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A personagem Ellie no videgame The Last of Us parte 2.
A personagem Ellie no videgame The Last of Us parte 2.| Foto: Divulgação/Sony

Assim que foi lançado, fiz de tudo para não acompanhar as críticas e os fãs. Consegui, embora eu soubesse do desafio que enfrentaria: estar entre aqueles que odiaram ou entre aqueles que o consideram o melhor jogo já produzido, eis a questão.

O problema de The Last of Us parte 2 é que a primeira parte, lançada em 2013 e que conta a história de Joel e Ellie logo após o surto de uma doença que transforma os humanos em monstros canibais e devasta todas as instituições sociais, tem uma história dramática praticamente perfeita.

Pense no desafio de dirigir sequências de Rocky: Um Lutador, de Rambo: First Blood, de Robocop: o policial do futuro, de Alien: o oitavo passageiro e por aí vai. Pense em Sófocles ter de escrever Édipo em Colono depois de Édipo Rei. Pois bem, com The Last of Us parte 2 não seria diferente. E, na minha humilde opinião, os diretores e roteiristas Neil Druckmann e Kurt Margenau conseguiram entregar uma obra tão boa quanto a primeira.

A estética de The Last of Us, com fotografia e música impecáveis, proporciona experiência única de tensão entre o grotesco e o sublime, entre alucinante brutalidade e paz

The Last of Us parte 2 é um jogo impressionante em vários aspectos: estéticos, políticos, éticos e existenciais – isso para não mencionar aqueles aspectos técnicos que até os mais críticos reconhecem como impecáveis: jogabilidade, imersão, efeitos visuais e sonoros; enfim, tudo o que um bom jogo de videogame precisa ter para ser, pelo menos, divertido. Ou seja: você pode odiar os rumos da história e destino dos personagens, mas dificilmente não encontrará boas horas de diversão jogando essa obra-prima produzida pela Naughty Dog.

Com relação ao enredo, o ponto mais discutido e que divide fãs, três coisas realmente me chamaram atenção: o equilíbrio entre violência e experiência estética; o recurso narrativo da lembrança; e a troca de perspectiva moral entre os personagens.

O jogo é violento e não dá pra jogar com as crianças na sala. No entanto, no meio de toda aquela violência estilo The Walking Dead e filmes do S. Craig Zahler, você tem magníficos momentos de experiência estética.

Desesperado para conseguir sobreviver, de repente você se depara com paisagens, animais e situações inusitadas de afeto, cumplicidade, amizade e esperança. A estética de The Last of Us, com fotografia e música impecáveis, proporciona experiência única de tensão entre o grotesco e o sublime, entre alucinante brutalidade e paz.

Há visita em sinagoga, aquário, museu natural, planetário e teatro. No meio da desolação completa, da terra devastada, do caos absoluto, há uma carta, uma pintura, uma foca, um sorriso, um abraço, um diálogo entre amigos a respeito do sentido da vida, a inutilidade do dinheiro, a fé e, surpreendentemente, a possibilidade de você pegar um violão e arriscar uns acordes.

Um recurso narrativo que eu aprecio muito para a construção de personagens em jogos desse estilo é a “rememoração”. Em Ghost of Tsushima e Uncharted 4, há momentos riquíssimos desse tipo. E The Last of Us parte 2 não decepcionou. Esse recurso é eficiente para criarmos vínculos afeitos com os personagens e seus motivos morais mais íntimos. Desde descobrir o medo de altura de um personagem ou o fato dele não saber nadar.

A ação narrativa dos personagens principais em The Last of Us parte 2 é, aparentemente, bem simples: vingança. Mas, para compreendermos o sentido da “vingança” que consome os personagens, precisamos voltar a pontos decisivos do passado deles. Não é só matar para sobreviver e para se vingar. Há busca de reconciliação com o passado. Há culpa a ser expiada.

Os dilemas morais vividos pelos personagens principais em busca de vingança fazem da trama deste jogo uma experiência dramática catártica no sentido aristotélico de suscitar temor e piedade. O destino de personagens secundários intensifica ainda mais essa experiência.

Eu fiquei muito satisfeito com a troca de perspectivas durante o jogo. Sem entrar em detalhes, no arco inicial você joga com a personagem Ellie e, depois, com Abby. Porque você é jogado em dois motivos existenciais muito significativos.

Os dilemas morais vividos pelos personagens principais em busca de vingança fazem da trama deste jogo uma experiência dramática catártica no sentido aristotélico de suscitar temor e piedade

Quando você assume o ponto de vista de Abby, o giro narrativo é tão impactante e ao mesmo tempo faz muito sentido. Essa troca de posição narrativa foi uma das melhores experiências em jogos que eu já tive. No Red Dead Redemption 2 isso acontece de forma mais sutil, porque dentro do mesmo ambiente moral de Arthur Morgan e John Marston.

Já no caso de The Last of Us não, pois a reviravolta é brutal. E você é colocado numa situação em que todo motivo moral de Ellie será desconstruído bem ali diante de você na medida em que compreende os motivos de Abby – as duas têm motivos mais do que suficientes para se vingarem. E em nenhum momento você deve escolher entre o bem e o mal, isto é, sem conduzir o espectador a qualquer tipo de relativismo moral. Muito pelo contrário, é o bem que se impõe como uma ordem superior fundamental para a resolução do destino da história tanto da protagonista quanto da antagonista.

São dois motivos genuínos, não obstante o desejo de vingança e reconciliação consigo mesmo dentro de um mundo já completamente devastado pelo mal.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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