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A igreja cristã num tempo de mudanças
| Foto: Cifer88/Pixabay

Vivemos numa época caracterizada por relativismo, individualismo, autoritarismo e violência. Segundo o relatório da instituição Freedom House, em 2022 mais de 5 bilhões de pessoas viviam sob ditaduras plenas ou autocracias eleitorais. O número tem crescido nos últimos anos. Atualmente, 7 em cada 10 pessoas no mundo vivem em um país considerado sem liberdade e sem democracia. Apenas 42% da população mundial vive em regiões livres.

Há uma semelhança muito grande entre o nosso tempo e a época em que o cristianismo surgiu. O que se vê é o ressurgimento de uma cultura pagã, muito parecida com a do tempo em que Jesus Cristo e os apóstolos viveram – ainda que este novo paganismo autoritário despreze as antigas virtudes romanas, tais como clemência, dignidade, respeito, humanidade, verdade, liberdade, justiça, nobreza, modéstia e coragem.

A igreja cristã hoje é abertamente desprezada, tendo de lutar por sua sobrevivência em muitos cantos do mundo. Essas mudanças que estão ocorrendo na sociedade têm tido poderosa influência sobre a doutrina cristã, a pregação e a forma de ser igreja.

“Admirável mundo novo”

É comum percebermos no meio cristão a influência deste novo paganismo, que leva muitas comunidades a adotar liturgias em que o sentimento de reverência cede lugar à descontração, e o bem-estar do fiel se torna mais importante que a sua humilhação e dedicação a Deus. O Senhor Deus é transformado numa espécie de força, disponível sempre que necessário, mas que não incomoda, pois não exige nenhum tipo de mudança de comportamento ou santidade.

Nesse contexto, em que a pregação da Palavra de Deus muitas vezes é desprezada, a música produz um elevado clima emocional, em que se propõe uma mensagem que se apoia vagamente no Evangelho, mas que, na verdade, é baseada numa experiência emocional dos crentes, sem um apelo à razão.

A igreja cristã hoje é abertamente desprezada, tendo de lutar por sua sobrevivência em muitos cantos do mundo

A crítica à razão e à instituição, além de promover divisões nas igrejas e uma desconfiança quanto aos ministros cristãos, as tem deixado sem defesa para as novas tendências teológicas. Por isso, os cristãos de hoje não veem dificuldades ou problemas em assumir conceitos e palavras que fazem parte de outros grupos religiosos, inclusive dos que são o oposto do cristianismo.

Podemos ver essa descaracterização do evangelho naqueles que acreditam em simpatias, em benzedeiras, em copos de água em cima do rádio ou da televisão, ou na comercialização de “óleo ungido” e “água do Rio Jordão” etc. Algumas pessoas viajam quilômetros apenas para orar com alguém que tem supostos dons especiais, ou uma oração mais poderosa. Infelizmente, em algumas comunidades, o discurso se prende à obsessão pelo demoníaco. A vida cristã passa a ser movida por eventos supérfluos e, como se não bastasse, a mensagem da prosperidade, com seu vocabulário sem significado, tem substituído a simplicidade bíblica, centrada em Cristo Jesus.

Há comunidades ensinando que, para uma pessoa ser salva, ela precisa cumprir uma elaborada lista de itens, da qual constam receber o Senhor Jesus como único salvador, participar das reuniões de libertação para se ver livre do diabo, buscar o batismo com o Espírito Santo, andar em santidade, ler a Bíblia todos os dias, evitar más companhias, ser batizado, frequentar as reuniões de membros da igreja, ser fiel nos dízimos e nas ofertas, orar sem cessar e vigiar. E, mesmo cumprindo toda esta lista, no entender dessas lideranças eclesiásticas, um cristão pode vir a perder a salvação. Entretanto, as Escrituras claramente nos ensinam que homens e mulheres pecadores são declarados justos apenas pela fé, apenas em Cristo; parece que os dirigentes desses movimentos religiosos nunca leram as epístolas de Paulo aos Romanos e aos Gálatas, assim como a epístola aos Hebreus.

É por isso que podemos sugerir que a igreja cristã tem sido influenciada pelo contexto cultural em que vivemos, preso às emoções e individualidades.

Por outro lado, no começo do século 19, como fruto do Iluminismo, surgiu na Europa um novo movimento teológico, chamado de liberalismo teológico, que tem tido forte impacto sobre escolas e seminários teológicos no Brasil, onde são formados os futuros clérigos. O liberalismo teológico se tornou uma espécie de dossel sob o qual se abrigam teólogos de várias tendências, muitas vezes amorfas, mas que compartilham dos mesmos pressupostos básicos, racionalistas, antissobrenaturalistas – por não crerem numa revelação sobrenatural ou em qualquer tipo de milagre – e, no fim, ateístas.

Esses compartilham o desprezo pelos enunciados cristãos mais básicos, as doutrinas da Trindade, da inspiração das Escrituras, do nascimento virginal de Cristo, de sua morte salvadora e ressurreição e do seu retorno final, triunfante. Essas doutrinas passaram a ser severamente criticadas ou claramente negadas, numa tentativa de reinterpretar o cristianismo histórico.

Tal movimento chegou ao Brasil, trazido por missionários estrangeiros, em meados de 1960, e as principais denominações históricas brasileiras – presbiterianos, batistas, metodistas e luteranos – acabaram sofrendo forte influência nessa mudança teológica, ocorrida sobretudo nos seminários teológicos, mas com reflexos nas igrejas locais. Estes liberais, imitando a velha heresia gnóstica, tentaram reinterpretar o cristianismo, justamente para não assumirem em público a diferença entre essas duas cosmovisões antagônicas. Por consequência, teólogos oriundos desse movimento acabam usando linguagem ambígua, para permanecerem ligados às igrejas e seminários das principais denominações no país. Mas, como J. Gresham Machen escreveu no começo do século 20, “liberalismo não é cristianismo”.

Essas várias tendências são extremamente perigosas, porque a igreja cristã, que sempre sofreu ameaças de ser seduzida pela cultura de seu tempo – e por vezes sucumbiu a ela –, mais uma vez está diante do mesmo desafio. A partir desse quadro, podemos perceber que o resultado de tal capitulação será uma espiritualidade superficial e sem significado, num contexto em que a igreja cristã está correndo risco de deixar de ser igreja cristã e evangélica, estabelecida sobre a mensagem do evangelho da graça livre de Deus.

A igreja cristã, que sempre sofreu ameaças de ser seduzida pela cultura de seu tempo – e por vezes sucumbiu a ela –, mais uma vez está diante do mesmo desafio

Precisamos lembrar que as antigas confissões de fé, seguindo os ensinamentos das Escrituras, afirmavam que a pureza de uma igreja se mede pela fidelidade com a qual o Evangelho é pregado (o que inclui as doutrinas centrais do cristianismo) e os sacramentos celebrados (o que aponta para a teologia prática das igrejas), e não pela quantidade de membros agregados. Nas palavras de Bento XVI, “em todas as mudanças que se podem adivinhar, a Igreja encontrará de novo a sua essência e com convicção naquilo que sempre esteve no seu centro: a fé no Deus Trino, em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, na Presença do Espírito até o fim do mundo. Na fé e na oração ela reconhecerá novamente os sacramentos como a adoração de Deus”. O que se pode fazer para a igreja permanecer fiel ao evangelho?

Uma direção para a igreja cristã

Se desejamos ser uma igreja fiel, precisamos redescobrir as doutrinas centrais da fé cristã. Precisamos estudar todas as doutrinas bíblicas, buscando saber quais são aquelas cujo conhecimento é vital para nossa salvação e quais são aquelas em que podemos ter opiniões diferentes.

Um ponto importante que se deve ter em mente é que o que determina uma tradição denominacional ou mesmo a fé da igreja cristã não é a posição de um teólogo em particular, mas as confissões adotadas em concílios ou por segmentos representativos da igreja cristã. Nesse sentido, a fé cristã é definida a partir do Credo dos Apóstolos, do Credo de Niceia e pela Definição de Calcedônia. E a fé evangélica, construída e dependente da primeira, é determinada por documentos como a Confissão de Augsburgo, o Catecismo de Heidelberg, a Confissão Belga, a Confissão de Fé de Westminster e a Declaração Teológica de Barmen.

O cristianismo histórico é confessional desde o seu princípio: “Portanto, todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus” (Mt 10, 32-33). Nesse sentido, se desejamos uma renovação da igreja que opere uma mudança na sociedade, precisamos confessar hoje as antigas doutrinas cristãs e evangélicas como afirmadas nos antigos credos e confissões de fé.

Então, a partir desse ponto, devemos valorizar a pregação e ensino na igreja e nos seminários teológicos, enfatizando a centralidade e autoridade das Escrituras, a doutrina da Trindade – que nos ensina que Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo –, os ofícios e a obra de Cristo – verdadeiro Deus, verdadeiro homem –, o pecado e a culpa, a expiação, a regeneração, a fé e o arrependimento, a justificação, a santificação como obra do Espírito Santo, julgamento, céu e inferno, e, em tudo isso, denunciando o cristianismo hipócrita e nominal. Nossa atenção precisa voltar-se para o fato de que é a verdadeira doutrina que produz a verdadeira unidade na igreja cristã.

Agora, uma palavra especial para aqueles que têm servido à igreja na pregação e no ensino. Não basta apenas uma recuperação teológica, pois, se nossa teologia não serve para ser pregada, então ela é uma má teologia. Precisamos recuperar uma pregação bíblica, que seja expositiva, doutrinária e prática. Precisamos de pregadores expositivos, que busquem pregar toda a Palavra de Deus, e saibam que somente o Espírito Santo, ligado à Palavra, pode salvar pecadores e edificar a igreja.

A prática da pregação de Martinho Lutero em Wittenberg é uma boa ilustração da centralidade da Palavra de Deus no ministério cristão. Na Igreja do Castelo, no domingo, às 5 horas, ele pregava nas Epístolas Paulinas; ainda no domingo, às 9 horas, pregação nos Evangelhos Sinóticos; e no domingo à tarde, pregação baseada nos temas do Catecismo menor; nas segundas e terças, pregação nos temas do Catecismo menor; na quarta, pregação no Evangelho de Mateus; na quinta e na sexta, pregação nas Epístolas Gerais; e, no sábado, pregação no Evangelho de João. Aqui temos um bom modelo de pregação numa congregação, onde estilos literários bíblicos diferentes são bem combinados na pregação, e unidos com aulas catequéticas. Por isso, podia se afirmar de Lutero que ele pregava ensinando e ensinava pregando. Ele e outros que têm seguido esse método de pregação buscam enfatizar “todo o desígnio de Deus” (At 20,27), pregando toda a Escritura para o povo de Deus. Portanto, os clérigos precisam se comprometer a ensinar toda a Palavra: não apenas aquilo de que gostam mais ou que lhes é mais familiar, mas toda a Palavra de Deus.

Então, por causa do elevado conceito que as Escrituras têm de si mesmas, por entender que a exposição da Palavra é o meio de salvação, e que o homem, por ter a imagem de Deus,é um ser com capacidades racionais, nossos pais espirituais priorizaram a pregação das Escrituras. Pois, como se lê na Segunda Confissão Helvética, “a pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus”. A pregação bíblica não pode ficar de fora dos cultos, pois é parte integrante da adoração. Quando o fiel ensino e a pregação da Palavra são negligenciados, sempre surgirão superstições e crendices dentro da igreja cristã.

É a verdadeira doutrina que produz a verdadeira unidade na igreja cristã

Os ministros da Palavra devem ser pregadores práticos, lidando com os casos de consciência. Assim sendo, eles devem aplicar a Escritura àqueles que ainda estão em seus pecados, aos que estão lutando com alguma doença ou passando pela “noite escura da alma” e aos que estão crescendo na fé.

Precisamos ser igrejas bíblicas, criativas e relevantes. Ao definirmos igreja, pode-se lembrar de que, em termos confessionais, duas marcas caracterizam a verdadeira igreja: a Palavra de Deus pregada e ouvida em toda a sua pureza e a correta administração dos sacramentos do batismo e da ceia do Senhor. O Novo Testamento oferece limites para ser uma igreja, mas dentro desses há bastante liberdade para adaptações às mudanças que aparecem em diferentes lugares e épocas.

Partindo desse ponto, precisamos reafirmar, de forma criativa, a vida em comunidade. Para isso, devem ser encorajados meios para incluir os vários dons espirituais dos cristãos no ministério de nossas igrejas, lembrando que cada crente é importante e tem um ministério necessário no corpo de Cristo.

Ao mesmo tempo, todos os membros deveriam estar conscientes de suas responsabilidades de mútua submissão e autodoação na igreja em que participam. A igreja existe para nutrir relações de cuidado entre seus membros. É preciso cultivar amizades profundas, para imitar a igreja do Novo Testamento.

O ensino bíblico sobre a aliança precisa ser redescoberto. Em termos bíblicos, um pacto ou aliança é um vínculo de sangue graciosa e soberanamente administrado, na medida em que “sem derramamento de sangue, não há remissão” (Hb 9,22). Portanto, as Escrituras registram a promessa do mediador pactual, o Senhor Jesus Cristo, no Antigo Testamento, e o cumprimento de tal juramento, no Novo Testamento. Essa doutrina funciona como o tema unificador das Escrituras Sagradas.

Em termos práticos, a aliança é o vínculo dos crentes na comunidade da fé. Se, de um lado, pecadores são chamados soberana e graciosamente por Deus para a salvação, estas novas criaturas, agora renovadas pelo Espírito Santo, são incluídas numa comunidade que está ligada por um vínculo pactual gracioso e soberano com o próprio Deus, por meio de Jesus Cristo, e entre si mesma. Portanto, é preciso lembrar a esta comunidade da aliança que o Senhor tem prazer em cumprir suas promessas pactuais, assim como exige obediência às exigências pactuais estabelecidas por Ele mesmo.

O preço do discipulado e a disciplina precisam ser enfatizados. Portanto, precisamos recuperar o ensino daquilo que Dietrich Bonhoeffer chamou de graça custosa, que exige tudo daqueles que ouvem o chamado evangélico para seguir o Senhor Jesus Cristo:

“A graça preciosa é o evangelho que há de se procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem de orar, a porta à qual se tem de bater. Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao homem, e é graça por, assim, lhe dar a vida; é preciosa ao condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador. Essa graça é sobretudo preciosa por tê-lo sido para Deus, por ter custado a Deus a vida de seu Filho – ‘fostes comprados por preço’ – e porque não pode ser barato para nós aquilo que para Deus custou caro. A graça é graça sobretudo por Deus não ter achado que seu Filho fosse preço demasiado caro a pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus.”

Quando o fiel ensino e a pregação da Palavra são negligenciados, sempre surgirão superstições e crendices dentro da igreja cristã

Durante quase 2 mil anos, os Salmos foram centrais para a devoção da igreja cristã, ensinando os fiéis a orar, em resposta ao Deus que se revela, uma confissão e glorificação ao Deus trino, criador, redentor e restaurador. Na igreja primitiva, na igreja medieval e durante a Reforma protestante, quando um clérigo queria ensinar sua congregação sobre a oração, pregava nos Salmos. Portanto, as igrejas cristãs devem redescobrir o saltério como o livro de oração dos crentes, a escola onde se aprende a orar, sempre de novo. E esta oração pode e deve ser aprendida por meio da leitura orante dos salmos em comunidade.

As Escrituras, dessa forma, não são apenas a perfeita revelação de Deus, mas guia do cristão em suas lutas e vitórias – não apenas atos históricos passados e distantes, mas eventos vivos, aqui e agora. Portanto, atentemos para o que Bento XVI afirmou: “O futuro da Igreja pode e vai sair daqueles cujas raízes são profundas e que vivem da plenitude pura de sua fé. [...] O futuro da Igreja, uma vez mais e como sempre, será remodelado pelos santos – pelos homens –, ou seja, por aqueles cujas mentes sondam mais profundamente do que os slogans do momento, que veem mais do que os outros veem, porque suas vidas abraçam uma realidade mais ampla”.

Uma oração

Num tempo de mudanças tão profundas e desafiadoras, temos diante de nós uma grande tarefa: a de, na dependência do Espírito, orar, pregar e ensinar, de tal forma que vejamos em nosso tempo uma igreja pura, ortodoxa, santa e relevante. O Livro de orações comum expôs toda nossa responsabilidade e toda a nossa esperança na tarefa de proclamarmos com força renovada a fé evangélica:

“Todo-poderoso e eterno Deus, que pelo Espírito Santo presidiste o concílio dos abençoados apóstolos, e tem prometido, por teu Filho Jesus Cristo, estar com tua Igreja até o fim do mundo; [...] Livra-nos do erro, da ignorância, do orgulho e da parcialidade; e confiados em tua grande misericórdia, te imploramos, dirige, santifique e governe em nosso trabalho, pelo grande poder do Espírito Santo, a fim de que o confortante evangelho de Cristo seja verdadeiramente pregado, verdadeiramente recebido e verdadeiramente seguido em todos os lugares, para a derrota do reino do pecado de Satanás e da morte; até que ao fim todas as tuas ovelhas dispersas, sejam reunidas em um só rebanho, e se tornem participantes da vida eterna; pelos méritos e morte de Jesus Cristo, nosso salvador. Amém.”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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