Sede Ministério da Educação, em Brasília.| Foto: Agência Brasil
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Como noticiado na Gazeta do Povo, a agenda ideológica do governo Lula para a educação já está sendo imposta, como ilustra o documento que servirá de base para as discussões da Conferência Nacional de Educação (Conae), a ser realizada em janeiro de 2024. As principais pautas no material que foi divulgado pela Presidência da República e pelo MEC são promoção da diversidade “de gênero e de orientação sexual”, sugerindo a formulação de “políticas pedagógicas e de gestão específicas para este fim”, a necessidade de uma contraposição urgente “às políticas e propostas ultraconservadoras”, garantindo a “desmilitarização das escolas”, “o freio ao avanço da educação domiciliar (homeschooling)” e “às intervenções do movimento Escola Sem Partido e dos diversos grupos que desejam promover o agronegócio por meio da educação”. Segundo o site do Fórum Nacional de Educação, a Conae “tem objetivos específicos, como avaliar a implementação do PNE vigente, subsidiar a elaboração do próximo PNE (decênio 2024-2034) e contribuir para a identificação dos desafios e necessidades educacionais”. Em vez de traçar estratégias para melhorar a qualidade da educação do país, o material do Conae está repleto de temas político-ideológicos, incluindo até questões sindicais, como piso salarial de professores. Recentemente, Mauro Meister, pastor, doutor em Literatura Semítica, professor de Teologia e diretor-executivo da Associação Internacional de Escolas Cristãs no Brasil (ACSI), publicou um vídeo alertando sobre os perigos dessas pautas para a educação brasileira:

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Convidei-o para uma entrevista, para entendermos melhor o que é a Conae, o que ela pretende e suas implicações.

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Recentemente, você compartilhou um vídeo em suas redes sociais alertando sobre os riscos que a Conae 2024 pode representar para a educação confessional e privada no Brasil. O que o motivou a fazer o vídeo?

Decidi publicar esse vídeo de alerta porque a Conae 2024 foi convocada no último mês de setembro por meio de decreto presidencial, para acontecer no fim de janeiro de 2024. E duas questões me chamaram a atenção: primeiro, eu percebi que, até o início deste mês, a convocação era praticamente desconhecida entre diretores e mantenedores de escolas privadas e confessionais. Em segundo lugar, o prazo foi muito exíguo. Uma conferência que propõe discutir a educação brasileira por meio de um Documento de Referência com quase 180 páginas e mais de mil parágrafos demanda um amplo debate. E não houve tempo para isso nos níveis municipais e estaduais. Temos mais de 5 mil municípios no Brasil e, em poucas semanas, a comunidade escolar e a sociedade civil deveriam conhecer, debater e propor algo. Isso é simplesmente impossível. A ideia de uma Conferência Nacional de Educação traz a impressão de que os temas do documento foram “amplamente discutidos”, mas isso não é verdade. As conferências municipais e estaduais já aconteceram, e muitos dos interessados na proposta e protagonistas na educação brasileira nem sequer tiveram a chance de se manifestar a respeito do documento. Vamos aguardar o documento modificado e comparar com o original para ver o quanto aconteceu de participação democrática. Eu gostaria de ter uma surpresa.

“A ideia de uma Conferência Nacional de Educação traz a impressão de que os temas do documento foram ‘amplamente discutidos’, mas isso não é verdade.”

Mauro Meister, diretor-executivo da Associação Internacional de Escolas Cristãs no Brasil (ACSI)

Por que a Conae é tão importante?

A educação brasileira é regida por um conjunto de leis, começando pela nossa Constituição Federal de 1988, que delineia, em dez artigos, os princípios fundamentais para todos os níveis educacionais, desde a educação infantil até o superior. O artigo 214 da Constituição estabelece que “a lei estabelecerá o plano nacional de educação, com duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas”. Em 1996 surge a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que prevê a criação do Plano Nacional de Educação (PNE – artigo 9.º, I), o Conselho Nacional de Educação (CNE – artigo 9.º, IX, § 1.º) e outros órgãos para a gestão educacional nos diferentes âmbitos (municipal, estadual e federal). O Documento de Referência da Conae é elaborado pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), instituído por uma portaria do MEC em 2010 e formalizado por lei em 2014, com a aprovação do Plano Nacional de Educação. A Conae é uma conferência que se propõe a refletir e direcionar os rumos da educação nacional. Ela é importante porque estabelece objetivos que, posteriormente, tendem a promover leis que regulam o funcionamento da educação no país.

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O Documento de Referência, então, tem legalidade e foi elaborado pelo Fórum Nacional de Educação, quais entidades compõem o FNE?

O FNE é composto por órgãos vinculados ao Ministério da Educação e Cultura, além de outras instituições da sociedade civil. Sua recomposição foi determinada por meio de portaria do Ministro da Educação em março de 2023, integrando 39 entidades representativas, incluindo órgãos governamentais, entidades e movimentos sociais, além de alguns sindicatos e movimentos que nada têm a ver com educação. No entanto, a representatividade eletiva compreende apenas um representante de uma comissão do Senado e outro de uma comissão da Câmara dos Deputados. O que vejo como problemático é que o Documento de Referência apresentado reflete uma ideologia que contradiz o espírito da própria Constituição Federal. O artigo 206 da Constituição afirma que “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] III – pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”. As propostas do documento, que abordam questões específicas sobre minorias, gênero etc., parecem impor uma visão única sobre todo o sistema educacional, advogando o princípio de pluralismo contraditório, que promove uma única perspectiva político-ideológica. Outro ponto de preocupação, manifesto em ata da reunião do FNE, é que o documento deveria expressar a construção de uma política de Estado para a educação e não meramente uma política de governo. No entanto, a ideologização do documento indica uma orientação governamental, não contemplando a representatividade da população.

O Conae será composto apenas por essas entidades?

Não; existe um processo que aparenta ter amplitude democrática. Como mencionei antes, ocorreram reuniões em níveis municipais e estaduais (e no Distrito Federal), mas o tempo de discussão foi extremamente curto, o que não permitiu uma reflexão profunda nem alterações significativas no Documento de Referência. Ou seja, essas reuniões serviram mais para confirmar e legitimar o documento do que para debater e promover alterações. Algumas poucas mudanças poderão ser propostas nesse percurso, até chegar ao evento nacional, mas sem reais chances de alterações substanciais.

A conferência nacional contará com mais de 2 mil representantes vindos dos municípios, estados e órgãos representativos, ocorrendo em um período de apenas três dias. Essa grande reunião apresentará a versão do documento sobre o qual ficará estabelecido o Plano Nacional de Educação. Porém, qual seria a real possibilidade de uma assembleia com mais de 2 mil representantes refletir profundamente sobre as questões apresentadas em apenas três dias? Devemos lembrar que essas políticas orientarão a educação brasileira, pública, privada e confessional, pelos próximos dez anos!

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No mínimo, o processo deveria ter um tempo mais estendido para considerar a ampla manifestação da sociedade civil, em vez de apenas confirmar um documento altamente ideológico. Há discrepâncias na representatividade atribuída. Por exemplo, os delegados por setores, num total de 299, incluem 27 instituições religiosas, 50 comunidades científicas de ensino e pesquisa e 96 movimentos de afirmação da diversidade. É evidente que o Documento de Referência carrega o peso dessa representação desbalanceada.

Quais são os principais temas apresentados no Documento de Referência?

O Documento de Referência traz consigo sete eixos: 1. O PNE, como articulador do Sistema Nacional de Educação (SNE), sua vinculação aos planos decenais estaduais, distrital e municipais de educação, em prol das ações integradas e intersetoriais, em regime de colaboração interfederativa; 2. A garantia do direito de todas as pessoas à educação de qualidade social, com acesso, permanência e conclusão, em todos os níveis, etapas e modalidades, nos diferentes contextos e territórios; 3. Educação, Direitos Humanos, Inclusão e Diversidade: equidade e justiça social na garantia do direito à educação para todos e combate às diferentes e novas formas de desigualdade, discriminação e violência; 4. Gestão Democrática e educação de qualidade: regulamentação, monitoramento, avaliação, órgãos e mecanismos de controle e participação social nos processos e espaços de decisão; 5. Valorização de profissionais da educação: garantia do direito à formação inicial e continuada de qualidade, ao piso salarial e carreira, e às condições para o exercício da profissão e saúde; 6. Financiamento público da educação pública, com controle social e garantia das condições adequadas para a qualidade social da educação, visando à democratização do acesso e da permanência; 7. Educação comprometida com a justiça social, a proteção da biodiversidade, o desenvolvimento socioambiental sustentável para a garantia da vida com qualidade no planeta e o enfrentamento das desigualdades e da pobreza.

“Nossas crianças, adolescentes e jovens, em grande maioria, continuam incapazes de fazer contas e ler. Como um documento que pretende orientar a educação brasileira nos próximos dez anos minimiza esta questão?”

Mauro Meister

Cada eixo é organizado em fundamentação, proposições e estratégias, temas bem complexos e com implicações de todos os tipos: didáticas, organizacionais, administrativas, orçamentárias etc. Para a discussão destes eixos, durante as conferências municipais, intermunicipais e estaduais, os participantes se reúnem em salas separadas para as chamadas “plenárias de eixos”. Nestes grupos, os participantes têm a oportunidade de contribuir para o Documento de Referência, propondo emendas objetivas, que podem ser: supressivas (removendo palavras ou expressões, por exemplo), aditivas (acrescentando palavras, expressões ou grupos ausentes no texto), substitutivas (troca de uma palavra ou expressão por outra, mantendo o sentido do texto) ou aglutinativas (unindo expressões com conteúdo semelhante). Segundo relatos de participantes dessas conferências, as contribuições não abrangiam críticas à fundamentação do texto ou alterações nas proposições e estratégias. Isso, em minha opinião, limita a concretização do intento do Documento de Referência, que seria a de utilizar mecanismos democráticos amplos, valorizando algumas visões minoritárias em detrimento de outras e, também, grandes segmentos conservadores da nossa sociedade.

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Pode mencionar exemplos específicos de questões que considera mais preocupantes?

Há diversas preocupações que surgem a partir do tom do documento, mas gostaria de destacar algumas em particular. No contexto geral do documento, há uma ênfase quase exclusiva na “educação de qualidade social” ou “educacionalmente referenciada” (Eixo II), mas a qualidade acadêmica recebe pouca atenção ou destaque. É de conhecimento que a formação acadêmica no Brasil é deficiente, considerando que patinamos entre os países que apresentam os piores índices educacionais do mundo, sem conseguir, por décadas, sair desta estagnação. Para ver isso, basta olhar o Pisa 2022, publicado em 5 de dezembro. O fato é que nossas crianças, adolescentes e jovens, em grande maioria, continuam incapazes de fazer contas e ler. Como um documento que pretende orientar a educação brasileira nos próximos dez anos minimiza esta questão?

No mesmo Eixo II, o parágrafo 254 declara: “Um Estado laico é uma manifestação do secularismo em que o governo estatal mantém uma posição oficial de imparcialidade em relação a assuntos religiosos, não demonstrando apoio ou oposição a qualquer religião. A educação pública, portanto, deve seguir o preceito fundamental da laicidade. As instituições educacionais privadas ou comunitárias podem qualificar-se como confessionais, atendidas a orientação confessional e a ideologia específicas, o que não dá o aval de a educação qualificar-se como doutrinária”. É importante ressaltar que laicidade não é laicismo – este último é a aversão à religião. Neste único trecho em que as escolas confessionais são mencionadas no documento, o texto reconhece o que a LDB afirma e, ao mesmo tempo, diz o contrário, tirando da escola confessional sua liberdade. Qual seria a intenção do parágrafo ao incluir o termo “laicista” e destacar que a confessionalidade “não dá o aval de a educação qualificar-se como doutrinária”? O texto da LDB é bastante claro em seu artigo 19, “§ 1.º, ao afirmar que as instituições de ensino mencionadas nos incisos II e III do caput deste artigo podem qualificar-se como confessionais, seguindo orientações confessionais e ideologias específicas”. Aparentemente, o texto do Documento de Referência da Conae parece querer manter somente a intenção de doutrinação unilateral. Isto implica que a garantia constitucional que assegura como princípio a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” não se aplica a certos grupos.

Qual o impacto para escolas privadas e confessionais?

Conforme abordado anteriormente, o Documento de Referência representa uma ameaça à autonomia das escolas confessionais no que diz respeito à sua confissão. Ele impõe ideias que confrontam a liberdade dessas escolas, especialmente no que se refere aos valores de diversidade defendidos. Eles colocam em risco a diversidade religiosa e confessional nas escolas. Especificamente as escolas confessionais cristãs, que seguem princípios bíblicos sobre família e sexualidade, encontram-se em risco, a partir das propostas presentes nos diferentes eixos do documento. Elas geram não apenas tensão, mas também impactos diretos na liberdade pedagógica e administrativa dessas instituições. Surge, assim, a necessidade de questionar a efetividade da liberdade de ensino diante de um contexto que parece restringir certos valores e perspectivas.

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Outro ponto importante está no Eixo IV do documento, sobre gestão democrática do ensino. A insistência das propostas é no sentido de que as instituições de ensino escolham seus gestores por meio de eleições participativas e com pouquíssimo critério de competências para a seleção. O parágrafo 763 termina com a seguinte afirmação: “Ressalta-se assim a importância da garantia da gestão democrática também para a rede de ensino privada, tanto de educação básica como superior, haja vista que a materialidade dessa concepção nas redes de ensino pública e privada é essencial para a garantia e a manutenção das ideias e processos democráticos”. Em tese, escolas fora do sistema público teriam de escolher seus gestores por estes meios, em ingerência direta na sua natureza e meio de funcionamento.

“O Documento de Referência é a manifestação de uma filosofia de ensino que não tem como objetivo a melhoria da educação acadêmica no Brasil, mas apenas a inserção ainda mais forte de questões ideológicas, políticas e partidárias.”

Mauro Meister.

Você acredita que o alerta feito com o vídeo alcançou o objetivo?

Foi um começo, mas continua o apelo para que os interessados no futuro do Brasil conheçam esse documento, entendam suas consequências, chamem seus representantes para a arena do debate sobre a educação do nosso país e mostrem as consequências, no curto e longo prazo, caso essas políticas sejam implementadas. O caminho das propostas é um texto final, elaborado pelo MEC, que deve seguir para nossas casas representativas. Deputados federais, senadores, deputados estaduais, vereadores e membros do Poder Executivo de todos os níveis do governo precisam conhecer e se posicionar quanto a isto. O Documento de Referência é a manifestação de uma filosofia de ensino que não tem como objetivo a melhoria da educação acadêmica no Brasil, mas apenas a inserção ainda mais forte de questões ideológicas, políticas e partidárias. Ao ler a apresentação e introdução do documento isto fica muito claro.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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