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Cena de "Batman v Superman: A Origem da Justiça".
Cena de “Batman v Superman: A Origem da Justiça”.| Foto: Divulgação

A trilogia sobre o Batman, o Cavaleiro das Trevas, baseado no personagem da DC Comics, formada por Batman Begins (2005), O Cavaleiro das Trevas (2008) e O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), contribuiu para estabelecer um novo padrão para filmes de super-heróis. Inspirada em histórias em quadrinhos tais como Batman: ano um, de Frank Miller; O homem que cai, de Dennis O’Neil; Batman: terra de ninguém, de Greg Rucka, Chuck Dixon, Larry Hama e outros; Batman: filho do demônio, de Mike Barr; A piada mortal, de Alan Moore; e A queda do Morcego, de Doug Moench, Chuck Dixon e Alan Grant, a épica guerra de Batman contra o crime em Gotham City é retratada de forma realista, trágica e sombria. Todos os três filmes foram sucesso de público e crítica, aclamados por sua direção, atuações, roteiros, música e sequências de ação.

A origem da justiça

Em 2016 foi lançado Batman v Superman: A Origem da Justiça – Ultimate Edition. Este foi o primeiro filme a retratar Batman e Superman juntos, assim como foi a primeira representação de Mulher-Maravilha, Flash, Aquaman e Cyborg em filme. Batman v Superman é uma continuação de O Homem de Aço, de 2013, e retrata Superman como um salvador temido e questionado, diante do qual as pessoas reagem com amor e ódio após a batalha em Metrópolis, ocorrida 18 meses antes. Nessa batalha, Superman derrotou o General Zod a um preço altíssimo, e salvou a humanidade da destruição. Após a batalha, o governo dos Estados Unidos permitiu que Superman atuasse de forma independente, sob a condição de não se voltar contra a humanidade.

No filme, Superman é apresentado como um tipo de Messias, um salvador, que tem poder para intervir e resgatar poderosamente pessoas da destruição e da morte

Em Batman v Superman, Batman já está lutando contra o crime em Gotham City por 20 anos, e é retratado como um soldado cansado da longa guerra travada na noite, e ainda atormentado pela morte dos pais, retratada em Batman Begins e reprisada neste filme. Há a percepção por parte de Batman de que, por mais que ele lute e alcance vitórias, estas são fugazes, e ele não consegue mudar a cidade. Agora, Batman, que marca a ferro quente os bandidos, opera com o assentimento da polícia de Gotham City, enquanto o público parece aprovar suas ações e existência. Esta é uma inversão da premissa das histórias da DC Comics, em que Superman geralmente opera junto com o Estado, respeitando o establishment, enquanto Batman é o pária que age constantemente nas sombras, muitas vezes sendo perseguido pelo governo, e sob escrutínio da imprensa e do público, como naquela que talvez seja a mais destacada história em quadrinhos de Frank Miller, Batman: o Cavaleiro das Trevas. Tendo testemunhado o caos e a morte da batalha de Metrópolis, Batman percebe Superman como uma ameaça para a humanidade.

Um mundo politicamente complexo

O roteiro de Batman v Superman inclui uma série de dilemas filosóficos e teológicos, mas os debates políticos, ainda que complexos, não são tão desenvolvidos como no excepcional The Dark Knight Rises.

No nível político, são mencionados o terrorismo; o Ground Zero; a repercussão dos super-heróis nas várias esferas da sociedade, como entretenimento, política e religião; os limites do Estado, na medida em que há aqueles que consideram extremamente perigoso que Superman aja sem qualquer tipo de controle, que deve ser exercido, no caso, pelo governo; o governo usando armas de destruição em massa, movido pelo medo e sem medir consequências; grandes corporações manipulando as informações e colocando em lados opostos aqueles que poderiam ser aliados; como também conglomerados interferindo no país, no governo e nas agências de inteligência e segurança nacional.

Há também uma emocionante cena em que Batman e Superman encontram um terreno comum em suas mães. Uma cena destaca a vulnerabilidade de Superman, ao pedir a Batman: “salve Martha” – e que lembra que até visões políticas conflitantes ainda têm pontos de contato e podem operar juntas contra um poderoso inimigo externo.

Christus Victor

No campo teológico, as imagens cristãs e messiânicas são dominantes no filme. Durante a batalha de Metrópolis, um dos personagens encara a morte de pé, com dignidade, proferindo tocante oração: “Deus do Céu... Criador do Céu e da Terra... Tenha piedade de minha alma”. E, em seu momento de maior perigo, fica claro que Martha Kent carrega consigo uma cruz.

Nesse filme, Superman é apresentado como um tipo de Messias, um salvador, que tem poder para intervir e resgatar poderosamente pessoas da destruição e da morte. O niilismo supõe que o homem criou Deus à sua própria imagem, mas o filme inverte esse tropo, retratando o homem, Lex Luthor, criando o diabo, Doomsday/Apocalypse, “uma deformidade tão odiosa, [...] a profanação sem nome”, em resposta à presença de Deus. Também – e talvez por isso – é enfatizada no filme a antiga teoria cristã da expiação conhecida como Christus Victor. Ela enfatiza Cristo como o vitorioso; nela, o que ocorreu na morte de Jesus Cristo na cruz foi, na verdade, uma batalha cósmica vitoriosa contra o diabo e o mal. Entre os defensores dessa posição estavam Orígenes de Alexandria e Gregório de Nissa, que defendiam que a vida de Cristo seria um resgate pago ao diabo para nos libertar; e Agostinho de Hipona, que pensava que o diabo foi iludido para atacar a Cristo, sobre o qual ele não tinha direitos, assim perdendo seus direitos sobre quem pertencesse a Cristo. Recentemente, o anglicano C.S. Lewis e o luterano Gustav Aulén defenderam visões semelhantes.

O niilismo supõe que o homem criou Deus à sua própria imagem, mas o filme inverte esse tropo, retratando o homem, Lex Luthor, criando o diabo, Doomsday/Apocalypse

A noção da vitória de Jesus Cristo em sua morte de cruz sobre o diabo e o pecado é uma das imagens bíblicas que nos ajudam a compreender o alcance e poder da obra de expiação de Cristo. A morte do único Salvador foi resgate, propiciação, expiação, sofrimento substitutivo. Mas foi também uma vitória espetacular e decisiva do único Messias sobre o diabo. E esta vitória foi alcançada em sacrifício, fraqueza, solidão e morte. Não raro, as Escrituras combinam estas várias imagens juntas:

“E a vós, quando ainda estáveis mortos nos vossos pecados e na incircuncisão da vossa carne, Deus vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos pecados; e, apagando a escrita de dívida, que nos era contrária e constava contra nós em seus mandamentos, removeu-a do nosso meio, cravando-a na cruz; e, tendo despojado os principados e poderes, os expôs em público e na mesma cruz triunfou sobre eles” (Colossenses 2,13-15).

“Portanto, visto que os filhos compartilham de carne e sangue, ele também participou das mesmas coisas, para que pela morte destruísse aquele que tem o poder da morte, isto é, o Diabo; e livrasse todos os que estavam sujeitos à escravidão durante toda a vida, por medo da morte” (Hebreus 2,14-15).

“Quem vive habitualmente no pecado é do Diabo, pois o Diabo peca desde o princípio. Para isto o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo. Aquele que é nascido de Deus não peca habitualmente, pois a semente de Deus permanece nele, e ele não pode continuar no pecado, porque é nascido de Deus” (1João 3,8-9).

A combinação destas imagens de resgate, propiciação, expiação, sofrimento substitutivo e vitória destacam a centralidade da cruz na proclamação que o Novo Testamento faz do evangelho do único Messias. E estas imagens têm suas origens no Antigo Testamento judeu, com seu sistema de sacrifício, festas sagradas, templo e sacerdotes. Assim, uma das mais evocativas imagens de Batman v Superman é a de Superman ferido de morte no chão, justaposto a uma cena em que aparecem no fundo destroços em forma de duas cruzes latinas, colocando o personagem em uma moldura claramente cristã. Não por acaso, o filme foi originalmente lançado nos Estados Unidos na Sexta-Feira da Paixão, o dia mais solene do calendário cristão.

Uma vocação para combater o mal

Uma cena dramática retrata Bruce Wayne/Batman num pesadelo na cripta de seus pais, pesadelo suscitado pela culpa em relação ao poder do mal que continua dominando Gotham City, a morte de Jason Todd/Robin e de muitos funcionários da Wayne Financial em Metrópolis, quando Superman lutou contra o General Zod – ao mesmo tempo em que Batman, consumido de raiva, medo e vingança, quer honrar seus pais em sua luta contra o crime e o mal, identificado agora em Superman, um alienígena com superpoderes. Além da aparição do Morcego Humano no pesadelo, de relance é possível ver uma pintura do Arcanjo Miguel vindo dos céus, citado na Escritura (Daniel 12,1; Judas 9; Apocalipse 12,7-9), e que aparentemente representaria Superman, em luta para salvar os seres humanos. O pesadelo premonitório é deixado de lado por Bruce, em meio a sexo casual, bebida e remédios – afinal, cumprir uma vocação sagrada não torna ninguém imune a tentações e desvios.

Lex Luthor, que revela que seu pai abusivo era da antiga Alemanha Oriental, parte do bloco comunista durante a Guerra Fria, é a principal voz antiteísta em Batman v Superman. Por meio de monólogos algumas vezes desconexos, ele rejeita a noção de um Deus bom e todo-poderoso, dada a prevalência do mal no mundo. Lex não deve ter lido Agostinho de Hipona, que desmantelou todos os argumentos por ele levantados contra Deus em O livre arbítrio, A verdadeira religião e A cidade de Deus – e a resposta agostiniana é poderosamente ilustrada na ação final sacrificial de Superman.

Apenas no caos anárquico aqueles como Lex Luthor podem se tornar poderosos

O gênio criminoso quer o conflito entre Batman e Superman para ter poder – poder político, enfatize-se, acima inclusive das nações-Estado, porque não tem poder como os super-heróis. E apenas no caos anárquico aqueles como Lex podem se tornar poderosos. Superman e Batman são poderosos a seu modo, mas não querem domínio algum sobre nada ou ninguém, e o cumprimento fiel de uma vocação sagrada é suficiente para ambos.

Ao fim, Lex diz com escárnio: “Agora o deus está morto para valer”. Mas esta não é a palavra final. As palavras finais foram proferidas com clareza e firmeza, de forma tocante, por um clérigo diante do túmulo: “Mas os teus mortos viverão. Seus corpos ressuscitarão. Vocês, que voltaram ao pó, acordem e cantem de alegria. O teu orvalho é orvalho de luz. E a terra dará à luz os seus mortos”.

Já a Mulher-Maravilha é uma princesa guerreira da ilha de Themyscira, a filha de Hipólita, a rainha das amazonas, e de Zeus, a principal divindade do panteão grego. Isso faz da personagem de Diana Prince uma semideusa. A presença de Mulher-Maravilha no filme destaca o outro alicerce que, ao lado do cristianismo, moldou poderosamente a civilização ocidental: a cultura helênica. E a Mulher-Maravilha também assumirá sua vocação para proteger toda a vida e combater o mal.

Superman e Batman são poderosos a seu modo, mas não querem domínio algum sobre nada ou ninguém, e o cumprimento fiel de uma vocação sagrada é suficiente para ambos

E, parece-me, a vocação é um dos temas de Batman v Superman: Batman, Superman e Mulher-Maravilha, cada um a seu modo, precisam refinar e purificar seu sentido de vocação, entender seu lugar no mundo, descobrir o que é ser um herói de fato, para, mais adiante, montar um exército de heróis que combata o mal, sobretudo o mal diabólico, que vem de fora da humanidade.

Além de Lois Lane – que desempenha o que pode ser o papel central na trama –, Martha Kent, Perry White e Alfred Pennyworth, outros personagens do universo DC aparecem: Anatoli Knyazev/KGBeast, Mercy Graves, Emmet Vale, Jimmy Olsen, Jonathan Kent, o General Calvin Swanwick/Caçador de Marte, a Major Carrie Farris/Star Sapphire, Steve Trevor, Flash, Cyborg, Aquaman e Darkseid.

Status de clássico

No filme, há citações diretas a histórias em quadrinhos icônicas, como Batman: ano um e Batman: o Cavaleiro das Trevas, assim como A morte do Super-Homem, de Dan Jurgens e outros; Super-homem: funeral para um amigo, de Louise Simonson e Dan Jurgens; Batman: morte em família, de Jim Starlin; Crise nas terras infinitas, de Marv Wolfman; e o videogame Injustiça: deuses entre nós.

Batman, Superman e Mulher-Maravilha, cada um a seu modo, precisam refinar e purificar seu sentido de vocação, entender seu lugar no mundo, descobrir o que é ser um herói de fato, para, mais adiante, montar um exército de heróis que combata o mal

A versão estendida do diretor, Batman v Superman: A Origem da Justiça: Ultimate Edition, ganhou 30 minutos a mais, estruturando melhor os arcos e o desenvolvimento dos personagens. Esta versão substituiu a exibida nos cinemas, e que apresentava uma trama confusa e com cortes abruptos. O site Screenrant ressaltou a importância das cenas adicionais na versão definitiva e como “o filme gradualmente conquistou uma base de fãs dedicada que, sem dúvida, o elevou ao status de cult classic”. A edição definitiva tem nota 9.0 no IMDB.

O filme é longo, mas há muitas cenas e diálogos memoráveis, com boa dose de tensão e drama. Porém, é também um filme brutal, assustador, violento, implacavelmente sombrio e triste. Seria fácil para a DC Comics copiar a fórmula da Marvel de contar as histórias de super-heróis de forma descontraída, com muitas piadas e ação – a trilogia X-Men e Logan são exceções. Em vez disso, seguindo a trilogia do Batman, optou-se por uma abordagem adulta, com heróis eivados de falhas humanas, que têm sua parcela de responsabilidade diante das consequências da violência, e lutas titânicas entre seres superpoderosos, com consequências devastadoras no mundo real, onde pessoas inocentes morrem e os super-heróis não conseguem salvá-las todas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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