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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Discriminação

Contra a teoria identitária da justiça

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A sede da Suprema Corte dos EUA. (Foto: Shawn Thew/EFE/EPA)

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A decisão unânime da Suprema Corte dos Estados Unidos, que deu razão à mulher heterossexual Marlean Ames em sua denúncia de discriminação profissional, me parece um raro gesto de lucidez em meio ao colapso normativo promovido pela justiça identitária. A corte afirmou que os critérios de prova para ações de discriminação devem valer para todos os indivíduos, independentemente de raça, gênero ou orientação sexual. Uma obviedade, não? E, no entanto, essa obviedade precisa ser reafirmada, pois desmonta um dos mitos mais perigosos do imaginário contemporâneo: a ideia de que só certos grupos podem ser vítimas legítimas de preconceito.

Esse mito, alimentado por décadas de doutrinação identitária, sustenta que o racismo só atinge negros, a discriminação sexual só alcança LGBTs, a misoginia só se volta contra mulheres. Quando brancos, heterossexuais ou homens sofrem exclusão deliberada por sua identidade, ouvem que se trata de “reação histórica”, “reparação” ou, no pior dos casos, “discriminação reversa”. Essa expressão é mais do que equívoca: é cúmplice. Reconhece que houve injustiça, mas a justifica com estatísticas e memória coletiva.

O conceito de discriminação reversa tenta purificar a injustiça por meio de um suposto acerto de contas. A exclusão aparece como justa porque atinge alguém do grupo outrora dominante. Só que isso não é justiça. É revanche. E essa revanche inverte o que deveria ser o fundamento do Direito: dar a cada um o que lhe é devido enquanto pessoa, não enquanto rótulo identitário. A equidade depende da avaliação dos atos, não das biografias, nem das experiências históricas mais dolorosas.

O conceito de discriminação reversa faz um suposto acerto de contas, com uma exclusão que aparece como justa porque atinge alguém do grupo outrora dominante. Só que isso não é justiça. É revanche

Sempre me pareceu evidente que a proteção jurídica de um indivíduo decorre do simples fato de ele ser pessoa. Nada além disso. Nenhuma injustiça pretérita, por mais brutal, pode autorizar a deformação do presente. Quando o tribunal passa a julgar com base em pertencimentos coletivos, transforma-se em cartilha ideológica. A dignidade jurídica deixa de ser princípio para a barganha histórica.

A justiça identitária julga não o corpo que o comete, não o dolo. Uma mesma conduta torna-se lícita ou ilícita conforme quem a pratica ou sofre. E isso destrói qualquer concepção razoável de justiça e, portanto, de sociedade.

O caso de Marlean Ames mostra isso de forma precisa. Ao denunciar o ocorrido, sua queixa foi rejeitada com a alegação de que “heterossexuais não sofrem discriminação”. Ora, isso é o que se espera de um comitê de militância, não de um tribunal. A decisão da Suprema Corte corrige esse desvio e restabelece um princípio elementar: qualquer ser humano pode sofrer e praticar injustiça. A dor não tem identidade fixa. Sofrer não é monopólio de ninguém. Estatística não confere dignidade. Algozes nunca faltam – há sempre um à disposição. Em outras palavras, cada povo acha que sofre mais. Cada estatística acha que mede tudo. Cada tirano acha que faz justiça.

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Para contrastar com esse clima de ressentimento institucionalizado, trago um exemplo que sempre me comoveu. O músico Daryl Davis passou décadas se aproximando de membros da Ku Klux Klan. Não para confrontá-los, para ouvi-los. Sua trajetória conseguiu persuadir dezenas deles a abandonar o ódio racial. O que o movia era uma pergunta simples: “Como podem me odiar se nem me conhecem?” Essa pergunta, dita no tom de quem está mais interessado em compreender do que em vencer, resume tudo. Davis não exigiu cotas, nem sentenças. Não pediu reparações históricas. Pediu escuta e ofereceu presença.

É esse gesto simples que desarma qualquer tipo de identitarismo. Ele mostra que a justiça mais profunda nasce do encontro entre sujeitos, da coragem moral, da intersubjetividade real – e não da classificação compulsória de culpados e vítimas, da sinalização de virtudes.

Quando o tribunal passa a julgar com base em pertencimentos coletivos, transforma-se em cartilha ideológica

Por fim, é bem alarmante a infiltração de categorias sociológicas no campo do Direito. Termos como “violência simbólica” ou “lugar de fala” podem ajudar a descrever estruturas sociais (como categoria sociológica, são bem discutíveis). Contudo, não servem para julgar casos concretos. Quando um juiz decide com base em terminologia de movimentos sociais, ele rompe com o devido processo legal. Ele já não julga: interpreta o mundo segundo um manual ideológico.

O Direito não pode se tornar sociologia aplicada. O juiz não é analista de sistemas de opressão. Seu ofício é mais modesto – e mais nobre: aplicar a regra segundo o princípio da imparcialidade. Quando o tribunal cede ao apelo das causas, perde sua razão de ser. Torna-se instrumento de liturgia social. Sacraliza feridas e santifica identidades.

A justiça só sobrevive quando se recusa a se dobrar ao ressentimento. O princípio da justiça é universal. Recusar isso é legitimar a injustiça em nome da história. É apagar o futuro com a pena do passado. E nenhuma democracia sobrevive a esse tipo de justiça ressentida.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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