro contato com o mundo das artes. O primeiro livro que comprei na vida foi O eu profundo e os outros eus – isso foi, talvez, em 1996. Fui fascinado por Álvaro de Campos: Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Ou: À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo...

Não fui para a frente como poeta. Parei nos 20, sem ressentimentos. Não vou me revoltar com a sociedade, falar em dívida histórica ou achar que o mundo me deve alguma coisa por não ter talento para escrever poesia. Ter talento para poesia bem poderia ser um direito, não? Um dilema existencial: se você pudesse substituir liberdade de expressão por talento poético – sei lá, estar uns dois níveis abaixo de Dante Alighieri ou Charles Baudelaire –, o que você escolheria? Olha, sinceramente...

Cheguei a rabiscar uns ensaios filosóficos sobre poesia. Sim, fazer poesia é isto: ofício sagrado. Não mero domínio do verbo ou manejo da gramática. Não adiante ter liberdade de expressão, wi-fi grátis e perfis em quatro redes sociais diferentes. Ser poeta significa ter o domínio do ato criador. O resto é imitação barata e condicionamento social. Fazer jus a ideia cristã de imago Dei não é fácil. Nunca me agradou pensar em Deus como um grande arquiteto – uma metáfora que tem origem no demiurgo platônico do diálogo Timeu. Quando reflito a respeito de que tipo de criador estávamos falando quando falamos em Deus, penso nEle como um poeta.

Defendo, com Hegel, o seguinte: arte é intuição e a missão do artista é a consagração do instante

Nesse sentido, o ato do artística é criador: o poeta literalmente cria mundos possíveis. Seria a poesia um mero jogo de linguagem? Duvido. Há alguma coisa além do que despejar sentimentos no papel.

De qualquer maneira, para uma reflexão a respeito da poesia, é impossível se esquivar do que um bom poeta faz. Bom, segundo Hegel, a poesia corresponde à síntese superior de uma unidade espiritual. E quem sou eu para discordar de Hegel? Para o filósofo alemão, a arte atinge a verdade absoluta pela intuição. No seu jargão filosófico, Hegel diz que a poesia está em condições de exprimir não só a interioridade subjetiva, mas também as particularidades da vida exterior. Gosto da ideia. Em Schelling, por exemplo, há uma função sacramental na arte: o homem reencontra uma harmonia pedida, imemorial.

Como alguém dedicado à filosofia e um pseudopoeta fracassado, eu sempre quis escrever sobre poesia. Quando não se tem talento poético, pelo menos a gente pode perguntar sobre as questões fundamentais da criação artística. Aqui não existe esse papo furado de “lugar da fala”. Um poeta não reivindicará para si o direito de só ele falar de sua poesia. A propósito, levar a sério a ideia de lugar de fala é declarar a sentença de morte da poesia, porque é declarar morte à compaixão.

O objetivo de um ensaio não consiste em prescrever a verdade de uma coisa em sua totalidade. Um ensaio, nos preciosos limites desse gênero, busca propor a experiência de um itinerário de reflexões. Essa mistura entre o tom pessoal e o conceito faz do ensaio um dos melhores recursos de convite à filosofia, mas a poesia é superior ao ensaio filosófico neste pequeno detalhe: atingir a verdade absoluta.

Para compreender o ofício do poeta – afinal, é disso que se trata meu texto de hoje – quando afirmamos que há nele algo de sagrado, nada se pode fazer se não se sabe o que significa sagrado. E nada se pode dizer se não pensarmos o que está relacionado diretamente ao ofício do artista. Mas o que faz um artista? No fundo, essas questões, que parecem simples à primeira vista, são bastante complicadas. Talvez por serem irrelevantes para a discussão política. De qualquer forma, vou arriscar.

Para sair dessa enrascada filosoficamente voluntária, vou refazer minha pergunta sobre poesia nos seguintes termos e ver para onde eles nos levam: o que significa dizer que o ofício do artista é sagrado? O que significa sagrado?

Aqui recorro a Mircea Eliade. Em O sagrado e o profano, o filósofo da religião escreve: “a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano”; que “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo diferente do profano”; que “o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência”; que a “potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia” e que “o sagrado está saturado de ser”. São palavras quase poéticas.

Levar a sério a ideia de lugar de fala é declarar a sentença de morte da poesia, porque é declarar morte à compaixão

Então, o que é a arte e qual a missão do artista? Defendo, com Hegel, o seguinte: arte é intuição e a missão do artista é a consagração do instante. Octavio Paz, poeta mexicano e um dos mais respeitados críticos literários do século passado, no seu belíssimo estudo sobre a Imagem poética, apresenta uma espantosa definição para poesia; ele diz: “a poesia é entrar no ser”. Esse simples enunciado é o principal acesso ao que há de sagrado no ofício do artista. A partir dele que é possível resumir que a poesia significa consagrar o instante.

O sentido do sagrado na poesia está no fato de que nesse “instante” poético já não discernimos mais o infinito e a eternidade no âmbito do particular e do transitório. Contudo, para que filosofar se podemos entender isso com a poesia de William Blake:

Ver o Mundo em um grão de areia
E um Céu em uma flor selvagem
Segurar o Infinito na palma da mão
E a Eternidade em uma hora.

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