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“A Greve”, por Robert Koehler.
“A Greve”, por Robert Koehler.| Foto: Wikimedia Commons

Pessoalmente, considero a teoria do conflito de Thomas Sowell — economista e filósofo americano ligado ao liberalismo — muito promissora para o entendimento de sociedades que se pretendem democráticas e livres. Sowell expôs sua visão de conflito no livro Conflito de Visões (É-Realizações, 2011, 277 p). Não preciso dizer o quanto recomendo a sua obra para os leitores interessados nas origens ideológicas das atuais lutas políticas. O livro faz uma primorosa gênese histórica dos fundamentos de muitas ideias que hoje circulam na praça pública.

Se pensarmos a democracia como um valor acerca de como se deve exercer o poder político e a participação de homens livres no espaço público, o conflito não pode ser simplesmente rechaçado como uma ameaça à ordem democrática, mas como a força configuradora dessas sociedades livres. Mas que tipo de conflito devemos valorizar e qual devemos combater?

Para entender essa simples pergunta é preciso considerar que a vida política nas democracias liberais não pode abrir mão de uma certa concepção de conflito. O conflito é o motor da história, mas não qualquer conflito. Por exemplo, não me refiro a conflitos físicos e a atitudes de violência cega. No entanto, negar o elemento de dissonância na política não passa de ingenuidade dos idealistas. Pessoas pensam e agem de maneira divergentes umas das outras e o espaço público não deve ser confundido com um cômodo doméstico.

Ao contrário do que o Marx do Manifesto Comunista ensinou e exortou, o motor da história não é o conflito de classes, mas o conflito de visões

O conflito ao qual me refiro é o conflito de crenças e opiniões. Sociedades democráticas são tecidas por esse tipo de disputa. É o que torna o ambiente público mais rico e dinâmico. O brilho da democracia é entender que a política não pode propor soluções últimas para as angústias humanas. Trata-se de um elemento inerente à liberdade democrática a pluralidade de visões de mundo — o pluralismo irredutível e agonístico, como falava o filósofo Isaiah Berlin.

Ao contrário da teoria do conflito de Karl Marx, que acredita na luta de classes como motor da história; ou da teoria de Maquiavel, que contrapõe o desejo desmesurado dos grandes pela dominação absoluta em conflito com o desejo do “povo” de não sofrer esse domínio, a concepção de Thomas Sowell não procura desvendar a dinâmica da realidade. Para ele, “a realidade é muito complexa para ser compreendida por qualquer mente”. Por isso, “as visões são como mapas que nos guiam através de um emaranhado de complexidade desconcertantes”.

Nessa obra em especial, ele não está interessado em desvelar, como muitos filósofos acreditam ser possível, os segredos de como os eventos do mundo são constituídos independentemente das mentes humanas. Antes disso, seu compromisso filosófico será responder “quais pressupostos fundamentais existem por trás das tão variadas visões ideológicas de mundo em disputa nos tempos modernos”. Sowell se encarrega de fazer uma análise crítica das diversas formas de como o mundo pode ser compreendido, e não de dizer como o mundo é.

Minha interpretação da obra de Sowell é a seguinte: trata-se de uma defesa da liberdade, pois não há exercício mais instigante e libertador do que o de buscar os fundamentos que sustentam as nossas crenças, sobretudo as crenças políticas. Questionar sem receios nossas ideias não seria o primeiro passo para uma consciência que se pretende livre? Não foi exatamente assim que o velho Sócrates provocava seus interlocutores na Grécia antiga? Não foi assim, no meio da democracia, que a filosofia nasceu? Conjugar filosofia, democracia e liberdade consiste em um dos mais importantes desafios intelectuais, já que o filósofo não pode se isolar demais do mundo, assim como não pode se comprometer demais com o poder.

Sem romantismos baratos, o fato é que não há exercício filosófico se não estiver intimamente associado à liberdade interior, o palco dos mais importantes conflitos humanos. No fundo, Thomas Sowell é um grande defensor desse tipo de liberdade na medida em que não abre mão de pensar que o conflito se passa, primeiro, na visão que temos da realidade e não na pretensão de falar em nome da realidade.

No livro, Sowell começa mostrando que um conflito de visão não pode ser a mesma coisa que um conflito de interesses. Não estamos no âmbito dos desejos, mas no interior da construção da própria história. O que define “interesse” é a experiência direta do que se deseja, sentimento fornecido por um “simples impulso emocional”. Ninguém duvida da obviedade gerada pela experiência de um simples impulso emocional. Por sua vez, o que define “visão” é o fato de que podemos nos dar o luxo de não ter muita clareza a respeito do que se passa com os pressupostos de nossas crenças, e essa falta de consciência de seus fundamentos encontra uma série de razões que derivam das características teóricas das próprias visões.

Segundo Thomas Sowell, portanto, o que define “visões” é que elas “têm uma consistência lógica surpreendente, mesmo que aqueles dedicados a essas visões raramente tenham estudado essa lógica. As visões tampouco são limitadas a fanáticos e ideólogos. Todos nós temos visões. Elas são as moldadoras silenciosas de nossos pensamentos”, argumenta. Se “visões” possuem estrutura lógicas surpreendentes e moldam nossos pensamentos, então elas atuam em diversos campos da vida humana.

Nesse sentido, além de moldarem pensamentos e atitudes, visões literalmente dominam a história humana. Ao contrário do que o Marx do Manifesto Comunista ensinou e exortou, o motor da história não é o conflito de classes, mas o conflito de visões. Descobrir isso é muito mais libertador para a consciência dos indivíduos do que ter de viver prisioneiro da esperança utópica de um dia encontrar a tal da sociedade sem classes.

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