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O chamado para o ministério da Palavra de Deus
| Foto: Kevin Snyman/Pixabay

Nas Escrituras, do começo ao fim, Deus é o Senhor Trino que chama. “Deus é o primeiro a chamar o homem. Ainda que o homem esqueça seu Criador ou se esconda longe de sua Face, ainda que corra atrás de seus ídolos ou acuse a divindade de tê-lo abandonado, o Deus vivo e verdadeiro chama incessantemente cada pessoa” para participar do “drama de Aliança”, que “se revela através de toda a história da salvação” (Catecismo da Igreja Católica, §2567). Assim, “Deus não deixa todos os homens perecer no estado de pecado e miséria, em que caíram pela violação do primeiro pacto comumente chamado o pacto das obras; mas, por puro amor e misericórdia, livra os escolhidos desse estado e os introduz num estado de salvação pelo segundo pacto, comumente chamado o pacto da graça” (Catecismo Maior de Westminster, pergunta 30). Portanto, o Deus vivo chama graciosamente pecadores ao arrependimento e à fé em Jesus Cristo. Por obra e graça do Espírito Santo, aqueles que anteriormente estavam mortos em seus pecados, que eram escravos do mundo, da carne e do diabo, são chamados e regenerados para viver uma nova vida em Cristo, chamados para provarem o poder da vida vindoura, já nesta vida, chamados para descansarem na esperança da glória eterna.

Todos os cristãos têm um chamado

Deus também chama esses pecadores regenerados e justificados para participar da renovação da criação. Nesse sentido, cada cristão tem um chamado especial para desempenhar na preparação para a renovação da criação. Esse chamado também é conhecido nas Escrituras como o sacerdócio real dos cristãos. Todos os chamados em Cristo são chamados para desempenhar sua vocação como vocação sacerdotal. Dessa forma, todo chamado é um sacerdócio santo. A mãe, o pai, o filho, o engenheiro, o arquiteto, o motorista, o professor, o mestre de obras, o médico, o marceneiro, o músico, sendo cristãos, são chamados para viver para a glória de Deus, como sacerdócio santo.

De acordo com Martinho Lutero, todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos sacerdotes uns dos outros. E, para o reformador, esse sacerdócio deriva diretamente de Jesus Cristo, pois “somos sacerdotes como ele é sacerdote”. É uma responsabilidade tanto quanto um privilégio: “O fato de que somos todos sacerdotes significa que cada um de nós, cristãos, pode ir perante Deus e interceder pelo outro. Se eu notar que você não tem fé ou tem uma fé fraca, posso pedir a Deus que lhe dê uma fé sólida”. Portanto, não podemos ser cristãos sozinhos, precisamos da “comunhão dos santos”, a comunidade reunida ao redor da Palavra e dos Sacramentos: uma comunidade de intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família em que as cargas são compartilhadas e suportadas mutuamente. Nem todos podem ser pastores, mestres ou conselheiros. Há um só estado – todos os cristãos são sacerdotes –, mas uma variedade de funções: todo cristão tem um chamado específico da parte de Deus, para glorificá-lo no mundo.

Todo chamado é um sacerdócio santo. A mãe, o pai, o filho, o engenheiro, o arquiteto, o motorista, o professor, o mestre de obras, o médico, o marceneiro, o músico, sendo cristãos, são chamados para viver para a glória de Deus, como sacerdócio santo

A partir do conceito do sacerdócio de todos os cristãos, aprendemos que o Novo Testamento repudia totalmente qualquer tipo de clericalismo, justamente porque todos os cristãos são sacerdotes. Não existe fundamento bíblico para a ideia de que alguns cristãos são sacerdotes e outros não. Todos os cristãos são sacerdotes, mas com diferentes funções. Nesse sentido, Deus, graciosamente, chama alguns membros dessa santa companhia sacerdotal para fazer aquilo que nem os anjos fazem: pregar o Evangelho, as boas-novas da livre graça de Deus, que justifica pecadores por causa da obra de Cristo na cruz. E estes, chamados para pregar, ensinar e cuidar do povo de Deus, são sacerdotes tanto quanto todos os demais cristãos o são. Não há diferença nesse aspecto. Todavia, paradoxalmente, foram chamados para desempenhar a mais importante tarefa que existe: expor fielmente as Escrituras, edificar a igreja, preparando os cristãos para viver bem e apontando para estes os novos céus e a nova terra.

O chamado ao ministério da Palavra

Esse chamado é uma obra interna de Deus, que chama os servos da Palavra. Tanto na sua famosa obra, As Institutas da Religião Cristã, como em seus muitos comentários bíblicos, João Calvino escreveu bastante sobre o ministério da Palavra. Ele enfatizou que “os pastores genuínos não se precipitam temerariamente ao sabor de sua própria vontade, e, sim, são levantados pelo Senhor. [...] Nenhum homem estará apto para tão excelente ofício, caso não seja ele formado e produzido por Cristo mesmo. O fato de termos ministros do Evangelho é um dom divino; o fato de que se desincumbem da responsabilidade que lhes foi confiada é igualmente um dom divino”. Portanto, “ministros são aqueles que colocam seus serviços à disposição de Cristo, para que alguém possa crer nele. Além do mais, eles não possuem nada propriamente seu do que se orgulhar, visto que também não realizam nada propriamente seu, e não possuem virtude para excelência alguma exceto pelo dom de Deus, e cada um segundo sua própria medida; o que revela que tudo quanto um indivíduo venha a possuir, sua fonte se acha em outrem. Finalmente, ele os mantém todos juntos como por um vínculo comum, visto que tinham necessidade do auxílio mútuo”.

Calvino também definiu o ofício do pastor como relacionado de forma inseparável às Escrituras: “Portanto, esse é o poder soberano com o qual os pastores da igreja, independentemente do título que recebam, devem estar investidos, para que tenham grande ousadia em fazer todas as coisas pela Palavra de Deus; obriguem todo poder, glória, sabedoria e exaltação do mundo a se submeterem e a obedecerem à sua majestade; sustentados pelo poder do Senhor, comandem a todos, desde o mais importante até o mais humilde; edifiquem a casa de Cristo e derrubem a de Satanás; alimentem as ovelhas e expulsem os lobos; instruam e exortem os ensináveis; acusem, repreendam e persuadam os rebeldes e obstinados; unam e soltem; por fim, se necessário, lancem raios e relâmpagos, mas façam todas as coisas com base na Palavra de Deus”. Assim, de acordo com Calvino, o poder do ministério se deve totalmente à Palavra de Deus, associando toda ação e todo poder no serviço eclesiástico com as Escrituras.

E Eugene Peterson enfatizou o cerne do ofício pastoral da seguinte forma: “Ao pastorado constitui qualidade inerente combinar dois aspectos do ministério: um, apresentar a palavra eterna e a vontade de Deus; e dois, cumprir a primeira tarefa no meio das idiossincrasias do local e das pessoas (o verdadeiro lugar onde o pastor vive, as pessoas específicas com quem convive). Se qualquer um desses dois aspectos for desprezado, não acontece um bom pastorado. O ofício pastoral em sua melhor forma narra e exibe as trocas da graça descritas na Bíblia, entre Deus, que ‘é o mesmo, ontem, hoje e para sempre’, e o ser humano, que herda o pecado de Adão e vivencia a salvação através do novo Adão”.

Portanto, aqueles chamados ao ministério da Palavra devem ter diante de si, em todo o tempo, os votos ministeriais feitos diante do presbitério e da congregação reunida, no dia da ordenação pastoral:

“Caríssimo irmão, queres consagrar-te, até à morte, ao ministério da Palavra, recebido por chamado do Deus Trino, e que, pela imposição das nossas mãos, te vai ser confirmado com a graça do Espírito Santo?”
“Sim, quero.”
“Recebeis as Escrituras, do Antigo Testamento e Novo Testamento, como Palavra de Deus, a única e infalível regra de fé e prática?”
“Sim, recebo.”
“Queres guardar íntegro e puro o depósito da fé, tal como foi recebido dos apóstolos e conservado na Igreja sempre e em toda a parte?”
“Sim, quero.”
“Queres receber e adotar sinceramente a Confissão de Fé e os Catecismos desta Igreja, como fiel exposição do sistema de doutrina ensinado nas Santas Escrituras?”
“Sim, quero.”
“Queres anunciar o evangelho da graça de Cristo com fidelidade e constância?”
“Sim, quero.”
“Queres, com amor de pai, ajudado por outros presbíteros e diáconos, cuidar do povo de Deus e dirigi-lo pelo caminho da salvação?”
“Sim, quero.”
“Queres, como o Bom Pastor, procurar as ovelhas dispersas e conduzi-las ao redil do Senhor?”
“Sim, quero.”
“Queres perseverar na oração a Deus Pai todo-poderoso em favor do povo santo e exercer o ministério da Palavra com toda a fidelidade?”
“Sim, quero, com a ajuda de Deus.”
“Queira Deus consumar o bem que em ti começou.”

E aqui cabe lembrar do importante alerta que Eugene Peterson fez aos clérigos: “Os pastores estão abandonando seus postos, se desviando para a direita e a esquerda, com frequência alarmante. Isso não quer dizer que estejam deixando a Igreja e sendo contratados por alguma empresa. As congregações ainda pagam seus salários, o nome deles ainda consta no boletim dominical e continuam a subir ao púlpito domingo após domingo. O que estão abandonando é o posto, o chamado. Prostituíram-se após outros deuses. Aquilo que fazem e alegam ser ministério pastoral não tem a menor relação com as atitudes dos pastores que fizeram a história nos últimos 20 séculos”. Portanto, que as igrejas cristãs não apenas sejam servidas por clérigos que sejam fiéis a tais juramentos – mas que estas igrejas lembrem constantemente seus clérigos de seus juramentos sagrados!

Se você tem o chamado para ser um ministro da Palavra de Deus, converse com o pastor da sua igreja e procure uma escola teológica para se preparar. E, se você não tem esse chamado específico, ore pelos que têm

Um testemunho público

E embora seja interno, o chamado para o ministério da Palavra inevitavelmente virá acompanhado por um testemunho externo. Ou seja, aqueles chamados para a pregação da Palavra demonstrarão dons e aptidões para o exercício do ministério. Eles são equipados pelo Espírito para pastorear, evangelizar, pregar e ensinar — e frutos visíveis serão evidenciados por conta desse chamado interno. E este será confirmado diante da igreja, por conta dos frutos externos da obra da graça que já aconteceu interiormente. Para Calvino, “o pastor necessita de duas vozes: uma para ajuntar as ovelhas, e outra para espantar os lobos ladrões. A Escritura o mune com os meios de fazer ambas as coisas, e aquele que tem sido corretamente instruído nela será capaz tanto de governar os que são suscetíveis ao aprendizado quanto a refutar os inimigos da verdade”. Por isso, há a necessidade de se testar aqueles que afirmam serem chamados: estes devem evidenciar dons ministeriais – pregando, evangelizando, confortando – antes mesmo de serem indicados para uma escola teológica. Até porque não é uma escola teológica que forma pastores. São pastores que formarão outros pastores, e estes servirão à igreja de Cristo. Por essa razão, é tão importante que os pastores tenham bons modelos enquanto se preparam para ir às escolas de teologia. De igual forma, é essencial que – durante o curso – tenham a oportunidade de exercerem funções pastorais, sendo devidamente supervisionados por um pastor mais experiente. O que podemos chamar de estágio supervisionado é essencial para a formação pastoral, por essa razão, é disciplina obrigatória no Seminário Martin Bucer, onde sirvo como diretor, bem como em muitos outros seminários e escolas teológicas.

E, ainda que pastores sejam formados por outros pastores, o ensino teológico não pode ser desprezado. Escolas teológicas são importantes. De acordo com Calvino: “A erudição unida à piedade e aos demais dotes do bom pastor são como uma preparação para o ministério. Pois aqueles que o Senhor escolhe para o ministério, equipa-os antes com essas armas que são requeridas para desempenhá-lo, de sorte que lhe não venham vazios e despreparados”. Aqueles que foram chamados desejarão se aprimorar para desempenharem sua vocação, e buscarão preparo nessas escolas – enquanto são “mentoreados” por seus pastores. Nesse sentido, uma escola teológica deve ser o berçário dos futuros pastores. E um bom critério para julgar a qualidade dessa escola é buscar respostas para algumas perguntas primordiais: Essa escola oferece uma boa formação teológica? Os alunos são firmados na fé ortodoxa? A piedade é desenvolvida e nutrida? São preparados para a titânica luta por corações e mentes que será travada por toda sua carreira ministerial?

Se você tem o chamado para ser um ministro da Palavra de Deus, converse com o pastor da sua igreja e procure uma escola teológica para se preparar, enquanto vai desenvolvendo seus dons na igreja, sob a supervisão de um pastor. Mas, se você não tem esse chamado específico, ore pelos que têm. Também busque ser luz onde estiver e mostrar o amor de Deus através da profissão pela qual você cumpre o seu sacerdócio santo.

E reafirmando: são pastores que formarão outros pastores; será caminhando com pastores mais experientes que os futuros pastores aprenderão a pregar, ensinar, visitar, aconselhar e fazer bem tudo o mais que o chamado pastoral exige. Mais do que isso: serão pastores, servindo como modelos, que atrairão outros pastores para o ministério. Foi isto que William Perkins ensinou em seu clássico A arte de profetizar: “Se os ministros são poucos em número, então faça tudo o que puder para aumentar esse número. Quanto mais ministros, menor o fardo posto sobre cada ministro individualmente. Assim, que cada ministro em seu ensino e em sua conversação trabalhe de tal modo que honre o seu chamado, a fim de que outros possam ser atraídos a partilhar de seu amor pelo ministério”. Pois, como bem escreveu Lutero: “Não há tesouro mais precioso nem coisa mais nobre na terra e nesta vida do que um verdadeiro e fiel pastor ou pregador”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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