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Charlton Heston em “Os Dez Mandamentos”, de 1956.
Charlton Heston em “Os Dez Mandamentos”, de 1956.| Foto: Divulgação

Os filmes bíblicos são a introdução de muitos cristãos, na infância ou juventude, a importantes histórias da Bíblia. E alguns desses filmes bíblicos são verdadeiras obras primas da arte cinematográfica. Convidei para escrever uma introdução crítica destes filmes que retratam passagens e histórias bíblicas Jefferson Oliveira, graduado em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense e em Teologia pelo Seminário Martin Bucer, mestre em Teologia pelo Puritan Reformed Theological Seminary, e professor de Teologia Moral no Seminário Martin Bucer.

Uma definição de cinema bíblico

“O cinema não tem fronteira, ele é uma fita de sonho” – essa foi uma das maneiras como Orson Welles definiu a chamada sétima arte. Ele, que atuou e dirigiu num dos maiores filmes de todos os tempos, Cidadão Kane, certamente tinha o direito de comentar a respeito. Seja retratando uma batalha que decidirá o futuro de todos num épico, ou a força inquebrantável do amor num romance, ou mesmo toda a motivação para a vida que uma biografia (real ou não) possa passar, um bom filme gera um forte envolvimento emocional.

Já no começo do cinema muitas produções eram realizadas utilizando obras de literatura conhecidas. Assim havia uma identificação mais fácil do público, o que era ideal, já que, na falta de diálogos, o conhecimento prévio da história poderia ajudar no entendimento do que se passava em cena. Um caso bem conhecido disso é L’Inferno, de 1911, baseado na obra de Dante. O filme tem atuações dedicadas, de maneira que o gesticular do corpo transmitisse o que se passava. É inegável, porém, que a compreensão é facilitada por um conhecimento do que se trata.

Dessa forma, o cinema bíblico já se apresentava nos primórdios e oferecia um conjunto de histórias que já começavam facilmente compreensíveis, e com grande potencial para tocar emocionalmente seus espectadores. Isso explica o grande número de diretores que se interessaram por esse tipo de produção. O diretor premiado Robert Aldrich, que dirigiu Sodoma e Gomorra, disse, comentando esse filme: “Todo mundo deveria dirigir um filme bíblico uma vez”.

No início do cinema, os filmes bíblicos ofereciam um conjunto de histórias que já começavam facilmente compreensíveis, e com grande potencial para tocar emocionalmente seus espectadores

E já aqui precisamos estabelecer o que é cinema bíblico. Alguns tendem a tratar como “cinema bíblico” toda e qualquer produção que tenha uma visão religiosa cristã como influência. Porém o cinema bíblico trata de filmes que retratam uma história bíblica, em geral dando um enquadramento épico para aqueles acontecimentos. Há ainda os casos de filmes em que o personagem principal não é bíblico, mas interage com outros que o são e com os eventos históricos a ele associados, como em O quarto sábio, de 1985, em que um outro mago do oriente (interpretado por Martin Sheen) também tinha a intenção de ver o recém-nascido Jesus, mas não conseguiu, e passa anos tentando encontrá-lo. Desse modo, vamos visitar um pouco a história desses filmes.

Os primórdios e uma mudança de eixo

O primeiro filme desse tipo de que se tem notícia foi La vie et la passion de Jesús-Christ, de 1898. Para se ter uma ideia, os irmãos Lumière apresentaram seu cinematógrafo ao mundo havia apenas três anos, e um ano antes foi feita a primeira filmagem do Brasil. No filme vemos algumas cenas da vida de Jesus. Seu nascimento é representado quase como uma pintura, com todos quase parados a observar. Já a ida ao Egito é representada por uma marcha da Sagrada Família passando em frente a uma esfinge. Entre os milagres é mostrado o momento em que o filho da viúva é ressurreto, já nos preparando para a morte de Jesus, que ocupa algum tempo de tela; sua ressurreição ocorre rapidamente, já sem créditos.

Isso deu início a muitas experiências e tentativas de apresentar histórias bíblicas. Houve ainda outras tentativas de contar a biografia de Jesus Cristo. Ferdinand Zecca e Lucien Nonguet produziram Vie et Passion du Christ em 1903. Este filme é reconhecido por introduzir cada cena com o título do evento na história cristã, como “Natividade” e “Paixão”. A mãe do cinema francês, Alice Guy-Blanché, fez La Vie du Christ em 1906. Neste trabalho há algumas inovações técnicas; é muito reconhecido por sua fotografia e por ideias narrativas únicas, como a forma pela qual o gestual de Jesus ajuda a interpretar a que evento a cena está associada, criando assim uma forma de encaminhar e desenvolver a narrativa. Ambos são também marcantes por sua duração: num cinema que ainda se esforçava por produzir filmes longos, as obras têm 44 e 33 minutos respectivamente, o que faz delas superproduções do período.

Já nos primeiros anos do século 20, o eixo do cinema bíblico começou a se mover para os Estados Unidos. Porém a França ainda produziu Quo Vadis? em 1901 e 1910 (ambos baseados no livro famoso publicado alguns anos antes); Samson et Delila”, em 1902; e L’Enfant Prodigue (“O Filho Pródigo”), em 1907. Ainda na Europa, foi produzido Salome, de 1908, filme inglês baseado na obra de Oscar Wilde, por sua vez baseada no relato da morte de João Batista.

A primeira produção bíblica norte-americana foi um curta de 1907, sobre Ben-Hur; tal qual Quo Vadis?, é uma ficção que conta com personagens bíblicos e que ganhou muitas adaptações nos primórdios do cinema, conforme veremos futuramente. Além deste filme, os diretores surpreendiam em algumas ocasiões produzindo filmes que contam histórias bíblicas não tão conhecidas. É o caso de A Filha de Jefté: Uma Tragédia Bíblica, de 1909. A narrativa bíblica é bem obscura em seus detalhes, pois trata-se de um pai que, após prometer sacrificar o primeiro que saísse de sua casa ao Senhor em troca de uma vitória, fica aturdido quando é sua única filha aquela que realiza a condição. O filme termina da mesma forma que o relato bíblico, um pouco ambíguo quanto ao cumprimento do juramento, entretanto mais direcionado para a hipótese de morte da moça, já que, enquanto ela chora, um véu é posto sobre ela.

O filme dividia o rolo com outro evento bíblico; no caso, O Julgamento de Salomão, sobre o julgamento feito pelo rei hebreu no caso das duas mães que disputavam uma criança. Ainda naquele ano foram lançados cinco filmes que, juntos, formavam A Vida de Moisés. Ao todo, a produção tinha 50 minutos. Outro filme de uma personagem obscura é Judite de Betulia, de 1914, que apresenta inovações técnicas quanto a cortes de câmera, em especial para fazer as cenas de execução com certo nível de realismo. Ainda poderíamos citar duas versões americanas de Salomé, lançadas em 1918 e 1923.

Em 1912, os americanos fazem sua primeira grande produção a contar a história de Jesus: Da Manjedoura à cruz ou Jesus de Nazaré, com cenas rodadas em Israel. O filme alterna cenas bíblicas com texto, como era comum em filmes bíblicos, mas usando versículos bíblicos, numa forma de deixar a própria Bíblia explicar a história da qual o filme veio. Um fato curioso é que ele foi escrito pela atriz que interpretou a Virgem Maria no filme: Gene Gautier se tornaria uma das primeiras diretoras do cinema americano.

No mesmo ano foi lançado o filme Adão e Eva, uma obra singular. Começa usando a filmagem de pinturas e esculturas enquanto faz paráfrase de versículos descrevendo os primeiros elementos da Criação. Depois, a filmagem passa a ser de animais, de uma forma que parece um documentário. Então surgem os personagens-título, e o filme tem a preocupação de mantê-los sempre distantes para evitar uma exposição desnecessária no período em que viviam nus. A aparição de Deus e seu diálogo com suas mais importantes criaturas são apresentados por meio de uma maior iluminação sobre um Adão aturdido (e, é claro, escondido) e uma Eva desolada. Alguns desses métodos de filmagem seriam usados em outras produções no futuro.

No período dos filmes mudos surgiu um diretor que seria para sempre associado aos grandes filmes bíblicos: Cecil B. DeMille

Nessa década ainda são dignos de nota os filmes O Príncipe Escolhido ou a Amizade de Davi e Jônatas, de 1917; e José na terra do Egito, de 1914, sobre esses importantes personagens. Um caso surpreendente é Intolerância, que, dentre três histórias dentro de seu tema, conta o assassinato de bebês em Belém. Foi dirigido por D. W. Grifith, conhecido por dirigir O Nascimento de uma Nação, marcado por defender a Ku Klux Klan. O filme é uma tentativa do diretor de afirmar que estava sofrendo intolerância por seu material anterior.

Uma década de produções maiores e o desastre

No ano de 1921 foi lançado A Rainha de Sabá, tristemente considerado perdido – algo que ocorre com muitos filmes destes períodos iniciais do cinema. Um caso semelhante ocorreu com o Ben-Hur de 1925, que foi considerado perdido até os anos 80, mas teve uma de suas versões encontrada e restaurada.

Também nesse período dos filmes mudos surgiu um diretor que seria para sempre associado aos grandes filmes bíblicos: Cecil B. DeMille. Seu primeiro trabalho no universo bíblico foi Os Dez Mandamentos, a primeira versão do diretor para essa história, lançada em 1923. Trata-se de um filme em dois períodos, com parte dele se passando no século 20 e outra parte com a história contada no Êxodo. Este filme abriu a chamada de “trilogia bíblica” de DeMille, que inclui Rei dos Reis, de 1927, naturalmente um filme sobre a vida de Jesus; e O Sinal da Cruz, de 1932, sobre Constantino, o imperador romano que legalizou o cristianismo como religião dentro do Império Romano. Vale ressaltar que este último não é bem um filme bíblico, mas é geralmente contabilizado aqui por sua temática religiosa. Além disso, O Sinal da Cruz diverge dos outros dois por ser do período em que o diretor passou a produzir filmes com áudio. Ainda falaremos de outras produções desse importantíssimo diretor.

Um filme que precisa ser mencionado na história do cinema bíblico, ainda que não por sua qualidade cinematográfica, é A Arca de Noé, de 1928. Essa produção tem uma história incomum para a época, ao tentar fazer uma comparação entre o mundo do dilúvio e a Primeira Guerra Mundial. Para tanto, começa com a saída de Noé e sua família da arca e o mundo que reconstruíram; depois, apresenta o mundo pré-guerra e a vida de um jovem americano em viagem na Europa; e, por meio da fala de um pastor que conta sobre a arca, retorna para a história de Noé. Os atores se revezam interpretando personagens modernos e, simbolicamente, seus correspondentes bíblicos. Essa forma de narrativa, e também a troca de personagens com um mesmo ator, terminou por confundir o público e assim enfraquecer o filme.

A Arca de Noé é mais lembrado pelas denúncias feitas contra o diretor, Michael Curtiz, que numa busca intensa de realismo submeteu seus atores a perigos reais. George O’Brien, intérprete de Jafé, filho de Noé, contou para um livro que, na cena em que seu personagem é cegado, aproximaram um ferro quente de seus olhos e ele realmente ficou cego pelos dias seguintes. Em outro momento, o diretor usou uma faca de verdade em uma cena de esfaqueamento e só permitiu que o ator fosse atendido depois de concluída a filmagem. Um ator caiu de uma plataforma alta após orientações erradas do diretor, quebrando as duas pernas. O caso mais grave ocorreu na gravação da cena do dilúvio. O diretor derramou milhares de litros de água sobre atores, figurantes, animais e cenários, sem se preocupar com sua segurança. Três pessoas morreram, uma quebrou a perna, 35 ambulâncias foram necessárias para levar todos os feridos ao hospital, e houve casos de pneumonia após a filmagem, como no caso da atriz Dolores Costello. Não houve sanções ao estúdio pelo desastre, mas a partir daí as regras de segurança para os atores se tornaram mais rígidas. Dentre os figurantes da cena do dilúvio estavam os futuros astros Andy Devine, Ward Bond e John Wayne. A versão que foi para o cinema é considerada perdida, mas uma outra versão foi lançada já sem as cenas de mortes.

Após o desastre de A Arca de Noé, os filmes bíblicos se tornaram menos comuns nos cinemas americanos. Os que havia não eram produções de grandes estúdios, ou eram curtas-metragens, ou produções focadas em um nicho. A Arca do Pai Noé é um curta de 1933 com 8 minutos, produzido por Walt Disney como um musical animado da história bíblica. Ló em Sodoma, também de 1933, conta a história da destruição das duas cidades pela ira de Deus e a forma como Ló escapou com suas filhas. O filme é experimental, usando imagens duplicadas e movimentos diferentes na câmera para expor os espaços celestes e as cenas de destruição. Trata-se de algo bem diferente.

Em 1936, Os Pastos Verdejantes tornou-se famoso por ser um dos primeiros filmes a ter um elenco completamente formado por atores negros. Nele, uma professora lê o livro de Gênesis para algumas crianças, e logo vemos os eventos do livro sendo encenados. O livro chega à libertação do povo de Israel no Egito, já no livro de Êxodo. Também podemos citar O Grande Mandamento, de 1939, produzido por um pastor e em que vemos a história de conversão de dois homens que ouviram Jesus contar sua famosa parábola do Bom Samaritano. A história acaba muito focada no conceito de conversão, mas tem boas caracterizações e atuações boas.

A retomada

O cinema bíblico já não era interessante para grandes estúdios. Desde A Arca de Noé, os movimentos em direção ao cinema bíblico tinham sido de nicho, não uma tentativa grandiosa. Na década de 30, Cecil B. DeMille tentou retornar às produções bíblicas. Ele comprou os direitos de uma ópera de 1877 sobre Sansão e Dalila, e tinha tudo acertado com a Paramount Pictures para produzir o filme. Contudo, houve uma renegociação do contrato, que o realizador, em autobiografia posterior, creditou à sensação dos executivos do estúdio de que essa era apenas uma história de escola dominical. Apenas dez anos depois DeMille conseguiu levar essa história para o cinema, e uma das principais razões foi a inserção, no roteiro, de elementos de uma ficção escrita por Vladimir Jabotinsky. O autor escreveu uma versão da história em que Dalila era a irmã mais nova da primeira esposa de Sansão, algo que não está no texto bíblico. Desse modo, o filme ganhou contornos mais dramáticos, o que permitiu apresentá-lo não apenas ao público de épicos bíblicos, mas também como uma obra que tocaria qualquer público. O próprio diretor sempre defendeu que não fez alterações no texto bíblico, uma vez que não há informações quanto ao nome da irmã da primeira esposa de Sansão. O filme foi um potente sucesso, e iniciou uma retomada nos filmes bíblicos que representa a “era de ouro” desse tipo de cinema.

Os Dez Mandamentos, de 1956, além de ter atuações memoráveis, em especial a de Charlton Heston, também ajudou Cecil B. DeMille a reforçar sua imagem como o grande diretor do cinema bíblico, mudo ou falado

Uma das demonstrações de que houve essa “era de ouro” é uma contagem de filmes do período. Hollywood produziu mais de dez títulos bíblicos na década de 50. No ano de 1951, foram lançados Davi e Bate-Seba e Quo Vadis. O primeiro é a adaptação de uma das mais dramáticas narrativas sobre Davi, e que demonstra que uma das regras para as adaptações do período é que haja uma história de amor marcante, com um evento bíblico que chame muito a atenção. O segundo foi a versão norte-americana de um filme que já tinha sido feito na Europa, e foi novamente gravado algumas vezes depois. Quo Vadis foi um sucesso comercial e, para muitas pessoas, se tornou a versão definitiva do livro polonês que lhe deu origem. A atuação de Peter Ustinov como Nero não é esquecida, e lhe rendeu um Globo de Ouro.

Em 1952 houve um descanso dos filmes bíblicos, mas em 1953 foram lançadas quatro produções. Pecados de Jezabel teve uma recepção ruim do público, apostando na fórmula do drama em meio aos eventos bíblicos. Escravos da Babilônia também não conseguiu se tornar tão lembrado. Salomé não teve a obra de Oscar Wilde como primeira inspiração, mas conta com elementos dela em alguns momentos, principalmente a famosa “dança dos sete véus”. O filme conseguiu algum retorno financeiro, mas foi atacado pela crítica especializada. O grande sucesso daquele ano foi O Manto Sagrado. Também baseado em um livro, o filme conta a história do soldado que ficou com o manto de Jesus por sorte. Este filme foi planejado para ter uma continuação, chamada Demétrius e os Gladiadores – a primeira vez no cinema bíblico que se produziu um filme já pensando na continuação. O ano 1954 teve Dia de Triunfo e O Cálice Sagrado, mas nenhum dos dois foi elogiado ou obteve sucesso.

O ano de 1955 contou com apenas um filme sem tanto sucesso, chamado O Filho Pródigo. A obra foi criticada pela atuação de seu protagonista e por não ter sido capaz de mover o público a um interesse real. No ano seguinte também foi lançado apenas um filme bíblico, mas um dos mais marcantes dentre eles: Os Dez Mandamentos, de 1956, além de atuações memoráveis, em especial a de Charlton Heston, também ajudou DeMille a reforçar sua imagem como o grande diretor do cinema bíblico, mudo ou falado.

Os Dez Mandamentos tornou-se um grande sucesso, uma obra muito referenciada tanto por filmes posteriores sobre Moisés quanto por outros filmes bíblicos na fórmula que DeMille inventou para o cinema. Em suas obras, percebemos que os filmes bíblicos ganham especial interesse pela capacidade de contar uma história com tons épicos, elementos moderadamente sensuais, uma história com elementos não bíblicos, mas que não contradizem a narrativa, e uma moral muito evidente e que se adequa aos ensinamentos bíblicos.

Os dois filmes de DeMille apresentaram um estilo muito copiado, contraposto e parodiado em produções que vieram depois. A década de 50 demarcou uma era de ouro para o cinema bíblico, mas as décadas seguintes ainda viram muitos filmes com essas bases.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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